Prosas Poéticas : 

A geometria dos escombros

 
Tags:  Alepo  
 

Ensurdecedor se levanta o pó
e a cidade cega tateia em desespero.
Janelas envidraçadas se entregam
de peito aberto até que o ar
se encha de chuva
de estilhaço.
Alguns pilares resistem à vibração
do ar, como soldados suicidas,
enfrentam explosões
da temperatura hedionda
e vão trepidando e se quebrando
antes da desconstrução fatal.
Por alguns minutos, cinzas
sufocam gemidos e estes sucumbem
ao silencio.
Alguns gritos chegam com o vento;
balburdias da correria
pós conflitos
depois que a poeira senta
e a cinza se cola em alguns
bravos monumentos,
escombros revelam ao mundo
suas geometrias
e a dor calada em cada fotografia








 
Autor
MyrellaCasav
 
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Enviado por Tópico
Margô_T
Publicado: 29/01/2017 16:03  Atualizado: 29/01/2017 17:29
Da casa!
Usuário desde: 27/06/2016
Localidade: Lisboa
Mensagens: 308
 Re: A geometria dos escombros
Um poema que remete para imagens apocalípticas - sobre destruição e violência, sobre resistência e impotência.
Obrigada por dares voz às vozes silenciadas e lembrares quem te oiça desta realidade que não diz respeito apenas a Alepo mas a todo o mundo.
Apesar do poema se chamar “A geometria dos escombros” parece-me óbvio que desenvolves um paralelismo entre o espaço e quem nele vive, e é por isso que os “escombros revelam ao mundo” não só as “suas geometrias” como também “a dor calada”.

Logo no início do poema temos três sentidos em acção: audição, visão e tacto – o “ensurdecedor” para o primeiro, o “cidade cega” para o segundo e o “tacteia” para o terceiro.
São os sentidos que apreendem o que se está a passar (alterações, movimentos), daí toda a multiplicidade de palavras que complementam o “cenário” e reafirmam o que os sentidos “recebem” como “estilhaço”, “vibração”, “explosões”, “sucumbem”, “balbúrdias”, “correria”, “poeira” e “escombros”. Estas palavras põem-nos “no terreno”, obrigando-nos a encarar esta realidade e, parece-me que inevitavelmente, a imaginar-nos na mesma situação, a sentirmos empatia por quem vive em Alepo e a compreendermos que é por pura arbitrariedade que não estamos lá (afinal de contas, somos todos seres humanos e pertencemos ao mesmo espaço-Terra… poderíamos estar num outro qualquer local se os acasos que nos trouxeram ao lugar onde agora estamos tivessem sido, mesmo que apenas residualmente, diferentes).

Vendo a casa como um corpo (dica que o próprio verso nos dá dizendo “peito aberto”), a janela é essa divisão que existe entre interior e exterior, daí que o trecho:
“Janelas envidraçadas se entregam
de peito aberto até que o ar
se encha de chuva
de estilhaço.”


me remeta para algo tão intenso quanto o quadro do fuzilamento de 3 de Maio de Goya.
A casa, como lugar de suposto refúgio, é violentamente destruída. O interior, as pessoas, são arrasados pelo exterior. As “janelas envidraçadas” entregam-se perante a impotência, “de peito aberto”, e a “chuva” e o “estilhaço” entram na divisão.

Porém, há uma óbvia resistência:
“Alguns pilares resistem à vibração
do ar, como soldados suicidas,
enfrentam explosões
da temperatura hedionda
e vão trepidando e se quebrando
antes da desconstrução fatal.”


os “pilares” representam essa força, esses homens (todos os homens de Alepo), essas mulheres (todas as mulheres de Alepo), essas crianças (todas as crianças de Alepo) que se defendem, reagem e lutam contra as adversidades, mantendo as suas convicções - mesmo que para tal tenham de mudar por completo a sua vida e abandonar (fisicamente) as suas raízes.

A destruição faz com que os “gemidos” se convertam em “silêncio”, mas logo voltam os sons, sob a forma de “gritos”, porque a destruição não cessa… porque mesmo quando uma guerra finda vem sempre outra a seguir
“Por alguns minutos, cinzas
sufocam gemidos e estes sucumbem
ao silencio.
Alguns gritos chegam com o vento;
balburdias da correria
pós conflitos”


E quem são esses “bravos monumentos” senão todos esses Homens que lutam pela sobrevivência e nada fizeram para que não fossem deixados em paz?

Um poema muito bem escrito, um poema que causa muito impacto, um poema que mostra o que nem sempre queremos ver (mas temos de ver), um poema que é tão humano que nos toca de um modo profundo e inevitável.


Enviado por Tópico
MarySSantos
Publicado: 31/05/2017 14:21  Atualizado: 31/05/2017 14:21
Usuário desde: 06/06/2012
Localidade: Macapá/Amapá - Brasil
Mensagens: 5735
 Re: A geometria dos escombros
Gosto.

Mary


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/03/2018 10:54  Atualizado: 14/03/2018 10:54
 Re: A geometria dos escombros
Poema profundo que bete nos sentimentos da alma


Enviado por Tópico
MarySSantos
Publicado: 15/03/2022 15:56  Atualizado: 15/03/2022 15:56
Usuário desde: 06/06/2012
Localidade: Macapá/Amapá - Brasil
Mensagens: 5735
 Re: A geometria dos escombros
A guerra e seus capítulos.


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 15/03/2022 17:57  Atualizado: 15/03/2022 17:57
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 1940
 Re: A geometria dos escombros
o caos perfeito


novecentas e noventa e nove
as palavras contadas ao segundo,
para uma imagem de paz no mundo
num tempo parado, que não se move

uma, para que o amor se renove,
ou mais, para que seja mais profundo,
mil, a conta certa, o ar moribundo.
só novecentas noventa e nove

as palavras para descrever o rosto
que fazes ao rir duma graça que disse
sem piada, e tanta falta de jeito

imagens que ficam, pedra sobre pedra
espalhadas no chão, sobre a meninice;
o caos perfeito.