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Ser ave e poder voar ...

 
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(foto de Mel)

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Existem momentos em que me inquiro sobre o verdadeiro rumo das aves! Voar?
Ou apenas existem para que nos questionemos sobre a fragilidade da nossa própria existência? De comuns mortais almejando sulcar o anil veludo dos céus? Se nada temos por certo senão o facto de que chegámos vindos de um espaço escuro, de um túnel de carne e que a luz do dia nos acolheu e nos disse: - Existe!!!!
Existimos. E nesta caminhada buscamos o eterno Graal Sagrado. A taça de cicuta em que nos afundamos, insanos. Nesta busca, soltamos o animal que em nós habita e que, não raras vezes, nos impede de raciocinar.
Em boa verdade coabita em nós a dualidade sermos racionais - pretendermos racionalizar tudo - e não obstante, sermos animais e como tal, reagirmos de forma instintiva.
Em momentos de tensão somos animais. Todo o nosso sistema metabólico se programa para o ataque ou para a fuga... Fugir... Voar... Voar alto, mais alto, voar ao infinito e do alto, soltar o grito...
Não, hoje não quero racionalizar ... Quero apenas ser ave e voar. Como tu gaivota, que insistes em não abandonar este espaço-terraço, virado a Poente. Olho-te com os olhos líquidos da madrugada. Olho-te com estes olhos de criança, no matiz topázio do verde-mar. (Continuo sempre a sonhar...) Desfoco... já não te vejo, Gaivota ... Apenas um vulto difuso se projecta contra o Poente... Apenas...
A Alma, essa, atracou nas tuas asas e sulca as veias do céu... "espera o ardor do vento para ser ave, e cantar." (1)
Recordo Eugénio... Dentro de mim borbulham as palavras sem bocas, essas que falam de bocas sem palavras...
Desavisadas, as palavras, sopram as nuvens assentes sobre os meus cabelos... num redopelo.
São vento... Despenteado o pensamento, liberta-se de amarras e voa, alado, acalentado nos braços alísios de um tempo. Voa... Voa...
Não, não me digas nada. Que a noite lisa, pura e limpa, borda agora o negro da estrada.
Deixa que o tempo se esqueça de nós. Que as horas, de cansadas, adormeçam sentadas ali na amurada. Deixa que a lua se olhe nos espelhos mil vezes reflectidos, dos meus e dos teus sentidos.
Na nudez imensa das ondas repetidas, ordenadas pela gravidade das estrelas e dos cometas. Pela urgência da gravítica atracção dos corpos.
Não, não digas nada, que cansadas estão as bocas de mil palavras. Mascaradas. Disfarçadas de aves sem asas.
Toma-me a Alma, nesta noite dos dias, e diz-me sem palavras que sou a tua amada.
Enfeita-me os cabelos de astros, entrelaça-os em grossas tranças, como quando era criança. Douradas. Da cor da areia da praia…
Conta-me de ti, dos teus sonhos, dos teus medos, dos teus desejos. Conta-mo na cadência de cada onda tombando, ininterruptamente. De trás para a frente e no reverso, na maré vaza ou maré cheia… Melopeia … Sem palavras.
Conta-mo num lampejo. Do teu olhar. Fulgor …
Esse que adivinho, existir, quando ausente de mim, olho as estrelas equiparadas às asas de uma gaivota projectadas no fundo de um céu azul. Nesta orla de mar.
E menina do Mar, acasalo com ela, os sonhos de navegar … sempre a planar.
E de igual modo, projectada me vejo no verde esmeralda do mar … E no rosáceo das rochas desta ilha tão antiga ou, quando do topo do monte, situado a jusante, vejo o verde prado constante … a ondular e as árvores de tão sozinhas num perpétuo varejar.
Tombadas até ao chão no varejo do vento insano. Choram as hastes partidas, arrancadas assim à florescência da Vida …
Quando a semente brota do chão, o fruto tomba na concavidade da minha mão.
Nesse momento eu sei que existes e, te busco na perfeição de um Mundo (re)construído.
Para te amar. Na melodia do piar de mil aves do mar, das ondas incessantes a marulhar, nos cheiros matizes de sal e pinheiro. No negro-verde de densas florestas. Povoadas de Druidas e de Fadas.
Não, não digas nada. Deixa as nossas bocas coladas, que seladas, falarão mais que mil palavras…

1) Eugénio de Andrade


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Autor
Mel de Carvalho
 
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