Poemas, frases e mensagens de luscaluiz

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de luscaluiz

Nascido em Guararema no ano de 1991. Finalizou o Workshop de Criação de Poética com o professor Brian Belancieri  em 2021 e atualmente é seu aluno no curso "A Arte do Verso".

CONTRASSENSO

 
O tempo sempre se acossa,
eis a ironia dessa vida
refletida: crer na nossa
aparência falha, fluida.
 
CONTRASSENSO

A Sina Do Artífice

 
Fiam-se primeiro pelas mãos de Cloto,
depois Láquesis sorteia o seu quinhão
de beleza. Fia-se tecido por
tecido e tão logo vê-se o coração.

Conhece-se o artífice pelas mãos,
em sua habilidade feito as Moiras
de tricotar com toda precisão
o destino do poema em seus detalhes.

E o fado do artífice será esse
de cuidar dos detalhes desde d'antes
e deixá-los como deve ser:
às mãos de Átropos no mesmo instante.
 
A Sina Do Artífice

Microconto

 
Herdou da mãe um hábito tardio. Riscar ao asfalto – pés descalços – uma cruz de terra vermelha. Terminava com o sinal da cruz. Replicava o gesto pelas ruas da cidade desde o primeiro torrão à madeira.
 
Microconto

Ao Espelho

 
Eu não pretendo ser muita coisa. Quero dizer, socialmente falando. Hoje, o meu desejo é apenas conhecer-me cada vez melhor, compreender quais são as minhas falhas mais gritantes e tentar corrigi-las dentro do possível. Ou seja, ser mais próximo da versão que Deus sonhou ao presentear-me com o sopro da vida.

Tenho falhado repetidamente — tropeço na pedra no meio do caminho. E tenho plena consciência de que são erros gritantes. Não abrirei a vocês meu diário para não escandalizá-los. Sei como são limpos todos os perfis maquiados na internet. Eu, qual Fernando Pessoa, não conheço quem tome porrada na vida.

Mas, quando falo dos meus próprios defeitos, corro sempre o risco de cair no autoengano, de listá-los dentro de uma idealização criada pela necessidade de aparentar qualquer coisa além do que sou no meio social, e, assim, ser aceito. Quero dizer: até as falhas podem ser menos monumentais do que imagino. Talvez tudo seja tão monótono, medíocre (na acepção do termo), que eu tenha medo de olhar no espelho e aceitar-me assim: comum. O mais comum dos homens.

Essa guerra entre a necessidade de criar uma persona poética, um ar de escritor — vestir-me como escritor, postar-me como escritor, ter aparência de escritor —, tudo para ser aceito pelo público, e ser um ser humano normal, aproveitando das suas experiências reais para torná-las matéria-prima de uma obra cuja substância exista... Essa guerra me consome. A questão que me assombra dia e noite é: quero audiência ou construir uma carreira sólida? E mais: ambos são autoexcludentes?

O Lucas real procrastina mais do que deveria, depende das redes sociais mais do que gostaria e tem a vida social distante da sonhada. Anseia as coisas do alto, tem grandes insights de vez em quando, mas a maior parte do tempo vive é ao rés do chão.

Talvez a salvação — se é que existe uma — esteja em viver o chão sem vergonha. Em escrever não para sustentar um personagem, mas para descobrir o que ainda pulsa quando todas as máscaras caem. Não é fama que redime. É a verdade.
 
Ao Espelho

O Aparo das Arestas

 
Sou um escritor autodidata. E com isso digo: estou fora do meio acadêmico. O que aprendi – e aprendo todo dia – vem de outras cátedras. Não faço aqui, contudo, qualquer juízo de valor; ao contrário, reconheço o papel e a importância da academia. Apenas a vida rumou para uma direção incompatível, obrigando-me a abraçar outras oportunidades.

O conselho de Jean Guitton "Cave onde você está" tem me guiado desde a sua descoberta. E o impulso que me levou para a palavra escrita demonstra uma força arrebatadora da qual sou incapaz de resistir. Por isso, dispondo dos meios possíveis a mim, procuro aprofundar e compreender o ofício de uma perspectiva ampla.

Os desafios do escritor autodidata (e dos estudantes, de modo geral) têm mais a ver com uma adequação de expectativas à realidade do que qualquer outro critério técnico. Não sou um dos entusiastas dos seres da inspiração, enquanto entidade mitológica que surja e nos tome como veículo para comunicar sua mensagem. Longe disso. Creio na labuta constante, no suor. O meio para encontrar a melhor expressão é mesmo a reescrita – sem segredos.

Quando falo de adequação de expectativas trato exatamente disso: escrever é um trabalho árduo, e todo trabalho exige de nós uma disposição de aparar as arestas. Não há glamour no enfrentamento com a página em branco, existe apenas eu com as minhas próprias vivências, anseios, medos e angústias. A vaidade fica para depois.

Nos meus vinte e poucos anos, sonhei em ser o grande escritor da geração, aquele cuja originalidade precoce encantaria a todos. No entanto, meus textos eram, na verdade, confessionalismos sentimentais e pretensiosos, sem significado além do meu próprio umbigo. Se não fosse pela complacência e bondade de certos leitores, capazes de enxergar alguma qualidade em meio ao mar de palavras vazias, talvez eu tivesse desistido. Contudo, foram os puxões de orelha e as orientações diretas que realmente me proporcionaram progresso.

Foi preciso ser carregado pelos ombros dos gigantes para enxergar com perspectiva. Estava lá, pequeno e pretensioso, clamando aos quatro ventos: "Ninguém me lê!", sem ao menos, dedicar-me a conhecer o mínimo sobre quem pavimentou o caminho para aquele clamor.
 
O Aparo das Arestas

Os Poemas de ChatGPT

 
Recentemente, deparei-me com uma matéria do site “Olhar Digital" cujo título, quase como uma provocação, afirmava: 'Poemas de IA superam escrita humana em emocionar leitores, aponta estudo'. É o tipo de chamada que qualquer poeta, por instinto ou ofício, lê com certo desconforto — algo entre a curiosidade e o ceticismo. Não por aversão à tecnologia, mas pela inevitável suspeita de que ali, no cerne da questão, resida mais prática de storytelling do que verdade. Resolvi mergulhar no texto, guiado por essa desconfiança.

De início, o título sugere uma inversão inquietante: que a máquina, fria e nula de vivências, ultrapassaria o poeta em sua capacidade de comover. É uma visão tanto apocalíptica para quem se entrega ao ofício lírico quanto sedutora para aqueles que, alheios ao rigor e à paciência da criação, veem no avanço tecnológico uma chance de suprir o esforço humano. Mas há algo de simplório nessa premissa — como se as hesitações, os saltos na memória e as mãos sujas de tinta pudessem ser simulados na lógica cristalina de zeros e uns.

Não tardou para que o texto se revelasse o que era: uma meia verdade disfarçada de manchete. O estudo, em linhas gerais, apontava que poemas gerados por IA eram mais “emocionantes” para leitores médios, mas o que se escondia era um contexto muito mais amplo — e previsível. Não se trata de uma virtude extraordinária da máquina, mas de uma crescente incapacidade do público de acessar, ou mesmo se interessar, pelas camadas mais densas da linguagem poética.

Esse fenômeno não surpreende. Vivemos tempos em que o útil uiva mais alto que o belo, e o imediato desbanca a contemplação. Assim, os poemas da IA encontram acolhida, pois oferecem algo rápido, acessível e direto. Há eficiência nesses textos, sem dúvida, mas falta-lhes o labor que dá substância à arte: a alquimia que transforma hesitação em ritmo, dor em metáfora e silêncio em pulso.

Enquanto lia, não pude evitar o pensamento de que a poesia — a verdadeira poesia — é antes um refúgio do que um produto. Há beleza na simplicidade, mas nunca no simplismo. A máquina pode emocionar, mas suas criações carecem da aspereza necessária para ferir de leve e, nesse ferimento, iluminar. Porque é na tensão entre o dizer e o calar que reside o toque humano, esse que carrega consigo o peso das vivências, a imperfeição das buscas inacabadas, o brilho do transitório.

O perigo, penso, não está no avanço da tecnologia, mas no enfraquecimento do leitor. Quando se abdica da paciência exigida pela poesia que não se revela de imediato, corre-se o risco de abrir mão do que ela tem de mais essencial: a capacidade de despertar, no silêncio de quem lê, uma inquietação maior do que as palavras. A literatura não é outra coisa senão um exercício de prazer e paciência — algo que nenhuma máquina, por mais avançada que seja, pode verdadeiramente compreender, porque lhe falta aquilo que jamais poderá ser programado: a essência dos dramas humanos.
 
Os Poemas de ChatGPT

Cântico

 
p/ Adélia Prado
As respostas cruciais encontram-se
circunscritas nas costelas
do primeiro homem.
A Palavra é única e permanece,
talha o barro sob o sinete,
entre o desejo de compreensão
e o mistério que nos escapa:
eis os dias — um campo à luz quarando,
sempre o mesmo, sempre novo,
aos olhos de quem canta.
 
Cântico

Louvação para uma Cor (Com a licença de Adélia)

 
O azul, no balanço do céu,
onde anjos acima brincam
de escorrega, no tempo e véu,
sonhando em refleti-lo: azul-

marinho, tumulto ondular.
As ondas saltitam no vento,
à distância da imensidão,
e dão seu testemunho lento

na esfinge matinal, que luz
no horizonte, desde o princípio,
o brilho líquido e fugaz

que em cada contorno reluz,
onde o sol doira e se desfaz,
e o voo da ave se traduz.
 
Louvação para uma Cor (Com a licença de Adélia)

Qual a Função da Literatura?

 
Uma questão que volta e meia assombra escritores, estudantes e entusiastas da literatura é: qual a função da literatura? Qual a sua utilidade?

Quase sempre as respostas são vagas, deixando um vácuo ao invés de uma compreensão mais concreta. É comum ouvir que a literatura é expressão das emoções, manifestação das paixões, ou uma forma de transcendência. E há uma resposta especialmente recorrente: "a literatura é inútil". A ideia de inutilidade da literatura — ou das artes em geral — gera uma certa confusão, que se intensifica quando consideramos que, no mundo atual, utilidade tornou-se sinônimo de aplicabilidade, ou seja, um meio para alcançar outro fim. E numa sociedade extremamente materialista e hiper-consumista como a nossa, esse fim geralmente se resume a dinheiro ou status.

Nesse sentido, a literatura de fato é inútil. Mas essa aparente inutilidade não a torna destituída de propósito. Pelo contrário, a literatura cumpre um papel essencial na construção da cosmovisão do indivíduo, sendo alimento para o desenvolvimento de sua visão de mundo. A cosmovisão abrange tudo aquilo que molda a personalidade do ser humano: suas ideias filosóficas, questões psicológicas e morais, suas paixões e preocupações mais íntimas.

O brasileiro médio costuma formar sua visão de mundo a partir de relações imediatas — a família, os amigos, a escola, a religião, e, quando muito, a universidade. Essa visão, portanto, tende a ser bastante limitada, e essa limitação se revela ao ouvirmos as opiniões sobre temas cotidianos (política, por exemplo). Há uma tendência à repetição de ideias pré-fabricadas, fruto do meio social, sem esforço de reflexão própria e mais aprofundada.

A literatura, então, amplia horizontes e transcende essas limitações. Ao entrar em contato com diferentes enredos e narrativas, o leitor é desafiado a explorar possibilidades humanas infinitas. Ele é levado a conhecer outras culturas, religiões, filosofias e até mesmo realidades psicológicas que talvez jamais tivessem passado por sua mente. A literatura nos dá perspectiva — e com isso, ela nos aproxima do autoconhecimento. Questões de ordem imediata que antes pareciam cruciais começam a ser reposicionadas no grande quadro da condição humana.

A literatura, portanto, é um alimento espiritual e essencial. Ela nos torna mais humanos ao aumentar nossa capacidade de interpretar o mundo e a sociedade em que vivemos, ao mesmo tempo em que nos desafia a conhecer a nós mesmos. Esse é o fundamento socrático do "conhece-te a ti mesmo", e talvez seja a missão mais nobre que carregamos durante a vida.

A literatura pode ser "inútil" para os padrões pragmáticos do nosso tempo, mas sua verdadeira utilidade está em moldar nossa essência e nos tornar mais conscientes de quem somos e do mundo ao nosso redor.

(Para mais conteúdo e reflexões sobre a escrita, inscreva-se na minha newsletter:
https://substack.com/@patadadepegaso)
 
Qual a Função da Literatura?

Trovas

 
i.
Da Vida brota mais vida,
essa é a grande lei:
na semente está contida
toda a fagulha do Rei.

ii.
A flor rebenta em si, impera,
dá sementes sobre o leito...
O que sou desde sempr'era
de alguma forma no peito.

iii.
É preciso praticar
sempre a justa contenção:
domesticar nosso olhar,
pra falar o coração.

iv.
Fecha-se no mesmo instante,
a vida é este agora:
fortalece-se no seu antes,
mas difere no que aflora.

v.
A dor tem função arquetípica,
nos ensina a valorar
o lado bom dessa vida
– isso que há de perdurar...

vi.
A beleza traz em si
a potencialidade:
todo gosto que há de vir,
rebentada a eternidade...

vii.
Quintana com os seus versos
de belezas fantasmais,
diz-nos de modos diversos:
só mistérios são reais...

viii.
Bandeira em vossa ternura
legou a lição em desatino:
quando a vida estiver dura,
dancemos tango argentino.

ix.
A vida é penitência,
que o sublime bem prediz
– aquilo que há em potência
é a nossa real raiz...

x.
Em suas mitologias,
Borges instiga os intintos,
ensina que em um só dia
carregamos labirintos.

TROVA CÍNICA

A língua a dizer amor,
sofre em tom comprometido:
pois herdamos seu sabor
mais sarcástico que ungido.
 
Trovas

Canção Breve

 
p/ meu sobrinho Pietro
As conchas das mãos
Mãos em conchas sobre o riacho
fonte de Hipocrene — refletem
os olhos o rosto — castanhos
o mesmo rosto de tantos
sonhos e Silvas

Ainda não sabe da palavra
a palavra que grita e canta
não queres saber

— sabe

intui algo da pedra:
nem anjo nem verso

A vida a sua carnatura concreta
Não Hélicon nem nada de Pégaso

Que poderei eu ensiná-lo?
Um ritmo uma métrica solta
talvez
um tanto das musas e mitos
das horas e dias
algo de Deus — o mistério

o mistério de todos
os cantos uníssonos.
 
Canção Breve

A Canção mais Simples

 
Esse azul tão vivo aviva
ainda mais meus olhos,
o céu, esplêndido, é a prece,
a prece à qual me recolho.

Da janela do meu quarto,
cada manhã é um testemunho:
os olhos louvam em silêncio,
e os pássaros tocam
suas trombetas douradas.

Da janela do meu quarto
pinto com os olhos um quadro:
toda manhã vão os pássaros
vestidos de ouro.
 
A Canção mais Simples

Gênese

 
Os olhos — ponto de impacto
a criar ondas transversais

Os olhos conclamam
todo este frêmito — e chamas
à face

as quais

o calor d'uma sílaba — exata
vivifica o tempo o templo
(faísca pelos poros):

fosfora rente ao céu da boca
— flamas tochas fachos

o fogo inventado de sempre
e uma e outra e tantas vezes mais.
 
Gênese

Arkhé

 
p/ meu sobrinho Pietro Miguel

Nem sabe ainda suas origens
nem Mnemosine fez-se presente
aos seus olhos

Intui — intui o canto
o mesmo canto dos primórdios

Algo no mar pretérito e profundo
feito um ponto
por onde repousam os olhos
criadores

(os mesmos olhos)

Mansidão numinosa — transparente
de onde surgem outras águas

Algo no mar pretérito e profundo
feito um ponto
pequeno
pequeno e quase imperceptível

Onde coube a pausa para o caos
(efeito e causa)

Tudo era o mar — enorme
negrume no horizonte
distante em eras

Algo no mar pretérito e profundo
feito um ponto — antes
e antes o sopro revolto
fez-se tudo

da luz

Os olhos criadores coordenam
as feras.
 
Arkhé

Arquitetura do Soneto

 
Este texto apoia-se nas lições do poeta Emmanuel Santiago, um dos grandes nomes da poesia contemporânea brasileira, e nas ideias transmitidas por Brian Belancieri nas aulas do curso "A Arte do Verso".

Como dar forma a um soneto que reverbere? Como articular ideias, metáforas e os blocos do texto para alcançar o impacto desejado?

Primeiro, o essencial: a leitura de sonetos é uma trilha inevitável, e quanto mais variadas forem as épocas e línguas, mais vasto será seu repertório. Mesmo que seja através de traduções cuidadosas, absorver a musicalidade e a lógica de outras tradições fortalece a intuição formal. Contudo, se a intenção é realmente decifrar as convenções e sutilezas do gênero, volte-se à fonte: Petrarca, um arquétipo insuperável. Em seguida, abra espaço para a força e o lirismo de Camões, a precisão de Shakespeare, o sarcasmo de Gregório de Matos, a fluidez de Bocage e a delicadeza de Bilac. E, para uma visão menos ortodoxa, Baudelaire, que desestrutura e enriquece a forma com suas sombras e paradoxos.

Dois princípios práticos podem guiar a construção. Primeiro, a estrutura dialética do soneto tradicional: os quartetos expõem a tese, os tercetos apresentam a antítese, e a chave de ouro resolve a tensão com a síntese. É um movimento de confrontação e resolução que exige uma lógica interna, quase filosófica. Embora os sonetos modernos dispensem essa rigidez, compreender essa articulação dialética ainda é um recurso poderoso para dar profundidade ao poema.

Outra dica é evitar que cada verso funcione como uma unidade sintática fechada, que se encerre em si mesma. Isso cria uma espécie de “corrida de obstáculos” onde a rima se torna mais um artifício do que uma extensão orgânica do sentido. No soneto, as pausas precisam ser controladas com delicadeza, conduzindo o leitor sem rupturas bruscas.

Vale destacar, ainda, a importância da “volta” – aquele instante em que o soneto desdobra-se, oferecendo uma nova perspectiva ou resolução. Nos quartetos iniciais, há a proposição do argumento; em seguida, os tercetos introduzem uma contra-argumentação, guiando o poema a uma síntese que, no caso do soneto italiano, acontece na chave de ouro, e no soneto inglês, no dístico final. O soneto de Camões, “Busque Amor novas artes, novo engenho”, é um exemplo magistral desse “torneio dialético” chamado de “volta”, em que a ideia se transforma, como se o poema nos levasse de volta ao ponto inicial, mas com uma compreensão renovada.

(Para acompanhar mais reflexões sobre o universo da escrita criativa e se aprofundar nos desafios da criação literária, inscreva-se na minha newsletter: https://substack.com/@patadadepegaso)
 
Arquitetura do Soneto

Haikais

 
i.
Pássaros no fio
Avô tosse corta a grama
– Orquestra do sol.

ii.
Os causos mineiros
vigia o lobisomem
– alguém pede sal.

iii.
Vestígios da lua
poça reflete a roça
– três sapos na rua.

iv.
Mesmo à distância
a natureza alumia
– ascende o verso.

v.
Pássaros cantam
o sol folia nos rastros
derrama alvorada

vi.
Trabalha a criança:
refaz castelos de areia
com o que imagina.
 
Haikais

Pérola do Vale

 
Este poema é um exercício prático de construção, realizado dentro do curso "A Arte do Verso", e tem como proposta a elaboração de um texto com predominância absoluta de substantivos, sem o uso de verbos ou adjetivos, explorando exclusivamente a força e a imagem dos nomes próprios e comuns:

Pau d'Alho, rio, pedra, caminho,
escada, fonte, capela d'Ajuda;
Freguesia, capivara, São Longuinho,
estação, floresta, campo, arruda.

Cachoeira, águas, Luís Carlos — estação,
maria-fumaça, coreto, Mirante,
Deoclésia, Ilha Grande, contemplação;
Rio Paraíba, chão, areia, bandeirantes...

Jesuítas, Nossa Senhora da Escada,
vila, índios, Maria Florência: luz.
Pedras — Tubarão, Itapema, Montada.
Guararema, pérola, matriz, cruz.
 
Pérola do Vale

Soneto para acompanhar documentários sobre vida extraterrestre

 
Há sempre um mistério a alicerçar lendas
e gerar em nós o velho fascínio,
transcendente, sutil — sol apolíneo —,
contrastante à transitória senda.

Stonehenge ou as pirâmides: grandeza
talhada ante nossos olhos surpresos,
renovação constante da beleza
que nos chacoalha de uma vida a esmo.

E surgem as explicações magnânimas,
especulações mil, de toda sorte;
deuses, anjos, aliens... Uma ânima
distante da rotina em seu recorte:

eis o que explica a graça em ti contida
— é haver na vida um toque de Midas.
 
Soneto para acompanhar documentários sobre vida extraterrestre

O Escritor

 
Demorei a perceber, ainda que agora me pareça claro: o que distingue o Escritor — esse com E maiúsculo — do escritor amador não está apenas nas palavras bem escolhidas ou na intensidade dos sentimentos que ele busca expressar, mas no pleno domínio dos recursos técnicos. É saber manejar os aspectos fônicos, morfossintáticos e semânticos com precisão, criando uma harmonia sutil e quase imperceptível que conduz, com delicadeza e intenção, o psicológico do leitor para o desfecho desejado.

Escrever, afinal, exige mais do que inspiração; requer uma consciência profunda da linguagem, um compromisso em transformar a sensibilidade bruta em estrutura viva. É nesse processo que o escritor encontra a liberdade verdadeira: ao dominar a técnica, ele amplia as margens da sua criação, podendo explorar tanto as dobras do pensamento quanto as nuances do sentimento, sem sacrificar o encanto espontâneo que brota do ato de compor. Porque, para ele, escrever não é um gesto isolado, mas uma espécie de partilha — um convite ao leitor para uma experiência íntima, onde cada palavra, cada pausa, cada período tem a intenção de criar ressonâncias, de abrir brechas de entendimento e mistério.

Assim, o escritor transcende a mera expressão e alcança algo mais: o raro equilíbrio entre a tradição e a invenção, entre o rigor e a liberdade, onde a técnica não é apenas uma ferramenta, mas a própria chave que lhe permite construir, com precisão e entrega, o encontro entre a palavra e o que há de perene na condição humana.

(Para acompanhar mais reflexões sobre o universo da escrita criativa e se aprofundar nos desafios da criação literária, inscreva-se na minha newsletter: https://substack.com/@patadadepegaso)
 
O Escritor

Prática de Concentração

 
Circular: um círculo e um ponto — dentro
do véu concentrar à dentes
e colar defronte — espécie de colar
celestial desd'este ponto

Eis o ponto — observá-lo atento
até esquecer-se do círculo
(e todos os pontos circundantes)
retorno à Adão por um tempo

pelo sopro pelo condão — cordão
umbilical ao Éden
pelo sopro esvaziar-se:
espécie de jejum

(origem de todos os santos)

Cultivá-lo até o pulsar em espiral
mitigar a carne — pelo sopro

círculos-concêntricos (pedra n'água)

orbitar daí: o próprio centro
em movimentos contínuos
centrípetos.
 
Prática de Concentração