aproveito a luz da manhã
para mais uma limpeza
ao pó que contorna
o retângulo no soalho
deixado pela mala de viagem
como limite a giz duma boneca
a dançar momentos antes
nas mãos da criança
adivinhando a asfixia
do seu abraço inocente
o mundo acabou
de telefonar para vender
a última oportunidade
de um destino em promoção
e comprei um cadeado partido
para a mala que já partiu
quantas vezes terei de
estender a garantia de que
a ausência pode ser uma presença
que dentro doutra se vai sonhando?
quantas chaves serão precisas
para franquear uma nudez
presa no canto da alfândega?
quando se ouvirá o altifalante
apregoar os segredos vis
da boca que perdeu a língua?
em que instante se saberá
que o regresso do proscrito
ao lugar onde nunca esteve
é o único modo de sobreviver?
lá fora há já quem me queira
acordado para a vigília
de futuras viagens como se
os olhos abertos
fossem prova de vida
e a cegueira
tivesse a marca do recluso
julgado lágrima a lágrima
enquanto o silêncio de um cão
lhe lambe o rosto
cá dentro só me resta deixar
que a nave sem rumo colida
contra os retratos de sorrisos
suspensos ao contrário
sobre as capas dos livros
cujo enredo já esqueci
porque nunca soube ler
ocupado que estava
pelo medo e pela mudez
com a flanela suja entre os dedos