Poemas : 

de incertezas, para incertezas

 

Dos teus olhos
correm charcos. Estão turvos
e com cisco.
Roubam a presença aos olhos.

Deles correm estranhas águas,
caladas e em mistério.
Vagueiam como calados de navio.
Sulcam as entranhas!
Vão errantes, no além do amanhã,
a esquecer o dia que passa.

São charcos que correm,
de incertezas,
para incertezas, em limos e em areias.
Turvos, os olhos,
sem porto para a atracar, esperam
a hora do fim, para alvorar.

Os olhos, não distinguem,
a tímida nostalgia do sulco azul.
Vivem entre medos e sombras.
Nem o voo de um buteo buteo*,
torna real o sonho.

Com ombros, em sombra,
e pés, em vão, exprimem-se
espectáculos de morgue.

Labaredas! Labaredas!...Labaredas.

Labaredas do ébrio papelão,
nos olhos desenham,
solidões domadas e casas feridas.

Por agora, no olhar, não há regaço de consolação.


* Buteo buteo, conhecido pelos nomes comuns de águia-de-asa-redonda, bútio-comum ou minhoto (nos Açores Buteo buteo rothschildi é conhecida por milhafre ou queimado).



Zita Viegas















 
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atizviegas68
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/04/2020 22:11  Atualizado: 22/04/2020 22:13
 Re: de incertezas, para incertezas
A beleza dos olhos, manifesta em dados momentos da vida, para o bem e para o mal. Quantas vezes, entre lágrimas, eles transmitem o negativismo da vida, pela qual, tantas vezes, nos deixamos envolver.
E tantas outras, eles nos incendeiam e consomem, levados pelo prazer, em forma de sedução.

Linda poesia, tão ricamente estruturada, pela qual me deixei envolver.

Fernando.


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 03/05/2020 09:33  Atualizado: 04/05/2020 06:47
Usuário desde: 06/11/2007
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 Re: de incertezas, para incertezas
Errar é um dos verbos mais mal-amados que existem.
Nos últimos tempos tenho-lhe um fascínio que roça o indescritível.
Faz-me viajar para o errante, por exemplo. E para o errado. Depois a extrapolação é simples, o antónimo de errado é certo. Então, outro nome para errado é incerto. Obviamente que por esta fase estão-me a bater à porta para me levarem para o Miguel Bombarda, por estar com silogismos, etimologias e coisas destas do Palavrar (como diria o Poeta).
Pois do “...errante...” para o “...de incertezas\para incertezas...” foi um pulo.
Pois aprendemos mais e mais facilmente com os erros do que com os acertos.
Este poema quer-se, contudo, turvo.
Os olhos que leem e que suportam olhares, e com eles visões e perspectivas, veem-se amiúde, neste poema, encharcados.
Ao nível metafórico, a água como elemento purificador (é com ela que se lava, literalmente limpar com água) transformada em charco, ao nível da imagem coloca-me mais como um pequeno lago, ou uma poça gigante do que propriamente com o movimento que é posto.
Depois, para tornar divertida e leitura que ameaça ser tão séria, aparece a figura do navio (falta só a carta de marear em charcos) e o calado com o seu doce duplo sentido (vão ver o sentido náutico, é revelador) com ligações profundas ao silêncio. Sem motor?
Na segunda e terceira estrofe há duas referências temporais que servem de alerta. O apelo do sujeito poético ao Carpe Diem é intenso, mas parece não ter resposta. “...esquecendo o dia que passa...”, “...esperam\a hora do fim para alvorar”.

Porque o fogo, as “...Labaredas!...” são sem dúvida muito apelativas. A cinza, das quais são consequência, são ciscos que não mais acabam, e nem a metáfora, belíssima, dum milhafre, ou queimado (mais um golpe de génio a combinar com as labaredas) nada podem fazer.

Está na nossa natureza esse errar que me fascina e que este poema é.

Abraço Zita