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Luzes de Natal

 
As ruas pintadas de natal brilhavam-lhe nos olhos já enxugados com um pedaço velho de papel, lembravam-lhe os tempos de infância dos outros miúdos, quando passava com o seu pai e o carrinho das castanhas pela porta do colégio... meninos de um lado, meninas do outro, mas todos com as mãos no gradeamento a fazer-lhes caretas e a injuriá-los.
A vida dos últimos cinquenta anos trouxe-lhe algumas alegrias enquanto trabalhava, mas era a tristeza sobressaía no seu olhar, trataram-no sempre como desempregado, vadio, sem-abrigo, excedente, ofensa, incómodo. Era inconcebível que existisse naquela sociedade um assador de castanhas, sujo de carvão e com o odor persistente do seu ofício. Exigiam-lhe distância e anonimato.
Por vezes, quando se recostava junto às paredes das velhas pontes ou de algumas ruínas que ali houvesse, embrulhado em cartões e em desejos de que um dia tudo melhorasse para aquecer o corpo e a alma, era alvo de asquerosas sevícias que só paravam quando, a medo, entregava aos bandidos o dinheiro feito na jorna.
No dia seguinte partia para outra vila ou cidade, à chuva e com o vento a fustigar-lhe a escassa roupa já rasgada pela vida, o cenário, não poucas vezes, repetia-se. Gente de bem? Pouca. Mudar? Só sabia assar castanhas, era essa a única herança que o seu pai lhe tinha deixado, e não havia ninguém que as tratasse como ele. Tinha uma vaga memória da sua mãe, morrera ainda jovem, tinha ele uns quatro ou cinco anos. Naquele tempo era fácil morrer-se jovem.
De vez em quando, nos caminhos entre terras, entretinha-se a falar e a negociar com alguns espantalhos que ali se aninhavam e entretinham a assustar os pássaros, era a forma de arranjar alguma roupa menos rasgada. Eram os únicos com quem falava, para além dos polícias que o abordavam para que afastasse o seu cheiro da nata da sociedade.
Quando acabava esta época em que as luzes de natal lhe faziam brilhar os olhos, o assador de castanhas, simplesmente desaparecia, como se hibernasse e, até que voltasse, muitos eram os que lembravam o sabor das castanhas, os mesmos que o afastaram no ano anterior.
Ele, por enquanto, ia sobrevivendo, ano após ano, natal após natal. Não tinha a quem deixar a herança. Não tinha quem lhe chamasse pai.


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma

 
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Alemtagus
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/12/2022 16:27  Atualizado: 16/12/2022 23:41
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