Contos : 

Ele escreve direito por linhas tortas

 
Acordou!
Agitou os braços no ar.
Levantou-se!
Os chinelos não estavam no sitio mas nem reparou.
Caminhou até à casa-de-banho.

Ele chorava agarrado a nada com os chinelos ensanguentados, ele gemia, ele sofria, ele doía e saía de si para se ver no espelho. Ele não era! Ele nada. Ele tudo. Ele nem mais nem menos. Sofrido e dorido continuava abraçado a nada com as mãos quietas, mudas, paradas, seladas em gestos que nunca se davam.

Lavou a cara, respirou fundo,
lavou os dentes,
as olheiras não se conseguiam disfarçar.
Deu dois passos e tropeçou nela.


Não tinha reparado que ela se tinha levantado já, não tinha reparado em nada, imbecil, inútil, pensava em si e no quanto não a amava enquanto chorava agarrado a nada com os chinelos ensaguentados. Ele ali não era, ele nada, ele tudo, ele nem mais nem menos e ele ficava ali assim ficava sozinho chorava com os chinelos ensaguentados.

Ela levantou-se de uma noite não dormida,
caminhou decidida até à casa de banho,
sem o gosto da vida na boca, tomou uma caixa de tranquilizantes.
Ficou tonta, agarrou-se à cortina enquanto caía,
a cortina rasgou, o marido não ouviu e ela ficou agarrada ao seu corpo
enquanto uma nódoa de sangue começava a formar-se debaixo da cabeça.


Deitou-se!
Agitou os braços no ar.
Adormeceu!
Os chinelos repousavam aos pés da cama.
Ela caminhou até à casa de banho.


. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
Autor
 
Texto
Data
Leituras
900
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
1 pontos
1
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Tytta
Publicado: 14/05/2008 09:53  Atualizado: 14/05/2008 09:53
Colaborador
Usuário desde: 22/02/2007
Localidade: Portugal
Mensagens: 789
 Re: Ele escreve direito por linhas tortas
Amiga Margarete,
li umas palavras profundas, tristes, solitárias!
A vida é muito mais do que "uma caixa de tranquilizantes". A vida dá-nos aquilo que lhe damos, basta que ergamos a cabeça e esqueçamos o mais pequeno medo que temos de vive-la!
Jinhos, Tytta