SOL E TEMPO
Na sala, eu vou ficando a ver fotografias antigas, em molduras coloridas desbotadas pelo tempo: momentos felizes. Lembranças com pó, pousadas sobre os móveis antigos. Momentos recordados em Dezembro.
Numa dessas fotografias, eu sou ainda jovem, sorrio ao lado dos meus pais. Eles também sorriem e, por momentos, fico com a sensação de que sempre foi assim. Numa outra, estou eu, criança. Apenas um pouco mais velho que o meu filho. Tempos de escola, em que os Dezembros eram diferentes.
Depois, escondida na última página de um álbum castanho, com manchas líquidas, está ela. Linda. Jovem. Com os seus cabelos negros subtilmente frisados, com a sua pele branca como a cal e as suas mãos delicadas pousadas sobre o colo. Com os seus olhos fundos como poços cavados na sua face bela, serena, e os seus lábios esboçando-me um sorriso leve: está ela. Os meus olhos ficam presos durante algum tempo, ali: naquela fotografia.
O sol desce por entre as nuvens poucas
do céu azul.
Os minutos empancam no velho relógio
do meu pulso.
Confuso.
Eu não sei se estou aqui realmente,
se sou eu quem escreve estas palavras
ainda sem sentido.
Lá fora vejo andantes manchas de gente
com um rumo tão perfeitamente perdido.
O sol tocou agora as salgadas faces do mar.
Beijou-as levemente
e depois desapareceu.
Mas aqui o tempo parece não querer passar.
Teimoso como gente,
quase tanto como eu.
O tempo por vezes pára,
contrariando o sol poente.
A crença que eu queimara
hoje volta-me intermitente.
O dia volveu-se noite clara,
pois o tempo está parado.
Paradoxo normal,
momento nunca tido desejado
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OLHA-ME
Podes até virar a cara
e fingir que não estou
(mas estou)
e tu sabes bem quem sou
sou futuro adiado
passado que ficou
sou o retrato desfocado
de alguém que te amou
sou sonho interrompido
que não deixaste ser
realidade
sem ti aqui fico perdido
não sei o que fazer
crueldade
do destino
de deus
que me faz amar
o brilho dos olhos teus
a leveza do teu andar
e esses teus lábios
que não chego a beijar
fico apenas a pensar
deixando-me levar
estupidamente
enquanto me ignoras
tão friamente
fico assim durante horas
sou feliz na minha mente
Olha ao menos para mim!
Não sou tão ruim assim!
PESADELO
A casa está vazia
o silêncio consome
no meio de nada
a mente é baldia
o pesadelo não dorme
é já madrugada
é tão real
é tão intenso
tu sofres calada
eu grito o que penso
estamos perdidos
perdidos assim
não encontro a saída
esperemos o fim
esperemos o dia
que alivia a ferida
e que leva o pesadelo
Amanhã é outro dia!
Amanhã volto a tê-lo!
VOZ DA RAZÃO
A velha árvore está morta
(o rio secou)
diante de mim fecha-se a porta
(nada ficou)
de ontem em mim para recordar
(apenas uma voz)
essa em mim fica e me domina
(insulta-me a sós)
sabe o que fiz e julga o que faço
(é puta fina)
que invade assim meu espaço
(é a razão)
outros chamam-lhe consciência
(sai puta sai daqui)
leva contigo tua verdade e ciência
Eu nunca a vi!
Eu nunca me guiei sequer por ti!
és as máquinas
pensei que se não visse não serias.
mas tu és, em último caso, a sombra do meu timbre;
tu és as máquinas do mundo que avançam e matam;
és a fome maior que afecta o meu pensamento circular.
és os silêncios que tornam estas palavras realizáveis. és o mar,
solto das suas correntes. sons estridentes. és as máquinas.
és o futuro e o passado conjugados num só. és o pó.
és a terra que me derruba e prende. és tu sem estares
onde eu estou, porque o espaço é curto e tu não caberias.
és o tempo que se estende. és as horas frias. és as máquinas.
pensei que se te dissesse saberias.
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MEU DEZEMBRO
Este é o meu Dezembro
hoje é o dia que não quero
mas do qual ainda me lembro
e neste mês desespero
este é o meu Dezembro
estou sozinho para recordar
pois tu saíste ontem correndo
a nossa história está por contar
eu teimoso lá vou escrevendo
nesta noite de Dezembro
em que o lume não aquece
este meu corpo tão cansado
só minh’alma não arrefece
neste Dezembro arrastado
em que espero o novo dia
que te traga de volta a mim
que me devolva a alegria
e ao Dezembro ponha fim
No meu telhado a neve cai!
Frio de Dezembro ainda vai!
À TUA PORTA
A noite cai junto à cidade
do grande rio um frio sobe
enquanto eu vejo fascinado
ignorando minha verdade
a estrela que se descobre
neste céu por mim usado
como ferramenta do sonho
que sempre crio e me ponho
explorando mundos nossos
onde o futuro nos é risonho
e este frio não mói os ossos
nesses sonhos tu não choras
dás-me a mão e nada importa
no relógio seguem as horas
e eu calado lá vou ficando
sonhando triste à tua porta
com este frio que me corta
PRINCÍPIO DA INSANIDADE
Enregeladas estão as mãos caídas pelo mundo
No fundo as nossas medidas estavam erradas
Porque entre o dia e a noite não tem diferença
Se ontem havia hoje não mais há
Porque deus
Farto de ser meu veio e matou a minha crença
Não tenho mais esse guia que de cego me matará
Não tenho mais a desculpa para o erro escondido
O meu nome corrompido é tudo o que me sobra
Eu esgotei os meus bons motivos
Num jogo de perigosas manobras
E agora
Nem é noite nem é dia
Naquele nosso equinócio prolongado
Meu corpo gelado que ainda se mexia
Escrevia Amo-te numa qualquer rua
A alma nada dizia
Jazia
Calada junto à tua
Nesta hora que não é dia
Nesta noite que não é agora
Limpo o sangue com que escrevia
Estanco a veia e jogo o amor fora
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gato preto
lembras-te de quando fingimos voar?
o teu corpo mais propício a quedas
e o meu, quebrado no chão, a levitar.
hoje, ainda sinto nos ossos esse nosso voo improvável.]
depois partiste e o mundo voltou. acordou-me o mundo,]
com uivos de bombas, pintadas de demasiadas cores
para o nosso preto e branco mais do que habitual. acabou.]
vidas tiveste sete, ora curtas ora longas,
sem nem mais uma te ser acrescentada.
pelo meio várias mortes te fizeram viver
outra e outra vez, assim, respectivamente .
moraste em várias casas, invariavelmente desfeitas
estiveste em milhares de corpos com quem nunca estive.]
fizeste várias alterações de feitio ao teu pêlo
mas as garras, essas, permaneceram afiadas.
foste tu, mesmo naquelas escuridões escondido.
os teus olhos influenciaram sempre as minhas palavras,]
de tal modo que se ouviu sempre o teu ronronar:
– rhum-rhum, rhum-rhum, rhum-rhum…
em todos os passados, que estive e não estive,
escutei o teu miar.
em todas as lutas, de que sempre me abstive,
sonhei o teu olhar.
podes voltar na tromba de um elefante
que anda de cabeça para baixo, se quiseres.
eu andarei contigo repetidamente, repetidamente…
podes estar embutido nos seios grandes
de centenas, milhares de pequenas mulheres
que eu procurar-te-ei obstinadamente, obstinadamente…]
seremos um como antes: seremos nós sem os demais.
serei eu e tu, gato preto: um sonho mais do que antigo,]
sem sentido para cega gente.
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NUM MINUTO
Estranha coisa sinto em mim.
Receios e sonhos dão as mãos
E levam-me para longe,
Para perto de ti.
Em ti vejo verdade
Como nunca antes vi.
Liberto a insana vontade,
Inverto os pólos e saio daqui.
Deixo a terra
E toco o céu num minuto.
Ponho à prova meu destino,
Cativeiro absoluto.
Salto o muro,
Pois tu estás do outro lado.
Corro assim no escuro,
Faço eu meu próprio fado.
Hoje eu tenho um eu
E assim eu me apresento.
Não sei o que me deu
Mas fui feliz neste momento.