Poemas : 

Arremedar Foucault

 
 
Perto do fim da sua vida, Velázquez quis mais:
ia trazer para o mundo das tintas o da filosofia.
Na companhia de fidalgos, reis e outros que tais,
todas distintas, todas iguais, fez ele o que queria.

Quem visse nas suas duas mãos a paleta e pincel,
acharia que a tela era indiferente doutras, comum.
E eis, o mais estranho auto-retrato, obscuro, infiel,
de quem se pintou pintando outrém e nenhum!

Olhem.

Reparem bem, como nessa sala dos reis de Espanha,
todos convivemos e observamos, a uma só mirada.
Parece olhar-nos quando se pinta e que a luz banha
escassamente o que por ela passa, quieta e parada.

Tantos estão juntos na largura. Há na tela uma tela,
além dela a infanta, loira, dominante, sorri no centro.
Noutra ponta, esclarecida, termina nela uma janela
que dá a pouca luz; quem mais deveria estar dentro?

Olhem.

Aias casadoiras, meninas então, prestes a crescer,
faziam que trabalhavam os seus trabalhos quietos...
Até um cão, com a sua vida de cão, parecia cão ser,
sob o pé dum anão que então não brincava, objectos.

Um intruso nas tintas surge, é parecido connosco,
vê, sem ser visto. Nas costas do artista que resta,
o que aparece e existe é baço, impreciso e tosco.
Só o brilho, nas aspas do espelho, faz a sua festa.

Olhem.

Entre o feito e o por fazer, somos pares desses reis
que posaram, há uns séculos atrás, com mui rigor.
Com sorrisos fartos miram o quadro, seus papéis.
Veem o seu retrato ganhar vida nas mão do pintor.

Velázquez que se pintou pintando o rei e a raínha
(sabemos eles serem porque um espelho não mente)
deu ao encanto um sabor que ele ainda não tinha.
Na obra, esse enigma à esfinge, a intriga à gente.

Olhem.

Cada momento que passa sem medo, se repetindo,
o óleo seca e faz parar o tempo. Todos serão então,
figuras, personagens sem acção, memórias indo,
viagem ao passado, uma incógnita, vã recordação.

Olhem com atenção para todos detalhes, vejam,
procurem no palácio a vossa sombra escondida,
nos passos dados, na riqueza das vestes. E sejam
os autores e os protagonistas desta vossa vida.


Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

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Por regra, não respondo.

 
Autor
Rogério Beça
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/09/2018 17:40  Atualizado: 15/09/2018 18:06
 Re: Arremedar Foucault
.
O teu poema é diferente do habitual, optando por uma lírica menos experimental do que aquela a que nos acostumaste, talvez mais adequada ao motivo clássico e ao tema sério que aborda.
Andamos sempre à volta do tempo, do seu movimento rápido e implacável. A arte cristaliza momentos, mas iluda-se quem pensa que o vence.
Ouça-se o conselho do eu poético: saiam da sombra e tomem o palco, porque ele também vos pertence e, tantas vezes, só nos apercebemos disso demasiado tarde.
Fui rever "Las Meninas" e efetivamente é um quadro muito misterioso, com essas nuances de escuridão/claridade e movimento/imobilidade que o poema tão agilmente descreve.
Quanto ao Foucault... infelizmente, só li o "Vigiar e punir" (se ainda não o leste e decidires fazê-lo, vais adorar certamente), portanto, terá de ser outra pessoa a fazer a relação entre o título e os versos.
Parabéns, Rogério, pelo ótimo texto e um abraço.

Enviado por Tópico
Luizfeliperezende
Publicado: 18/09/2018 14:53  Atualizado: 18/09/2018 14:53
Super Participativo
Usuário desde: 04/11/2017
Localidade:
Mensagens: 184
 Re: Arremedar Foucault
Belíssimo, poema;

Fora do comum, do trivial que muitas vezes lemos.

Bela comparação com os quadros, a vida se secando
no óleo. O momento eternizado. Mas morto, sem ação. Profundo:

"Cada momento que passa sem medo, se repetindo,
o óleo seca e faz parar o tempo. Todos serão então,
figuras, personagens sem acção, memórias indo,
viagem ao passado, uma incógnita, vã recordação.

Olhem com atenção para todos detalhes, vejam,
procurem no palácio a vossa sombra, escondida,
nos passos dados, na riqueza das vestes. E sejam
os autores e os protagonistas desta vossa vida."

Alguns termos como "connosco" com 2 ns, é do português
de Portugal, ou é do português antigo?
Assim como "mui".

Ou foi proposital, para dar ao texto esse caráter do arcaico
em meio ao contemporâneo?

Parabéns. Abraço.