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CRÓNICAS DORES

 
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Hoje quero dizer das coisas que nunca disse: não sei que palavras hei-de percorrer ainda, mas os meus dedos são bicos famintos, e as migalhas são muitas...

Ali, sentado no banco mais remoto do jardim, ali, onde o sol não se demora mais que o tempo de roubar um beijo na boca à prostituta regressando noites, demora-se um velho triste. Triste? Não sei... é provável que seja só um velho cansado. Ou pensador. Do sítio onde me encontro, do lado de cá das migalhas, entre o chão e as asas do céu cinzento, consigo ver-lhe a exacta cor dos olhos. Ou talvez não, talvez só consiga ver a cor que quero que eles tenham – são terra.
Neles, o velho semeou trigos, um certo dia de inverno. Consigo ver-lhe nas mãos as marcas do arado, e nas roupas restos do vento que lhe ajudou a espalhar os grãos. Terra. Terra é uma cor de mil matizes, penso antes do verde escrever. Cor-de-joio. Cor-de-papoilas. Cor-de-chuva. Cor-de-céu. Cor-ação. Ou cor de suor confundindo lágrimas e de amor desenhando leitos nas tardinhas da seara.
Dos seus olhos-terra, o velho ceifou milagres, sonhou o pão-dele de cada dia. Com eles, pintou as cores de outono necessárias ao vento norte. Neles, repousou as folhas caídas, em doce morte libertadas... Deles, fez silos de inverno, onde guardou o sustento e a fome. Por eles, renasceram pomos e flores, em cada primavera.
Também neles nasceram, muitas vezes, arco-íris... Talvez, de tão velho, já nem se lembre como se fazem, agora já não olha para o céu, quando há chuva mansa... muito menos quando há chuva mansa e sol impertinente. Já não lhe importam as impertinências, os seus olhos cor de terra já não se erguem a exigir ou a reclamar o que quer que seja – sabe que o seu tempo de exigências e de admiramentos e de sete-cores já passou. E então, limita-se a rebuscar na algibeira, para onde, ao longo da sua vida de colheitas, resvalaram alguns grãos do trigo que guardou nos olhos... e lançá-los aos bicos ávidos das pombas, que o sitiam mancha sem cor, no lado mais fundo do jardim,
Em breve, todas as folhas repousarão nos seus olhos – e os seus olhos regressarão ao húmus onde pertencem.



Teresa Teixeira


 
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Sterea
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Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 09/04/2014 13:21  Atualizado: 09/04/2014 13:21
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Mensagens: 10200
 Re: DORES CRÓNICAS
Bom dia Teresa, seus versos dissecam a vida como ela é, cheia de eventos alguns prazerosos, outros tantos desoladores, porem o transeunte não tem escolhas, ou os enfrente, ou sucumbi, e assim vamos caminhando rumo ao suspiro final desta materialidade,mantendo sempre a esperança de retornarmos a nossa origem divinal, Parabéns pelo eloquente poema, um forte abraço,MJ.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/04/2014 16:07  Atualizado: 09/04/2014 16:07
 Re: CRÓNICAS DORES
Poetisa,

Um texto magnífico!

Eu adorei a leitura!

Parabéns e grata em compartilhar!

Beijos,

Anggela

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/04/2014 16:33  Atualizado: 09/04/2014 16:33
 Re: CRÓNICAS DORES
Belo texto. Parabéns.