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PAZ À TUA ALMA, PAI...

 
MÁRIO PINTO TEIXEIRA
1901/1975

Esta noite esteve vento em mim...
Folhas soltas voltearam-me os sonhos,
uivos longínquos acordaram-me o sono,
insidiosas brisas secaram o orvalho
e aragens limpas sacudiram o pó das minhas recordações...

E vieste até mim, Pai...

De mansinho, com os teus olhos de azul polido, os teus gestos de cuidados trémulos, carinhosos...
Lembraste-me de dias antigos, em que me sentavas nos teus joelhos e me perguntavas de quem é que eu gostava mais... E eu, menina ladina, dizia que era de ti... (se a mãe não estivesse a ouvir!)...
Lembro-me de ti, já velhinho e alquebrado por aquela trombose que tiveste quando eu tinha só dois anos... Já velhinho e eu tão tenra...
Lembro-me de como me protegias, e me mimavas e me defendias, mesmo quando eu era má e escondia as birras atrás das portas...
Lembro-me dos teus adormeceres, debruçado sobre a mesa da sala, enquanto a mãe preparava a ceia, cansado da lida, cansado da Vida...
Lembro-me dos teus adormeceres, entre o desfiar das contas do rosário que nós rezávamos ao serão, enquanto a mãe lavava a louça e nós, pequenos, brincávamos com as brasas do lume, ou com o gato, e com a música das avé-marias...
Era a mãe quem, entre a banca e o pote de água quente, meditava os mistérios e comandava a oração familiar: havia mistérios gloriosos, gozosos, dolorosos... e havia rezas puras, musicadas pela rotina, e salvé-rainhas entoadas de pé, em coro...
Tu, Pai, marcavas o ritmo e ordenavas as glórias, ao compasso do dedilhar do terço, nas tuas mãos nodosas, cansadas... Tão cansadas, que às vezes adormeciam e se esqueciam de passar mais uma continha do rosário... E nós fazíamos-te cócegas e ríamos!...
Pai, onde está esse tempo? Onde guardei essa atmosfera, esses cheiros, esses sons? Onde os guardei, que tão pouco os lembro, tão poucas vezes os deixo inundar-me de saudade? E é tão boa, essa saudade...
Saudade dos tempos em que tu eras meu... Meu Pai!!
Que pena eu não te ter conhecido melhor! Que pena eu não te ter ouvido contar-me a tua história de vida, os teus sonhos, as tuas estradas! ...Que sei que foram compridas, íngremes, atribuladas!
Sei que, em jovem, foste à procura de um Brasil de oportunidades, que vendeste leite fresco nas manhãs do Rio de Janeiro, que cobraste viagens a passeantes de vaidades ou de azáfamas nos bondes cariocas dos anos vinte...
Sei disso por ouvir dizer e por ter lido, uma vez, nuns textos onde escrevias, quem sabe às escondidas, a tua História esquecida...
Há tanto tempo! Lembro-me que o papel era humilde, talvez almaço, não me lembro, mas a letra!... ah, a letra!! Era desenhada em curvas naturalmente elegantes, uma letra feita à altura das melhores canetas de dois bicos, uma letra que valia todos os prémios de caligrafia!!
Que pena eu tenho de não saber desses papéis! Que pena eu tenho de ter perdido o teu rasto, o teu lastro!
Sei que voltaste do Brasil, porque o teu pai, que fora contigo, meu avô que nunca conheci, adoeceu com cancro e quis vir morrer ao seu Douro, ao seu pouso...
Voltaste para as tuas vinhas e as tuas colinas douradas de mosto...
Ecos antigos dizem-me que eras garboso, elegante, usavas chapéu e bengala e as calças sempre bem vincadas...
Sei que te enamoraste da minha mãe, moçoila fresca, à primeira vista, e que a encantaste com o teu ar de "gentleman"...
Sei de domingos barbeados de fresco, em que vestias o teu fato de colete... Penduravas nele a corrente de ouro do teu garbo, juntamente com o velho relógio Omega, que, também ele, se perdeu no Tempo...
Pai querido, Pai forte, fortificado de Amor...
Pai frágil, fragilizado pela idade que tanto te afastou de mim!
Pai extremoso, Pai, meu Pai!...
Que pena eu tenho de não te ter dito outras vezes, mais vezes:
-Gosto muito de ti, Pai!
...Paz à tua alma...

Teresinha

Dia do Pai, hoje, manhã de sol...
(19 de Março de 2008)


Teresa Teixeira


 
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Sterea
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 25/06/2009 17:09  Atualizado: 25/06/2009 17:09
 Re: PAZ À TUA ALMA, PAI...
Oi...
Texto que faz bem a gente ler... Sim, faz muito...
Um abraço e parabéns!
Edilson


Enviado por Tópico
(re)velata
Publicado: 25/06/2009 17:13  Atualizado: 25/06/2009 17:13
Membro de honra
Usuário desde: 23/02/2009
Localidade: Lagos
Mensagens: 2214
 Re: PAZ À TUA ALMA, PAI...
Querida Teresinha:

Não consegui não chorar ao ler o teu texto, pelas emoções que nele transmites e pelas minhas também, pois lembrei-me também do meu Pai velhinho que já partiu (tu bem dizes que sou uma "menina sensível"). Obrigada por nos trazeres sempre momentos de verdadeira emoção vestida a rigor pela beleza das tuas palavras.

Um grande beijinho!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 25/06/2009 17:28  Atualizado: 25/06/2009 17:28
 Re: PAZ À TUA ALMA, PAI...
Minha amiga,

Não sei comentar o seu texto, ainda não fechei o meu luto (10 anos). Só sei que a dor nunca termina.
Chorar não chega, quando acabamos ficamos com sensação de que não deveríamos ter terminado.
No próximo mês vou ler um poema que postei aqui (Pai uma forma de perdão) numa cerimónia muito especial para mim, espero poder cicatrizar esta ferida e recordar alegremente o tempo passado.

Desejo-lhe tudo de bom para si

Um beijo
JLL


Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 15/02/2010 14:23  Atualizado: 15/02/2010 14:25
Usuário desde: 28/07/2009
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Mensagens: 10484
 Re: PAZ À TUA ALMA, PAI...
Não me importa nada de te dizer que chorei agora
aqui e senti o texto como meu como gostaria eu de o ter escrito,
pois é bem o que sinto.
Olha amiga o meu avô paterno também ele ficou
pelo Brasil, deixou cá 5 filhos que a minha avó criou sozinha.Tempos duros e difíceis.
Sabes que me lembro do meu a todo o momento,
aqui em casa bebe-se muito café, por tudo e nada lá vai um café e ele sempre me deitava um pouquinho mais na minha tigela às escondidas da mãe.
Esta é uma das lembranças, mas tenho muitas outras
Adorei vir ler-te, a tua escrita toda ela é
muito emotiva, sensível, delicada só podes ter uma grande alma.

beijinhos obrigada por me dares esta oportunidade
de ler este maravilhoso escrito.

rosa

Enviado por Tópico
PauloCésar
Publicado: 15/02/2010 20:29  Atualizado: 15/02/2010 20:29
Membro de honra
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Localidade: Torre da Marinha - Seixal
Mensagens: 28
 Re: PAZ À TUA ALMA, PAI...
Olá,

Vim aqui empurrado por um comentario num soneto da Rosafogo e fiquei emocionado de tão feliz!
O teu pai deve estar cheio de orgulho da filha que deixou a carrear os caminhos que ele trilhou.
Ainda tenho o meu e há dias postei um poema em sua homenagem; mas este texto cabe inteirinho na memória e na saudade do meu avô paterno! Que eu amo sem denodo, até que Deus queira chamar-me para junto dele!
Parabéns: pelo Pai, que deve ter sido um Homem digno e imenso; pelo Texto que liberta da Morte para chamar à Vida a Memória e a Saudade; pela Mulher que assume pelas Palavras a grandeza do Amor sem tempo!

PC