o amor é um presente escondido num embrulho tosco
Não consigo respirar, não. Costumava pensar que o amor era um presente escondido numa caixa muito bonita, ornamentada com cores de arco-íris e flores de Primaveras que nunca chegavam. Costumava pensar que o amor morria depois agarrado a nada, desfazíamo-nos do embrulho e o resultado eram peças perdidas de puzzles que em nada eram semelhantes, nenhumas se encaixavam nas outras e eu desengonçava meia dúzia de gestos para tentar montar um quadro impossível. As mãos não pintam já. Descobri que o amor era de travo doce como os teus olhos, descobri que se escondia nos teus braços como se escondem alguns pelos mais envergonhados, encravados nos poros da tua pele. Descobri que o presente é uma benção iluminada e quero vive-lo porque o coração é um vadio que pertence ao amanhã, um vagabundo em ruas desconhecidas, labirintos semestrais de paixões quebradas ao meio, agito a bandeira da paz numa revolta interiror que brinca com a realidade fugaz que me reservam os últimos dias. Hoje viro-me ao avesso, faço o pino e rio-me de ti, acreditas? Toca com a língua o teu cotovelo porque é verdade que contigo não há cais de desânimo nem mágoa em desconsolo. Contigo a verdade pinta-se de tons claros e a negrura da vida estranhamente se reduz a nada, balanço o corpo em sinal de desejo, quero-te abraçar o corpo com a mesma força com que abraço a vida, cruel fado traçado a sangue sobre a tela. Fiz de mim melodias doces sonhadas pelo artista que sabe a música, fiz de mim a malandra e infértil decadência. Quero falar! Quero dizer! Quero contar! Deixa-me contar as estrelas penduradas no nosso tecto, deixa-me pintar a escrita com as lágrimas nos olhos e o coração a arder. Deixa-me. Deixa-me ir esta noite porque o caminho está traçado, há gorilas nas beiradas de uma janela que não existe, há um bem-querer enterrado nos dedos magros como os dias que me acham. Se quiseres vir enche-te de luto e estranha o canto desesperado dos meus passos, bailo esta noite com o vento a redemoinhar nos meus ouvidos. Rasgo a raiva, esburaco a inteligência que me sobra porque um dia nada saberei desta vida que tu não saibas e serás pano na manga da minha camisola. Rasguei-me. Lixei-me até ao osso. Hoje apregoo canções de deuses que não nos preenchem. Calai este desabafo. Tu, meu amor, acerca-te de mim e rouba-me um beijo, que ninguém nunca saiba desta minha loucura, que a conheçam pelas tuas palavras como tu ma conheces pelos silêncios. Eco.
Bailarina foge da caixa de música
Sou assim, vou por aí com as latas de atum vazias no saco guardadas, atrás de mim ainda seguem coladas as tuas pegadas por um caminho que não conheces. O meu vestido de bailarina rasgou, tu trepaste-o com as botas de trolha e eu não consegui fugir mais às tuas mãos. Percorrem o meu corpo agora em vaidade quieta e calada, a pele está encurralada e não me esgoto de gritos e fugas. No quarto o escuro de terraços mudos, bagaços seguem-se aos cafés que se tomam desenfreadamente no café ao lado. Tu olhas e eu olho mas o balanço desajeitado das pestanas fecha os olhos dos que não querem ver, eu não vejo, tu não vês e vós? Páro ao fundo da rua com as mãos nos bolsos do corpo agora nu, a chuva serpenteia-se nos caracóis do meu cabelo, o sorriso esconde-se como um cão doente na casota fechada. Rompi os ecos da voz que em silêncio se altera, brindo então aos céus que me esperam com os braços abertos. A minha morte morre-me todos os dias na boca cerrada.