NOVA CINDERELA
Cresceu meiga, bela e casta,
com o pai, irmãs, madrasta.
Como no conto de fadas,
sua vida era nefasta:
alternava entre a cozinha,
preparando carnes, pasta,
e a faxina interminável
que o resto da tarde arrasta.
Esperou tanto por fada
que um dia, afinal, deu basta.
E foi vista, sorridente,
com a cabeleira rasta,
na garupa de uma moto,
com a sandalinha gasta.
A HERANÇA DO SURFISTA
Isolados numa ilha
sem conforto - nem de pilha.
A exclusiva atividade:
pegar ondas, se o sol brilha.
Mas em dia nebuloso
ele enveredou na trilha,
e nas ondas encrespadas
foi-se a vida, na armadilha.
Só no fim da tarde a prancha
retirou da praia a filha.
Por não ter mãe e irmãos
foi bem simples a partilha:
era dela, como herança,
a tal prancha sem a quilha.
DISPAROS DE CAMPAINHA
Primeira infração:
guri nenhum por ali,
próximo ao portão.
RELATO PALINDRÔMICO SOBRE UM DIA QUE TRANSCORREU SEM ACONTECIMENTOS MEMORÁVEIS
O suco.
Além, mela o cu.
Só.
À DERIVA
Meu torso é dourado
pois o sol, dobrado,
tem duplo queimar.
Duas vezes cruel:
abrasa no céu,
se espelha no mar.
Valente marujo,
das brigas – não fujo,
dos fracos – me apiedo.
Sou bom e tirano,
cresci no oceano:
o mar é meu credo.
Quem vive no mar
só fala consigo,
não tem um amigo,
nem tem quem amar.
Eu amo as estrelas
e a lua, nas velas,
deitando o luar.
Não tenho anseios
nos meu devaneios:
eu vivo no mar!
A EPIFANIA DO ATEU
Desde os tempos de neném
nunca havia dito amém.
O seu corpo libertário
não continha alma refém
de nenhuma crença antiga,
que tratava com desdém.
Seguiu sempre sem batismo,
sem crer numa vida além,
sem ter páscoa nem natal,
nem estrela de Belém.
Toda a fé que não tivera
viu um dia, em si, porém,
quando pifou o seu carro
sobre uma linha de trem.