Poemas, frases e mensagens de luscaluiz

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de luscaluiz

Nascido em Guararema no ano de 1991. Finalizou o Workshop de Criação de Poética com o professor Brian Belancieri  em 2021 e atualmente é seu aluno no curso "A Arte do Verso".

QUASE UMA LIÇÃO ESTÉTICA

 
Quando menino as minhas preocupações eram mais importantes. Veja bem, sem grandes ambições, bastavam-me umas tantas caixas de sapato. Nelas incrustava uma série de personagens inusitados, repletos das mais peculiares características, disso a chamarem de prosopopeia - coisa a chegar ao meu conhecimento tempos depois. Havia pedras, pedaços de madeiras, tampas de garrafas, antitranspirantes vazios e o que mais surgisse do descarte dos outros em casa. Se não existia nenhum valor nelas mesmas enquanto objetos, na minha imaginação formavam um pequeno tecido de personalidades tão extraordinários e singulares (singular o quanto se é possível na infância) que doía-me toda vez da necessidade de descarte.

Depois de harmonizado ao íntimo, quando algo ou alguma coisa torna-se parte de nós, o romper sempre deixa marcas profundas. Mesmo se a vida existir apenas numa espécie de dimensão metafísica - termo a escapar da minha cognição à época. Mas em minha mente estavam claros os traços de cada um deles, o seu andar, a sua postura e a ginga em campo. O espaço encontrava-se já delimitado com precisão milimétrica, aristotélica; cuja demarcação da imaginação, afirma, depende diretamente da memória. E eu vivia inteiro para o futebol.

Com o tempo dei a preocupar-me com outras questões - sérias quanto fossem -, porém sem deter em nada aquele intenso brilho de outrora. Questiono-me dia e noite sobre a escrita: o que é escrever? - Mais: o que é escrever bem? E não consigo chegar a uma conclusão clara, límpida feito os gols, as narrações; os flashes imagéticos tão vívidos ante os meus olhos. Tenho ciência, hoje, as cenas carecem estar desanuviadas na visão interna, beirando o concreto, para depois serem transmitidas as palavras.

Crescido soube de alguém ter escrito "As coisas que não levam a nada têm grande importância" e não pude deixar de sentir-me contemplado no lirismo de certa forma. De repente, muito cedo eu sabia nuances da natureza humana, das quais o tempo - sempre o tempo - tratou de turvar. E agora cabe-me o trabalho de escavar superfícies até rememorá-las.
 
QUASE UMA LIÇÃO ESTÉTICA

CONTRASSENSO

 
O tempo sempre se acossa,
eis a ironia dessa vida
refletida: crer na nossa
aparência falha, fluida.
 
CONTRASSENSO

ESSA É UMA FICÇÃO ESPECULATIVA

 
Acaso refletirmos de forma minuciosa sobre a questão da viagem do tempo, é fácil chegar a conclusão que, sendo possível, ela já existe, pela óbvia condição de serem, passado, presente e futuro, simultâneos. E nada impediria de estarmos vivendo uma linha temporal alterada por algum viajante do futuro.

São com coisas assim que ando na cabeça. Veja bem, a vida é uma grande especulação. As verdades universais sofrem alterações. Claro, há as leis imutáveis, sem as quais o cosmo seria irrealizável. Mas aquilo em torno delas, suas inúmeras discussões, são meramente conjecturas mais ou menos afortunadas. Os filósofos praticam esse exercício desde milênios. Dominam-o como ninguém. E, não fosse isso, ainda estaríamos atônitos ante os fenômenos naturais.

A ciência ocupa, hoje, lugar de destaque nesse quesito, quando busca as respostas aos mistérios fundamentais da existência humana. Tem sempre a pose racional, o ar pomposo do argumento de autoridade na retaguarda, como parte do marketing; as pessoas costumam mesmo comprar ideias enlatadas.

Li dia desses um artigo afirmando que se viajássemos mais rápido que a luz, seríamos capazes de ver outras linhas temporais. E eu não pude deixar de pensar na possibilidade - assumindo o absurdo - de encontrar algum outro eu. Teríamos tempo (se faz sentido o uso dessa expressão) de discutirmos questões importantes das nossas vidas, fazer o balanço do básico, se foi feliz, amado, como anda o Corinthians... Embora, trago convicção, ficaria na cabeça uma dúvida elementar (na cabeça de todos os eu's, conheço-me bem, afinal) sobre serem eles - não eu - uma espécie bizarra do paradoxo do navio de Teseu.

No fundo, essa terrível inquietação nos move. Mesmo sendo o absurdo o primeiro passo. Viagens no tempo são impossibilidades filosóficas, tenho ciência. Contudo, a filosofia surge do espanto - quem disse foi Aristóteles. E nenhuma outra coisa é um espanto maior que ter consciência de se estar vivo, aqui e agora.
 
ESSA É UMA FICÇÃO ESPECULATIVA

SAGRADO

 
Ser a poesia, por inúmeros aspectos, uma extensão da infância – creio eu – todos hão de concordar. A criança é capaz de sutilezas espontâneas que nenhum adulto, mesmo o melhor poeta, jamais poderia conceber. O nível de observação para com as miudezas da rotina torna a vida sempre um espetáculo estimulante, mesmo onde nada acontece em aparência.

A Guararema do final dos anos 90 tinha um charme todo especial. Pelo menos, aos meus olhos deslumbrados de infância. Diferente em muito do município turístico dos dias de hoje, esse ponto de respiro para transeuntes de localidades maiores; cuja pressa se mostra sempre um traço característico e contrastante para com as nossas ruas, vias de uma pacacidade que chega a enervar. Era diferente e não faço aqui qualquer juízo de valor, apenas atesto algo factual.

Os eventos aos quais eu frequentava, em geral as festividades da paróquia de São Benedito, dentro do pátio do salão paroquial; permitiam-me um espaço seguro para praticar o exercício de ser criança na essência: o pega-pega trombando em pessoas desconhecidas. À época da Guararema em paralelepípedo, aquele “estacionamento do padre” nutria (em parte) a vida social da cidade com suas quermesses (leia-se Festa do Divino).

Aos oito anos de idade nenhum dos grandes questionamentos humanos tem importância. Se se pode correr e testemunhar tombos alheios, tudo está em paz. Embora fosse perceptível certa tensão com a proximidade da big data. A virada do milênio e atarracada a ela, o armagedon. Por isso o riso deveria ser sagrado. Era inconcebível, para minha cabeça, adultos esbanjando-os nas ocasiões mais frívolas – em pequenas rodas de amigos por barracas de bolinho caipira ou pastéis onde ninguém estava a cair. Gargalhadas proferidas sem quedas no raio de visão são meros desperdícios. Uma criança sabe disso. Há ligação intrínseca entre os músculos se esborrachando ao chão e a boca fazendo o movimento de orelha a orelha. Senti-me Prometeu provedor do fogo: pessoas grandes desconheciam a premissa mais básica sobre existir. Observava-os em caráter de julgamento procurando míseros sinais de lucidez. E nada. Sob as caudas das frases aleatórias surgiam eles, os sorrisos, sempre deslocados. Nada de trombadas, tropeções. Todos a ostentar equilíbrio.

Mal podia supor ser essa instabilidade um atributo da personalidade adulta, foi preciso abandonar a ingenuidade por completo para percebê-la; e então, começar a compreender o humor inadequado e involuntário do qual, cedo ou tarde, nós terminamos por fazer parte.

As coisas mudaram muito, bem verdade, tornei-me o adulto cauteloso, rindo de coisas aleatórias, e, temerário com os tombos. Guararema também mudou, conheceu o asfalto, cresceu e as festividades precisaram ser realocadas; tal qual o meu próprio núcleo de consciência. Mas o riso continua sendo sagrado, disso trago convicção; embora tantas vezes as piadas de mau gosto me tiraram risinhos culposos. Sei ser necessário refiná-lo ao ponto de lembrar a infância, onde a espontaneidade desferida é capaz – feito a poesia – de acalantar.
 
SAGRADO

CRIANDO UMA NEWSLETTER

 
(Texto de estreia da minha Newsletter: https://lucasluiz.substack.com/p/criando-uma-newsletter?sd=pf )

i.
Meu início foi como o de qualquer autodidata viciado com a visão romantizada do ofício literário: pensava que escrever tinha a ver com talento. E, claro, era eu um desses seres abastados pelo divino, alguém cujas musas beijaram as mãos. Então, sonhava o sonho desses todos à época da internet: criar um blog, atrair milhares de leitores deslumbrados por minha genialidade precoce, para – depois – ser descoberto por algum agente ou editora, publicando e vendendo centenas de milhares de livros de maneira contínua. Bom, afirmar a tremenda ingenuidade disso tudo seria dar cabo ao óbvio.
Nos idos de 2010 dei a início a minha empreitada online, estreava no site Recanto das Letras, por indicação de um conhecido – conhecido este que afirmava ter conseguido angariar alguns euros com seus versos em revistas diversas da área. Restava-me aguardar os louros, mesmo sem a mais mínima noção do funcionamento de um periódico literário ou mesmo do site.
A internet gerou-nos uma falsa sensação de audiência com o advento das redes sociais, como se existisse de fato um público sedento de interesse por nossas banalidades. Até certo ponto foi isso mesmo, mas uma estrutura desse tipo já nasce datada.
A necessidade de buscar alternativas viáveis para a construção de uma audiência realmente interessada no trabalho por mim produzido trouxe-me aqui ao Substack. Uma audiência capaz de criar um diálogo maduro, afeita às discussões técnicas e a busca constante de um aprofundamento literário.

ii.
Os meus primeiros rabiscos catalogados datam do longínquo ano de 2008, até recordo-me de outros, precedentes, mas hoje se tornou apenas memória distante e incolor. Como, por exemplo, a malfadada escrita de letra musical aos oito anos de idade, quando ainda contava com a condescendência familiar, sendo elogiado para não ter retirado de mim o entusiasmo infantil da descoberta. Outra lembrança fixa vem da escola, precisamente a quarta série, no exercício de redação, cujo tema era o surgimento do arco-íris, e, eu, munido de imaginação, fui capaz de criar uma fábula elaborada – o quão possa ser para alguém de dez anos – onde a morte do bondoso rei, fazia-o renascer no céu feito sete cores, e, com isso, terminei por ganhar palavras elogiosas da professora diante toda classe mesmo com a nota média de corte. Contudo, de concreto, inúmeras folhas soltas de cadernos, onde quebrava as angústias adolescentes em estrofes, na tentativa de encontrar-me no deslocamento desde cedo imposto a mim. Aí se deu o início do processo, antes de sonhar em construir um projeto estético dalguma permanência, eu já buscava a estada no silêncio.

iii.
"É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez." - Quintana

Compreendendo com mais afinco as questões do trabalho – e literatura é um trabalho com T maiúsculo, árduo e contínuo – dei de cara com a realidade crua: não existe qualquer glamour na escrita. O caminho segue a direção oposta, de minuciosa lapidação das frases/versos, feitos sempre nos instantes mais solitários onde o silêncio repousa. Um movimento repetitivo, circular, de retomada. “A” ideia demonstra-se insustentável nesse processo. Mera ilusão da visão romantizada. Há necessidade de atenção aos mais mínimos detalhes, feito um escultor tirando os excessos para deixar visível o corpo. Mas isso por si só não basta – literatura não está na sua materialidade. Ou melhor, não está APENAS em sua materialidade. Ela surge (como toda arte) de uma espécie de tensão entre forma e conteúdo. E conseguir identificar esse filete requer certo amadurecimento espiritual para afinar a intuição da melhor maneira possível.

iv.
Certo sentimento agridoce toma-me quando releio as minhas participações por alguns dos Periódicos Literários existentes por aí, um pequeno orgulho de ter conseguido aparecer nesses espaços depois de inúmeras negativas – ou seja, resiliência e força de vontade para reconstruir o necessário, ajustar as arestas – mas, hoje, ao mesmo tempo, instala-se um forte constrangimento ao notar a insuficiência daqueles versos tão somente pretensiosos. Andei em círculo durante vários anos, crendo dar passos na direção de algum êxito literário, quando tudo que fazia era cavoucar um único lugar. Por sorte (ou providência – mas o que é a providência senão aquela incansável vontade de fazer acontecer?!) encontrei o Masterclass de Criação Poética de Brian Belancieri. Eis um soco na cara. O sacode necessário para fazer despertar do torpor da vida inteira: eu não sabia nada. Contudo, a vivência na pele de um pensamento socrático (ao menos atribuído a ele) fora o combustível para continuar com ainda mais entusiasmo – sabendo que não sei, já estou passos à frente da grande massa.

Como primeira recomendação deixo o endereço de sua Newsletter:

https://substack.com/@brianbelancieri
 
CRIANDO UMA NEWSLETTER

A escrita é um exercício de paciência

 
Um dos maiores problemas do escritor autodidata iniciante é a ânsia por atrair leitores. Na voracidade do mundo virtual onde todos têm algo a dizer sobre a inquietação de saber-se prestes a morrer, valemo-nos sempre da pressa. Cada um de nós, sendo um universo particular, têm muito a expressar. Dois são os impulsos naturais ao homem: cantar e narrar histórias. Escrevemos para sermos lidos, decerto.

O problema está quando essa angústia cega-nos por completo, fazendo-nos cair num ciclo de autocomplacência que, via de regra, apenas joga-nos pelo caminho da frustração. Sempre mais fácil render-se à ideia do "gênio incompreendido", cujo talento não é contemplado por fatores alheios a si. Essa espiral negativa, pode principiar-se de maneira imperceptível, quase nunca repleta de sinais homéricos (somos àquilo que fazemos com constância, afinal); iniciar-se com algum sentimento negativo com relação aos mais próximos, do tipo – "fulaninho não tem cultura" e escalonar para um tipo de mágoa paralisante.

A linguagem enquanto arte, e, mais, enquanto belas-artes, tem as suas próprias regras e estruturas que precisam ser assimiladas de maneira coerente por quem propõe-se a embrenhar por ela. Exige meditação diária. Naturalmente, o acuro técnico requer um alto nível de dedicação, o que tende a ser cansativo. Quando ouvimos o jargão "escrever é mais transpiração e menos inspiração" temos de ter a consciência de seu referente na realidade. Como colocado na premissa, todo e qualquer ser humano tem histórias a contar, a questão está na forma. No como expressá-la da maneira mais eficiente possível.

Aprendi - e tenho aprendido a cada dia - nesse caminho de mais de uma década aventurando-me como aprendiz da literatura pela internet que o meio eficaz para gritar "Eu estou aqui!" é oferecer a reflexão e as dúvidas ininterruptas aos confrades.
Gerar valor ao próximo, mesmo se mínimo. E gerar valor para arte está em vivenciá-la desde suas entranhas e devolver ao mundo os frutos colhidos, para assim tentar ajudar a sanar a fome contemplativa de outros tantos, perpetuar as suas sementes para gerações vindouras. Pelo exemplo. Com erros e acertos.

A minha grande aliada nesse processo tem sido a paciência. Paciência com o processo – a arte tem seu próprio fuso. Paciência para comigo mesmo, como quem reconhece-se ainda muito distante do almejado, mas sabedor do valor de cada passo.

(Tudo isso para dizer que estou iniciando uma newsletter com o foco no meu processo criativo, minhas referências, angústias, todas as "maluquices artísticas" das quais sou adepto, para assinar: https://lucasluiz.substack.com/
Bom, é isso. Espero vê-los por lá. Um abraço!)
 
A escrita é um exercício de paciência

Gênese

 
Os olhos — ponto de impacto
a criar ondas transversais

Os olhos conclamam
todo este frêmito — e chamas
à face

as quais

o calor d'uma sílaba — exata
vivifica o tempo o templo
(faísca pelos poros):

fosfora rente ao céu da boca
— flamas tochas fachos

o fogo inventado de sempre
e uma e outra e tantas vezes mais.
 
Gênese

Arkhé

 
p/ meu sobrinho Pietro Miguel

"Depois de servir a Deus (Apolo), entendi que um poeta, para ser um verdadeiro poeta, deve trabalhar os mitos, não os argumentos" - Sócrates/Platão - Fédon

Nem sabe ainda suas origens
nem Mnemosine fez-se presente
aos seus olhos

Intui — intui o canto
o mesmo canto dos primórdios

Algo no mar pretérito e profundo
feito um ponto
por onde repousam os olhos
criadores

(os mesmos olhos)

Mansidão numinosa — transparente
de onde surgem outras águas

Algo no mar pretérito e profundo
feito um ponto
pequeno
pequeno e quase imperceptível

Onde coube a pausa para o caos
(efeito e causa)

Tudo era o mar — enorme
negrume no horizonte
distante em eras

Algo no mar pretérito e profundo
feito um ponto — antes
e antes o sopro revolto
fez-se tudo

da luz

Os olhos criadores coordenam
as feras.

(Poema de abertura do meu livro de estreia - trabalho em andamento)
 
Arkhé

As Águas Lascívas

 
Sonhar sonhar o eterno calvário
tê-lo nas palmas sem abrir mão
ofertá-lo à Caronte — e o destino
mesmo vário sonhar fundi-lo
em espécie de comunhão

O coração ao peso da pena
à qual Osíris balança — cheio de pesar
lança-se ao cheiro feroz
daquilo mesmo que negou importância

Pelas águas os olhos escorrem
desencontram o espelho condenam reflexos

Erguido o altar (tudo é muro)
o sonho da carne jaz oco
— marcar o eterno com a carnadura
de um mísero sopro.

(Versão 1, trabalho em andamento, ainda sem qualquer revisão)
 
As Águas Lascívas

Prática de Concentração

 
Circular: um círculo e um ponto — dentro
do véu concentrar à dentes
e colar defronte — espécie de colar
celestial desd'este ponto

Eis o ponto — observá-lo atento
até esquecer-se do círculo
(e todos os pontos circundantes)
retorno à Adão por um tempo

pelo sopro pelo condão — cordão
umbilical ao Éden
pelo sopro esvaziar-se:
espécie de jejum

(origem de todos os santos)

Cultivá-lo até o pulsar em espiral
mitigar a carne — pelo sopro

círculos-concêntricos (pedra n'água)

orbitar daí: o próprio centro
em movimentos contínuos
centrípetos.
 
Prática de Concentração

O TEREZA

 
Eu conheci o Tereza ainda na tenra infância – sim, o Tereza, por ser um homem apelidado dessa maneira. O Tereza é uma dessas figuras folclóricas conhecidas por todos os moradores. Há desses em cada cantinho do mundo. O "Maluco!" cujos dedos apontam-se, uns poucos olhares compadecem-se e os narizes empinam-se. Mas do que trata-se a normalidade social senão uma grande máscara? Quantos, e quantas vezes, sufocam-se as individualidades em prol dessa busca vã por aceitação? Além de tudo, há de ser o completo tédio os reflexos absolutos. As diferenças fazem de nós humanos, eis o tempero da existência, já há muito refletido em Sócrates: — a alteridade.

Contudo, a peculiaridade do Tereza não encontrava-se na pecha de doido; todos nós, sem exceção, no ambiente (des)adequado também o somos. Quase nunca sabemos do dito em nossa ausência, afinal. Tereza era extraordinário, digno de atenção, por uma característica: seus passos sempre terminavam interrompidos por ações súbitas e frequentes — desenhava uma cruz ao chão, antes de ajoelhar-se à rua e fazer um tipo de oração. Pouco importava o ponto da cidade à qual se encontrasse, fosse o centro pomposo, às proximidades da Matriz, ou em direção ao bairro do Itapema (onde eu morava) - de certa distância e à época ainda com estradas de areia; os gestos continuavam os mesmos. Sem tirar, nem pôr.

Corria à boca miúda que o fator decisivo para a instabilidade psicológica dele fora a morte da mãe. Nunca interessei-me em confirmar a veracidade do boato, somente sabê-lo saciou a curiosidade infantil. Por muito tempo o seu vulto permaneceu apagado de minha memória. Porém, hoje, ao refletir sobre aspectos da identidade guararemense tomou-me os pensamentos de forma abrupta.

Os traços inesquecíveis de um lugar estão nas cicatrizes das pessoas à viverem nele; não são os normais confessos, os burocratas, os políticos, os nulos que as conservam. Esses jamais! As marcas indeléveis à alma de uma região jazem dos marginalizados.
 
O TEREZA

A FORÇA DOS EUFEMISMOS

 
O brasileiro nasce cristão, a maioria celebra – ainda na tenra infância – seu batizado. Depois tem por direito (dever no que depender dos familiares mais fervorosos) confirmar essa consagração inicial por sua vontade própria. É bem verdade, porém, que há as inúmeras deserções quando se começa a pensar por si mesmo ou crê-se na ilusão de fazê-lo – o que quase sempre coincide.

Frequentei de forma assídua a igreja, fui católico a rigor, principalmente, ali nos meus primeiros anos de vida. Típico morador do interior encontrava nas missas semanais a oportunidade de visitar o centro da cidade, evento que de outras formas acontecia com raridade. Ou seja, desde cedo fui apresentado a gama de eufemismos utilizados para evitar os ultrajes propriamente ditos. Tornei-me perito em eufemismos bíblicos, xingamentos adornados de bênçãos, desde essa época, quando necessitava de tais atos solenes para apresentação dos meus grandes dotes naturais, do tipo chutar latinhas em praça pública. Exercício de paciência, autocontrole e, em algum nível, também, arrependimento – arrependimento para os pais por não conseguirem ser mais incisivos nas broncas em momentos específicos (o que aqui poderia significar algumas cintadas).

A cerimônia funcionava descomplicada, crianças do lado de fora da igreja correndo desesperadamente como se o mundo fosse acabar, e os pais rezando pelo mesmo motivo. Acontecem, no entanto, dissidências bélicas quando reunidas inúmeras delas num único ambiente, pois pequenos gestos descambam para o conflito. Ainda mais em discussões mortais do tipo "quem está no pega?". Magricelas, feito eu, carregavam a função específica, já inerente ao arquétipo de bode expiatório, de canalizar no próprio corpo a frustração dos rebentos maiores com toda a delicadeza de socos e pontapés.

O ambiente, tal qual se espera, era avesso aos palavrões, dos quais ainda trazia pouca fluência, confesso. Mas em mim, feito em toda criança, pulsava o sentimento transgressor suficiente para me fazer arriscar, no alto e bom som, “Putz grila!”, prontamente repelido com o cortês sinal das mãos – um tapa tão forte que marcou cinco dedos pelas minhas costas. Não tendo forças para o revide contra o iminente agressor, justo defensor dos bons costumes, aproveitei-me de certo distúrbio na força, a raiva me tomou por completo e revidei na cautela de escolher outro menor. A satisfação pessoal ruiu à primeira lágrima da vítima. Arquitetei rapidamente o plano de fuga – plano infalível – correr. Correr até me tornar um borrão indiscernível na paisagem. E lá fui eu, depois de quatro voltas, na primeira respiração ofegante, eis o dedo em riste e o berro abençoado ressoando aos ouvidos: Amado de Deus!

Se o brasileiro já nasce mesmo cristão assim como presumo, é preciso dizer: naquele instante eu tive a confirmação da vocação. Não fosse a casa de Deus, estaria numa enrascada gigante. Deu tudo certo, hoje faço proveito dos eufemismos, permaneço longe de encrencas como bom covarde, e tento – ao máximo – utilizar as palavras para ser fator de soma. A boca diz aquilo que o coração está cheio, afinal.
 
A FORÇA DOS EUFEMISMOS

A OBRA PELOS PÉS

 
(Versão revista, com pequenas correções de estilo, crônica originalmente postada no Jornal O Novo em 23 de Novembro de 2021. Disponível em: https://onovo.com.br/lucas-luiz/a-obra-pelos-pes)

Através da literatura torna-se possível conhecer outras condições possíveis ao homem, sem às quais seria demasiado limitado o seu horizonte de realidade. E assim se deu o meu primeiro contato com uma obra narrativa – embora não percebesse tamanha inocência da idade.

A atração, bem verdade, fez-se instantânea por tratar-se de um universo familiar à minha infância; todas as forças imaginativas existentes em mim confluíam em direção ao futebol. Desde disputadíssimas pelejas entre os mais variados objetos: isqueiros, tampinhas, brinquedos de super-heróis (sem nenhuma malemolência, vale a ressalva) e os próprios dedos (esses ágeis feitos os anjos de pernas tortas). Passando pela expansão mental deste universo, para clubes com sedes (caixas de sapatos) e países inventados, contando com negociações milionárias (a cotação atual do dinheiro de Banco Imobiliário em nada faz jus a essa época áurea) e um craque: eu; até as partidas reais com os amigos reais pelos campinhos do bairro.

Daí a conexão com “Uma história de futebol” ser irresistível. A narrativa gira em torno da amizade de Zuza e um tal Dico, que, por obra do destino, viria a tornar-se Pelé. Mergulhei de cabeça no enredo ao ponto de sentir as emoções dos personagens como fossem as minhas. E, de fato, eram. Também, eu, conseguia conduzir uma bola com competência, ao menos naquele contexto micro, do quarteirão. Para depois aprontar traquinagens do tipo roubar poncã direto do pé.

Vivi cada parágrafo com o entusiasmo de um biógrafo ao conseguir informações valiosas já perdidas na memória do biografado. Tratava-se de Pelé dando os primeiros passos tais quais os meus. Então, por que não sonhar o mesmo destino?

Afirmar que eu não tenha virado nenhum fenômeno é dar cabo ao óbvio. Os anos engoliram-me essa quimera. Nem tanto os anos, a realidade implacável. A necessidade de aceitar-me sem autocomplacência e aprender a cavar sob os próprios pés. Mas de tudo ficou-me a valiosa lição em retrospecto: viver cada leitura como uma extensão das probabilidades da existência para ampliar a própria consciência.

A transição em nada foi-me custosa: na imaginação encontram-se todas as sementes. Os meus gols mais bonitos jamais os fiz, mas sei ainda persegui-los.
 
A OBRA PELOS PÉS

QUAL É A FUNÇÃO/UTILIDADE DA LITERATURA?

 
(O texto aqui reproduzido é a transcrição literal de uma reflexão pessoal compartilhada em áudio no site Recanto das Letras)

Uma questão que vez ou outra retorna para atormentar e assombrar escritores, estudantes, entusiastas e amantes da literatura de forma geral é: qual a função da literatura? Qual é a sua utilidade?

Quase sempre as respostas formuladas para essa indagação são vagas, não acrescentam nada de concreto. É bastante comum que se diga ser expressão das emoções, manifestação das paixões, uma espécie de transcendência... E há uma resposta muito repetida: — a literatura é inútil. A ideia de inutilidade da literatura – das artes em geral – gera certa confusão. Gera confusão por utilidade hoje ter se tornado sinônimo de aplicabilidade, ou seja, meio para outro fim. E numa sociedade extremamente materialista, hiper-consumista como a nossa; meio pra ganhar dinheiro e status.

Nesse sentido a literatura de fato é inútil.

O que não significa de maneira alguma ser sem propósito, a literatura tem um aspecto importante (dentre vários) de construção da cosmovisão do indivíduo. Ser alimento para o crescimento da visão de mundo da pessoa. A cosmovisão é tudo aquilo que constrói a personalidade do ser humano: suas ideias filosóficas, psicológicas, suas questões morais, paixões e etc. O brasileiro médio normalmente tem a sua cosmovisão pautada nas relações de ordem imediata – na família (que é o seu primeiro contato com a manifestação do outro em algum nível), com os amigos, na escola, na religião e, quando muito, na universidade.

Então – via de regra – essa visão de mundo termina por ser demasiada restrita. E isso se pode provar facilmente ao ouvir alguém falando sobre os seus anseios, medos, expressando opiniões a respeito das questões de ordem do dia (política, por exemplo). É quase sempre repetição do lugar-comum, de ideias intersubjetivas, captadas do meio social e sem qualquer esforço de reflexão mais aprofundado.

A literatura tem caráter de alimentar uma cosmovisão porque versa com as infinitas possibilidades do homem. Quando se está lendo um determinado enredo, determinada narrativa, está exercitando a sua visão e o seu conhecimento de mundo. Ali torna-se possível entrar em contato com culturas diferentes, visões religiosas completamente distintas, questões filosóficas jamais refletidas, de ordem psicológica e etc. Isso nos dá perspectiva. Você passa a lidar de forma mais profunda com o mundo. Algumas questões de ordem imediata que pareciam importantes vão sendo realocadas ante o grande quadro da miséria humana.

A literatura – nesse sentido – é alimento espiritual, da essência. Essa é uma das suas inúmeras utilidades. Tornar-nos mais humanos ao aumentar nossa capacidade de interpretação do mundo, do meio social ao qual se está inserido - logo, de conhecer-te a ti mesmo que é o fundamento socrático e a nossa missão por essa vida.
 
QUAL É A FUNÇÃO/UTILIDADE DA LITERATURA?

A Sina Do Artífice

 
Fiam-se primeiro pelas mãos de Cloto,
depois Láquesis sorteia o seu quinhão
de beleza. Fia-se tecido por
tecido e tão logo vê-se o coração.

Conhece-se o artífice pelas mãos,
em sua habilidade feito as Moiras
de tricotar com toda precisão
o destino do poema em seus detalhes.

E o fado do artífice será esse
de cuidar dos detalhes desde d'antes
e deixá-los como deve ser:
às mãos de Átropos no mesmo instante.
 
A Sina Do Artífice

Microconto

 
Herdou da mãe um hábito tardio. Riscar ao asfalto – pés descalços – uma cruz de terra vermelha. Terminava com o sinal da cruz. Replicava o gesto pelas ruas da cidade desde o primeiro torrão à madeira.
 
Microconto

Ode à infância

 
Um pequeno gramado verde na memória
um campo o mar das grandes navegações - verde
o mar e o reflexo: vede
verde a dança das árvores
navega a bola
entre os assovios - vento - cerimônia aos pés
de Terpsícore: lira

às mãos cadencia os olhos em inocência

sonhava gols moldava o barro: dois tijolos
feito ode a urna grega - guardo as árvores
os pés: de amora e o métrico
da trajetória

um pequeno gramado verde na memória
um campo o mar das grandes navegações - verde
o mar e o reflexo: vede
Camões do próprio quintal.
 
Ode à infância

Fragilidade

 
Certa noite, observando as estrelas, feito um fragmento de Heráclito, teve a súbita iluminação. Compreendeu, por fim, a própria condição.
 
Fragilidade

LIVRE

 
(Hoje deixou-nos o companheiro da vida - ainda curta - do meu sobrinho mais velho, Pietro. E se é mesmo como o dito popular, o cão puxa as características do dono, eis o motivo de ter sido tão frenético e brincalhão, além, claro, de uma teimosia quase humana. Fica a homenagem e a lembrança.)

Os olhos batem e ficam
fixam a flor de lótus na memória.
A última luz aos olhos
de quem o fulgor permeou
desde a aurora
- não o primogênito, a nomear,
este quem a dádiva gratuita
assenta às mãos,
mas manso (e livre
como quem precisa ser nomeado)
inerte, virgem, rememorado.
 
LIVRE

Aforismos

 
I.
Existem ideias realmente tentadoras nas quais nossas amarras morais parecem afrouxar. Os ursos negros, por exemplo, hibernam de cinco a sete meses por ano. A ideia de seguir o processo, porém, apenas inviabiliza-se na localização de sua origem; os Estados Unidos. Arthur, como se sabe, significa “grande urso”, e quando alguém com longos dedos aponta os riscos de começar a beber as nove da manhã, a resposta surge categórica: em algum lugar da Ásia já são nove da noite. Conquanto seja fato irrefutável a questão do horário, digamos, no Japão; até mesmo o anseio por dominar a arte do sono sucumbe por transtornos meramente geográficos. Ou de batismo. Sem nenhum outro dom assegurado resta uma espécie de traição por parte do Esopo. Afinal, numa das fábulas afirma-se, com todas as letras: não há ninguém completamente desamparado de natureza e sem graça particular. Embora eu carregue alguma maestria em inutilidade.

II.
Nietzsche afirmou existir um juízo característico de negação do valor da vida em todos os sábios. Ora, se minha experiência corrobora com algo, certamente é isso. A intelectualidade parece-me uma festança no Olimpo. E eu, pobre penúria, longínquo, circundo os portões atrás das migalhas. Mas sei que sei raciocinar. Hoje mesmo já havia, com antecedência, por exemplo, pensado em almoçar. Não somente na ação, mas também nos seus: arroz, feijão, purê de batata e filé de frango. Veja bem, escapa-me a familiaridade sobre o pensamento de Nietzsche em relação à filés de frango, entretanto ponho-me confortavelmente favorável. O grande problema de Sócrates, a amarra na melancolia; talvez previsse os seus instantes finais, o grande equívoco no pedido derradeiro: ofertar um galo para o deus Asclépio ao invés de saboreá-lo.
 
Aforismos