Poemas : 

O NATAL DOS SILÊNCIOS

 
O poema não é novo, mas é actual


O NATAL DOS SILÊNCIOS


No Natal deixo a minha alma vogar com o frio e um arrepio
Estremece de penas e martírios a piedade
Que come a meu lado sentada numa mesa vazia
Que dorme numa cama de plumas e relento
Que vagueia pelas ruas à procura da família fantasma
Que guardou numa caderneta de autocolantes coleccionáveis.

Neste Natal
Um entre os demais natais que já se cruzaram comigo
Nas esquinas do tempo, nos tectos de vento
Nas sombras dos desejos infantis, nas crenças adultas
Aguardo que um sorriso traga no sapatinho a prenda esquecida
Da minha inocente infância pobre e nublada
Como a inocente espera pela meia vazia das outras crianças…
Não sinto mais penas delas que de mim!

Como todos os poetas que já escreveram sobre o Natal
E falaram das largas montras vistosas e iluminadas
Poemas condoídos de um condoimento arrasador e tépido
Também as fito, iluminadas, vivas, consumistas…
Também sigo com o olhar esgazeado de cores
As mãos dadas das crianças que impetuosamente correm para os brinquedos
Convencidas de que o pai natal que as agracia com sorrisos
Descerá pela chaminé dos sonhos e lhes preencherá as fantasias…

Meto minha alma ao rubro num clamor de gritos e digo:
- Deus, ajuda estes pobrezinhos com fome….
Não pode! Também se diverte no natal!
Depois sorrio para mim mesmo ufano de ter revelado ao mundo
O cerne dos meus mais que urgentes anseios e preocupações…

Todos se levantam da bancada da distracção
Viram o rosto para o flash das máquinas remissivas do tempo
E sorriem… aplaudem… aplaudem… sorriem…
Porque aprenderem a viver as minhas dores porque são dores gerais
E lambuzam-se na minha piedade pela generalidade superficial
Enquanto pedem ao pai natal em quem já não acreditam
Paz no mundo para a qual não contribuem…
Idiotas!
Assumo o papel de ficar bem na fotografia…
Faz-me bem ao ego.

“Olhem para as montras! Olhem com olhos de ver!
Ver-me-ão especado por detrás do vidro fitando-os com severidade
Como quem tem o direito de julgar as vossa atitudes
- Para não se julgar a si próprio –
Porque está por detrás da montra e tem um status diferente
E só por isso ganhou o direito de julgar os que o fitam
Com os olhos estáticos e assombrados de quem está do lado de lá do vidro!
Vejam-me! Não choro nem rio. Estou somente ali
Impávido como impávida está a vossa vida paralítica
Arrumada na poeira das estantes vazias dos salões em ruínas
À espera que uma aragem entre pelas frestas das janelas
E sopre o pó da inércia sobre o chão inerte da vontade inerte
De todos os desejos recalcados nos sapatos sem sola
Que puseram na chaminé do desassossego ao longo da vida!
Olhem para mim! Olhem-me!
Esqueçam o mundo que passa por vós que dele já estais mais que esquecidos!
Não calquem os meus pés descalços de tanto caminharem por nada!
Não fardem a minha nudez de obrigações e delírios
Convencidos de que ela representa um delito e eu o compulsivo anónimo
Que dolosamente pica as veias com as agulhas viciadas
De uma droga posta ao dispor da minha alucinação de esquecer o mundo
Que atrofia de razões a paranóia de uma crença em algo melhor
E exige de mim o espalhafato de um comício em forma de poema
- Censurado pela “Opus Dei” como delito gravoso para a alma -~
Onde possa vomitar as minhas penas sobre as vossas penas
Para assim se mostrarem solidários com o que nem se lembram!
Nem quando a miséria lhes bate no casaco e pede uma moeda
Para amealhar no fundo roto do saco que nunca dá para tudo
E há sempre uma história de enriquecimento ilícito nos olhos dos mendicantes
Que dão esmola aos mendigadores porque são profissionais
E como tal têm direito em Dezembro ao décimo terceiro mês.
Nem quando lhes puxo pelas magas do casaco de abafar
Conseguem olhar-me nos olhos com alguma modéstia
Ou descer do périplo da arrogância e da altivez…
Não sou suficientemente romântico nem cristão para acreditar
Que a riqueza condescenderá um dia e ajudará os desvalidos
Porque ainda não determinei o limite da riqueza
Nem sei ao certo quanto preciso não ter para ser pobre!
Inventam então paraísos de mesas fartas e céus azuis quanto bastem
Para que a morte lívida dos miseráveis seja menos penosa
Porque qualquer que seja é sempre melhor que a frustração
De nunca saberem ao certo como será o dia de amanhã
Em que banco de jardim comerão ou em que árvore dormirão
Preocupados com a precipitação e as baixas temperaturas
Como fanáticos doutorados em ciências atmosféricas…

Nem quando estendo a mão à espera da moeda que enriquecerá
A minha farta conta bancária
Consigo transmitir-lhes o mosto de alguma sensibilidade sensitiva
Ou mostrar-lhes a razão da cognição das vontades
Quando elas próprias deviam encrostar-se a mim e eu ser delas
Para que ao pedir-lhe uma estúpida moeda os faça chorar
De tanta piedade por mim que a extrema-unção do natal
Seja mais proveitosa que todos os dízimos assaltados aos crentes
E consumam nas toalhas enfeitadas da ceia de doces bacalhau e peru
A beleza da pureza da virgindade de uma Maria lésbica!

Não quero o filho da puta do vosso Peru na minha boca!
Não quero a merda da vossa moeda na minha mão!
Aliás, pensando bem, de vós não quero nada!
Quero apenas que me vejam na montra onde me plantei
Para vos julgar e sentir dentro de mim o auspício de alguma autoridade
Que ainda não compreendi para que serve nem que farei com ela!

No fundo continuo com pena dos pais que não sabem como sustentar os filhos
Porque os patrões não pagaram os míseros centavos de uma troca desigual
E se esqueceram de compor a mesa daqueles que a suar compuseram as suas.
Ridículo! Tantas montras por assaltar…

Existe excessiva demasia de tudo quanto é demais.
Se é demais porque falta? Quem quer saber do que falta?
Ninguém se interessa pelo que falta!
Eu não quero saber da falta dos que no ano inteiro vivem de faltas
E pedem compulsivamente pelas ruas sem se lembrarem que já estão ricos!
Preciso enriquecer a minha pobreza nas mesmas ruas
Onde outros pedintes enriqueceram as suas!

Está bem… Estamos na porra do natal! Pronto… é um dia…
Ainda bem. Já viram o que era termos essa merda o ano todo?
Quantas Marias não teriam de morrer analmente virgens
Para que pudesse degustar o meu peru assado?
Quantos poemas de natal teria de escrever
Para vos convencer de que escrevo sobre o natal
Que sou mais nataleiro que os cristãos
E que me preocupo com os pedintes friorentos e esfomeados
Que só desejam algum familiar por companhia
Para poderem banquetear-se com a sobra da perna de peru!?
Ainda bem que o natal tem de vida vinte e quatro horas!
Os relógios do mundo deviam adiantar doze horas!
O mundo devia ser obrigado a dormir o restante!
Embrulhem a porcaria do natal e estrangulem o Jesus
Que não chegou a nascer nem se crê tenha morrido!
Enfiem-no na sacola do tipo de vermelho e barrete que nunca dá prendas
Porque nunca recebeu prenda nenhuma nem se confirma que tenha renas!

Porque nunca houve um rei mago que me trouxesse no natal
Um pote, mesmo pequenino, de ouro, pedrarias e mirra?
Mirra não! Mirrar é diminuir! Acrescento! Eu quero Acrescento!
Tragam-me um pote de Acrescento!
Que lindo será o meu natal com acrescento…

Quem, perante tanta alegria, se lembraria de um José cornudo
A rebocar um burro e a caminhar a pé por falta de carta de condução
Carpinteiro nas horas vagas, fugido de Herodes sem saber porquê
Quando posso ir no meu carro à procura do poder que ninguém me dá
Ou do protagonismo que exijo para mim porque ninguém se interessa?
Lanço-me pela auto-estrada da consolação e badalo a toda a gente
Um natal feliz de paz e amor ou de amor e paz ou de ambas as coisas
Quando sei que qualquer delas é a porcaria de uma utopia
E que os meus votos destinam-se apenas a cumprir uma obrigação
Como quem dá as condolências à viúva e vai para casa masturbar-se a pensar nela.
Assim cumpro solenemente o meu Natal.

Ah! Quero os reis magos na minha algibeira!
Quero o condão dos sonhos das montras nas minhas veias!
Quero a sede dos ladrões… As pilhagens…
A gula dos invejosos… A revolta dos brinquedos…
Os camelos em viagem pelo deserto
E que depois do natal passado ainda não descobriram a minha casa…
Cumpra-se em mim a bossa desse camelo errante
Perdido ao longo dos anos no meu deserto incumprido!

Silêncio… Ouço passos…
Já sei. É meia-noite.

Posso sentar-me num cadeirão e embebedar-me
Para amanhã contar como foi lindo o meu natal…

 
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