O Outro Lado de Mim
Por vezes interrogo ao silêncio sem sangue
das estrelas quanto tempo demoraria
a separar completamente
toda a carne dos meus ossos
e quanto mais tempo seria, na verdade,
necessário para fazer passar a alma
num sopro pusilânime
para o outro lado de mim?
S/título
Olhou-me um rosto outro do outro lado do espelho
Hoje ou amanhã ou ontem, não o sei bem.
Olhou para dentro de mim e olhou em minha volta
Com o estranho estranhamento de quem estranha
A familiaridade da âncora que
Quotidianamente ancora
Alguém à sua hora.
Entrei em pânico e saí de mim mesmo
Pela porta fora.
Sei-me melhor no não ver-me
Do que no olhar-me e desconhecer-me.
Cleópatra Dançarina
Só, vejo-me ante a página branca:
A mão engelhada, inerte e exangue
Da tinta vermelha e do negro sangue
Que o noctívago solilóquio estanca.
As luzes das estrelas são sudários
Encobrindo-me as palavras – crisálidas
Manifestações lívidas e pálidas
De débeis e abortados poemários.
Mas ei-la: aparição na brancura,
P’la noite adentro e p’la noite afora,
Almiscarando a alvorada madura...
Descubro-a na veste alva que a esconde
(Trémula doce arauta da aurora),
Amante milenar de um país onde
Das lúbricas areias se erigia
A dissoluta Rainha Cleópatra
Que bebeu o sangue dos faraós,
Dos deuses favorita fantasia...
Tresloucada, viajava pelo Nilo,
Como fosse montada num trenó
Feito de luzes e raios de sol,
Buscando marcoantoniano asilo.
Mas em vão: os musculados e fortes
Braços do romano gladiador
Estavam agrilhoados pela Morte...
Nunca mais veria o seu amor,
O Destino levara-lhe o consorte...
Só restava-lhe um deserto de dor...
Foi assim que a Bela Egípcia virou
As costas ao mundo e à própria vida
E que, numa velha língua esquecida,
Aos deuses e aos homens renunciou,
Pondo-se a caminho do sol poente.
Nos meus versos, as mal acentuadas
Sílabas tónicas são as pegadas
Que os seus pés deixaram na areia quente.
Se eu fechar as pálpebras, ouço e espreito
O sussurrar das folhas no desértico
Coração do poema cujo peito
Atravesso para me alimentar
Do leite de Cleópatra, profético
Vislumbre do seu berço tumular.
E quando ela alcança o topo dos céus,
Vira-se para baixo, de olhar líquido,
Serpenteante foz do fluir nílico,
Deusa que reúne crentes e incréus;
Todo o Cosmos ao Egipto se junta
Como para ver um prodígio bíblico
Que obedece a regras do tempo cíclico
Materializado na bela defunta.
E quem não lhe percorre as esguias
Pernas (que parecem auto-estradas
Onde caravanas de emoções, dias
Após dias, seriam transportadas)
Ainda que, de mortas, sejam frias?
E as unhas quando na carne cravadas
Sabem ao toque dos escorpiões...
Os seus cabelos, longos e escorridos,
São negro chocolate derretido
Por lume sustentado por paixões...
Com o corpo projectado nas dunas,
Onde o vento quente os seios lhe beija,
Perfila-se quem o mundo deseja,
Tatuada de hieróglifos e runas:
A inventora de todos os sentidos,
Sob a pele cor de aroma de café,
Acena-me de dedos estendidos
Do alto da Grande Pirâmide de Gizé,
Masturbando-me em lentos passos de ballet...
anjo com boca de palhaço
ao sabor de algodão doce e ao som de trompetas feéricas
contemplei um bando de brancos cisnes caindo do céu em uníssono
numa chuva de penas sorrindo sobre a cabeça das crianças da noite
adormecido o vento repousava dormente na garganta
dos lobos que aguardavam em silêncio sobre a líquida superfície
da terra pela chegada dos cadáveres das aves solidi
ficando à espera como sangue seco na pelagem negra
e nos dentes brancos brancos como os cisnes
os lobos aguardam os olhos amarelados para o céu revirados
as mandíbulas abertas e pingando baba os ácidos estomacais a trabalhar
aguardam os lobos pelo voo dos cisnes
as almas dos lobos empaladas nos corpos dos ciprestes
e o som metálico do movimento de um carrossel pelas sombras iluminado
começou a ganir a chorar a ranger a uivar
enquanto ali me prostrei eu os joelhos já em sangue na lama
onde archotes eléctricos desbravam a escuridão com mil cores
e descobrem a cabeça de um anjo maquilhado com boca de palhaço
andando à volta em revolta e em reviravolta num carrossel de horrores
Obituário
Penso que terá sido de anteontem
A quinze dias
Que acordei às 4 da tarde com a lua
À minha cabeceira
Mascarada de enfermeira
E segurando a página do obituário
De um qualquer jornal diário. Estendeu o
Seu braço de luar e deu-ma
Para que a pudesse ler:
“Poeta desconhecido morre em cirurgia
De rotina. Durante
Uma laparotomia
Uma alcateia de láparos fugiu
De dentro da sua lura no abdómen
De Alexandre Homem
Dual
Levando consigo o coração do escritor
Desconstruído em pequenos pedaços.
No lugar do coração, foi encontrada
Uma lapa funérea com um poema inscrito
Mas ninguém o pôde ler porque o seu autor
Morreu antes sequer de o ter escrito.”
Sorri e devolvi o jornal à lua. Ela serviu-me
Uma chávena de café e perguntou-me
O que dizia o poema. “Amanhã Chovi”, respondi-lhe.
Ela sorriu-me de volta imediatamente antes
De regressar ao céu nocturno. Ainda hoje, nos meus poemas,
Lhe trago o sabor da carne – e do café – na ponta dos dedos.
Alexandre Homem Dual
Auto-Retrato
Ao lamber um borrão de tinta do meu dedo,
Surgiu-me na língua a ideia de usar
O céu da boca como Capela Sistina
Mas, em vez de pintar a Criação, fazer
O meu auto-retrato. Mas não sei que diga.
Por agora, só me ocorre dizer que tenho
(E normalmente não escrevo em alexandrinos)
A pele marinada p’lo sol mediterrânico.
De resto? Satanista. Comuneu. Atânico.
Natureza Morta: uma carcaça disposta numa cama de flores
a vida é uma puta pestilenta
coberta de pústulas plenas de pus
e de ironias pusilânimes
uma chaga cheia de chamejantes
infortúnios repleta de bichos
comendo-nos de dentro para fora
rompendo o fino véu do hímen
putaveril de uma vulva inodora
ah que bem cheira a primavera no equinócio de março
S/título
Dizem que Abel caiu ao pés de Caim,
Qual mártir e fratricida unidos pelo sangue derramado.
E que Caim foi filho da Malvada Serpente que nos tentou a todos.
Tentou e conseguiu…
Mas ele vive na ponta dos esquálidos dedos do Mago
Que sara a pútrida gangrena dos olhos que o observam
– E que o vêem! Sara o Mago
Abrindo feridas com cuspo fechadas, fachadas
Com lágrimas e pus pintadas;
Rasgando as folhas da Árvore Primordial à incestuosa sombra
Da qual Adão e Eva se habituaram a deitar
(Ah, sim, a Humanidade é um animal de hábitos,
Hábitos sob os quais se escondem terríveis segredos,
Como falsos falos pingando salmos e recitando sémen);
Dançando sobre as falhas tectónicas do Paraíso Celestial.
Aos pés de quem cairemos nós? Eu escolho não perecer
Esmagado por titãs de pés de barro. Vem, Mago, lambe
E sara as nossas feridas…
Botão a Botão
Botão a botão, o tempo é desabotoado
Nesse teu corpo de flanela
Onde embrulhado e quieto,
Muito quieto, te vejo dançar à volta do espelho
Iluminado pelo ecrã de cinema.
Os teus gestos são ora lentos ora rápidos
Mas sempre silenciosos como se o vento parasse
De soprar no exacto momento em que as folhas
Avermelhadas pelo bafejo do Outono e caídas no chão,
Junto aos teus pés, se levantassem,
Como que renunciando à escuridão do Inverno por vir
E almejando voltar aos galhos da árvore
De onde caíram. De volta à Primavera, longe
Do tempo linear.
O meu coração é um relógio avariado
Avançando para trás no tempo, em busca da hora certa em que te conheci
E em que te amei.
E quando os primeiros raios de luz pintarem o horizonte do solstício de Verão
Vou simplesmente dizer-te
Boa noite...
Inspirado pelo filme "The Curious Case of Benjamin Button"
Servidão Humana
Intenso brilho cegante
Conduz negros olhos crédulos
Por vasto mundo incessante
Sentido por dedos trémulos.
Em lânguido passo seguem,
Em longa fila indiana;
Severos lordes os regem,
Feliz cegueira humana...
Espreita o vate outro trilho...
"– Silêncio!" – silva o chicote!
"– Não abras teus olhos a outro brilho
Ou verás tua morte"...