Poemas, frases e mensagens de PAULOMONTEIRO

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de PAULOMONTEIRO

antipoema 1

 
ontem
quando me encontrei com o poema
bestificamo-nos

alta madrugada
ambos bêbados
saímos pelas ruas lançando versos para todas as mulheres
acabamos presos por perturbação do sossego público

como o mundo é prosaico
meu deus
 
antipoema 1

O MAIOR POETA DO BRASIL

 
Paulo Monteiro

O catarinense Luiz Delfino é uma das figuras mais intrigantes da Literatura Brasileira. Filho do aventureiro português Tomás dos Santos e da mulata Delfina Vitorina de Oliveira nasceu a 25 de agosto de 1834, em Desterro, hoje Florianópolis, e faleceu no Rio de Janeiro a 31 de janeiro de 1910. Poeta, em sua longa vida conviveu com três escolas literárias diferentes: Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo. Um dos mais prolíficos autores, em vida, publicou apenas um pequeno volume de versos. Tornou-se uma lenda, atribui-se-lhe mais de cinco mil poemas, a maioria sonetos. Sua obra foi editada postumamente pelo filho Tomás Delfino e, recentemente em dois alentados volumes pela Academia Catarinense de Letras.
Tomás dos Santos deixou a mulher e uma filha em Portugal, partindo para fazer a vida no Oriente. Ao retornar não mais as encontrou. Rumou para a Amazônia, onde se envolveu em aventura amorosa com uma fazendeira. Migrou para o Rio de Janeiro, onde se associou a um comerciante lusitano. Dali partiu para Santa Catarina, onde casou com a mulata Delfina, em homenagem da qual criou o sobrenome Delfino, acrescentado aos nomes dos filhos.
Luiz e seu irmão Antônio, em 1850, foram levados pelo pai para estudarem no Rio de Janeiro. Entregues aos cuidados do também comerciante e português Luiz Antonio Alves de Carvalho, Luiz, que já era poeta, preparou-se para cursar Medicina, e integrou-se à vida literária da época. Sete anos depois, já consagrado como poeta, conclui o curso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No final de 1858 casa-se com Maria Carolina Puga Garcia, de 17 anos. Já ganhara dinheiro, como médico, e era considerado o mais promissor poeta de sua geração.
Enriquece e dedica-se à especulação imobiliária, como proprietário de diversos imóveis espalhados pela cidade. Ingressa na Maçonaria, e chega a negar sua condição de poeta, pois havia muito preconceito contra escritores.
Conheceu outro mulato famoso, Machado de Assis, mas nunca se deram bem. Tanto que ao ser fundada a Academia Brasileira de Letras, apesar de contar com diversos admiradores entre os primeiros imortais e a consagração da crítica, seu nome jamais constaria entre os acadêmicos. Veto do autor de Quincas Borba e seu grupo? Ao certo não se sabe, mas muitos escritores menores constavam entre os fundadores.
Rico e famoso ambicionou uma vaga na Câmara dos Deputados por Santa Catarina, em 1862. Não o conseguiu, mas realizou o sonho ao ser eleito senador para a Constituinte Republicana, em 1890. No Senado, destacou-se como um parlamentar preocupado com a cultura.
Consagrado como hugoano, nos mil e oitocentos e oitentas, troca os longos e grandiloqüentes poemas pelo soneto. Causa sensação e adquire elogios de jovens escritores, como Arthur Azevedo. Em 1882 é desancado por Sílvio Romero, conhecido adversário dos escritores do Sul, no livro “O Naturalismo em Literatura”. Essa opinião mudaria mais tarde, ao assumir, no Senado, a defesa de uma pensão para a viúva de Tobias Barreto.
Sílvio Romero, um dos responsáveis pela consolidação do cânone literário brasileiro muda radicalmente a opinião a respeito do poeta catarinense. Passa a considerá-lo “o maior poeta vivo do Brasil”.
Elogiado por um dos corifeus da crítica literária nacional, requisitado pelas novas correntes (parnasianos e simbolistas), realizado o sonho de ascensão política, ao participar da Primeira Constituinte Republicana, Luiz Delfino enfrentou desilusões na vida pessoal e na vida pública. A morte prematura de um dos seus filhos e a violência da consolidação da república lhe causaram grandes amarguras. Arranjou uma amante e abandonou a política.
Discreto, a morte do filho é transformada num soneto conhecidíssimo: “A Filha Morta”. A amante foi um verdadeiro caso de amor proibido. Ele, com 62 anos e ela com menos de 20. E sua afilhada, ainda por cima. Inspirou-lhe muitos sonetos líricos, sob o nome de Helena e deu nome a uma de suas netas.
Eis um dos sonetos inspirados pela afilhada Eugênia Caldeira:
A DEUSA
O seu pescoço esplêndido e robusto
Implantado às espáduas fortemente,
Presta-lhe um ar olímpico e imponente;
De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto;

E sustém-lhe a cabeça bela: é justo,
Porque dos deuses vem; e se presente
No andar, na voz, no riso negligente:
Mete em tudo, que a cerca. Estranho susto:

Tão grande e superior ela parece,
Que não é muito a admiração e o espanto:
Segue-se ao espanto o amor; ao amor a prece.

És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto:
É de ti, que, em mim só, todo um céu desce:
A ti meus olhos, como a um céu, levanto...
Foi um romance tórrido, que durou pouco mais de três anos. Eugênia conheceu um jovem comerciário, Oscar de Carvalho Azevedo; rompeu o caso com o padrinho. Casou-se, mas continuou inspirando sonetos ao poeta.
Luiz Delfino, consagrado pela crítica e ídolo de jovens poetas, que o elegeram Príncipe dos Poetas Brasileiro, através da revista simbolista Vera Cruz. A coroação ocorreu durante uma festa espalhafatosa a 29 de dezembro de 1898.
Luiz Delfino viveu os últimos anos de vida, recolhido ao seio da família, brincando com os netos, recebendo poetas mais jovens... E cobrando os inquilinos, até cerrar para sempre os olhos, à uma hora da tarde do dia 31 de janeiro de 1910.
Apesar de consagrado sempre procurou aproximar-se do mulato Machado de Assis. Este, conforme conta Ubiratan Machado, autor de “Vida de Luiz Delfino”, editado pela Universidade Federal de Santa Catarina e o Senado Federal, em 1984, sempre procurou manter distância do mulato catarinense.
Ubiratan Machado, após analisar diversas hipóteses para o fato de Luiz Delfino ter ficado fora da Academia Brasileira de Letras, conclui pela recusa a participar do sodalício, sob a hegemonia do autor de Dom Casmurro. E assim resume sua conclusão, à pagina 160 da biografia em epígrafe:
“Qual seria o verdadeiro motivo da recusa? A fase de intenso sofrimento que atravessava, como veremos no capítulo seguinte? Ou o desinteresse seria conseqüência de um possível atrito com Machado de Assis? É provável que seja o resultado da soma de ambas as causas. Alguns contemporâneos observaram que, a partir de certa época, Delfino e o criador de Brás Cuba passaram a se evitar. (...)”.
O porquê de aquele que chegou a ser considerado o maior poeta vivo do Brasil, há um século atrás e foi eleito Príncipe dos Poetas do Brasil estar hoje esquecido deve-se ao fato de não ter editado em livro sua vasta obra. E não o fez por ser pão-duro por que, ao contrário do que acontece à maioria dos escritores, não lhe faltavam dinheiro e talento.
Assim, quando com críticos como Sílvio Romero e José Veríssimo, seus contemporâneos, começou a firmar-se o cânone literário brasileiro, sua obra jazia esparsa por jornais e revistas, o que limitou o trabalho dos historiadores. Bela lição sobre a importância do livro.
Livros para leitura e análise devem ser enviados para o seguinte endereço postal:
Paulo Monteiro
Caixa Postal 462
CEP: 99001-970 - Passo Fundo - RS - Brasil
 
O MAIOR POETA DO BRASIL

pássaro cego

 
paulo monteiro

pássaro cego na gaiola
que não canta porque
tem o bico cerrado
por grades de aço

pássaro cego pássaro
humano que entre
grades de aço vê
as serras os vales
as montanhas e os
vergéis onde nasceu
sonho
pássaro cego pássaro
preso entre as grades
da fábrica imensa
que vê na realidade
homens caminhando
para o aniquilamento

pássaro cego rompe
essa gaiola com
teu bico de aço
derrete os ferros da grade
e voa aos campos
verdes serras vales
montanhas e vergéis
de teu país natal
do livro inédito eu resisti também cantando
 
pássaro cego

canção 1

 
paulo monteiro

levo a canção que te escrevi
no bolso
levo a canção que te cantei
no bolso
e tu
navegas pela vida

enquanto
o barco vai com uma canção
no bolso
 
canção 1

canção 2

 
paulo monteiro

soube não sei que voz
que me falou
estavas aberta em flor
pelo jardim da casa em que moravas
quando a tempestade veio
despetalando rosas e jasmins
pelo jardim dos quinze anos
 
canção 2

despedida

 
paulo monteiro

chegaste na manhã calma
como um pássaro ferido
que a chuva houvesse molhado
tremias e os olhos trêmulos
os olhos tremeluziam
como gotas de sereno
brilhando em terra lavrada
onde cresciam espigas
do trigal dos teus cabelos

plumas e espigas molhadas
frio de ave e cor de trigo
água de chuva no rosto
água de sanga nos lábios
cheiro de terra lavrada
por arados de volúpia
violência de sentimentos
e uma esperança violenta
sob um frio de passarinho
e louro trigo à espera
do afago de um ceifador

aqueci-me no teu corpo
que outras mãos enrijeceram
colhi teu trigo dourado
e ensilei-o no meu peito
e à solidão daquele
que dá o pão que lhe falta
dei de beber nos teus lábios
água de sanga bebi-te

acostumada aos rigores
da chuva a ave fugiu
acostumado à bruteza
o trigo não quis cuidados
aos musgos acostumada
a sanga fugiu-me aos lábios
ou lhe agradei de tal forma
que me julgando maior
do que sou sumiu-me aos pés

terra lavrada ave trêmula
hei de guardar o teu gosto
água de chuva no rosto
água de sanga nos lábios
 
despedida

FADO DO HILÁRIO

 
Paulo Monteiro

Ao grande poeta fadista Euclides Cavaco

Eno Teodoro Wanke foi o maior estudioso da trova literária em língua portuguesa e autor de algumas obras fundamentais sobre o pequeno poema de quatro versos, destacando-se A Trova (1973), A Trova Popular (1974), A Trova Literária (1976) e O Trovismo (1978).
Em A Trova Literária, o capítulo 8 é dedicado às Influências de Portugal Sobre a Trova Brasileira, começando pelo fado, destacando à figura do poeta Augusto Hilário da Costa Alves, que seria o criador do fado-seresta de uma nova contextura, na definição de João do Rio, que cita apenas uma trova do poeta português. Esta:
A minha flácida lira
Tem duas cordas variadas:
Uma que chora e suspira,
Outra que dá gargalhadas.
Alguns dos seus poemas acabaram popularizados, especialmente um, conhecido como “Fado do Hilário” ou “Fado Hilário”, do qual se conhecem diversas variantes. Hilário virou lenda, verdadeiro mito. Mas quem foi, de fato, esse Hilário?
Às cinco horas da manhã do dia cinco de janeiro de 1864 foi deixado na Roda de Expostos de Viseu um menino recém-nascido. A Roda de Expostos existia à entrada de determinadas igrejas, nas cidades daquele tempo, onde eram largadas as crianças não aceitas pelos pais, especialmente filhos de mães solteiras. Geralmente acabavam recolhidas e batizadas por alguém da família que adotava o afilhadinho. Este, muitas vezes, era amamentado pela própria mãe.
Foi o que aconteceu com o menininho de Viseu, batizado pelo presbítero João da Costa e Maria Alexandrina, ambos viúvos, criado na própria casa onde nasceu – e onde faleceria -, à Rua Nova, nº. 14, daquela terra natal. Na pia batismal da Sé da cidade onde nasceu, recebeu o nome de Lázaro Hilário, mudado, a seu próprio pedido, para Augusto Hilário, em 26 de maio de 1877.
Mais tarde, no dia 8 de junho de 1883, no Tribunal de Abrantes, seria perfilhado pelo seu pai, António da Costa Alves e sua mãe, Ana de Jesus da Mouta, analfabeta. Com ele foram perfilhados outros dois filhos do casal, António Pais e Carlos Alberto, que também tinham sido recolhidos da roda de expostos, pois António e Ana eram pais solteiros.
Para conseguir subsídio do governo, ingressou na Escola Naval. Entre 1881 e 1886 estudou no Liceu Nacional de Viseu. Pretendia cursar Filosofia. Entre os anos de 1889 e 1896 cursou Filosofia, Língua Grega e, finalmente Medicina, na Universidade de Coimbra, mas não concluiu nenhum curso. Jamais concluiu quaisquer estudos superiores, pois se dedicava ao teatro amador, às serenatas e à boêmia, como cantor de fados, aproveitando sua bela voz de barítono.
Ficou famosa a participação de Hilário numa homenagem prestada ao consagrado poeta João de Deus, oportunidade em que jogou sua guitarra para o auditório. Nunca mais a recuperou. O Ateneu Comercial de Lisboa, em 2 de junho de 1895, ofereceu-lhe outra guitarra, doada por Maria Alice Trindade Figueiredo Alves, sua sobrinha-neta, a 24 de junho de 1867, ao Museu Acadêmico da Universidade de Coimbra, onde está depositada.
Atacado pela tuberculose, retornou à casa paterna, onde faleceu às nove horas da noite do dia 3 de abril de 1896, sem assistência religiosa. À margem de sua certidão de óbito lavrou-se a seguinte nota: “Criador do Fado do Hilário e poeta e boêmio, notável candor do mesmo Fado, conhecido em todo o país como Fado Hilário”. Foi sepultado em sua cidade natal, sob grande consternação, segundo alguns, vestindo a inseparável capa preta, imortalizada em seus versos; trajado com a farda de aspirante da Marinha Portuguesa, segundo outros.
A exemplo do que aconteceria com Manoel Maria Barbosa du Bocage e outros poetas improvisadores, depois de sua morte, muitos poemas lhe foram atribuídos. É o caso do “Fado Hilário”, recolhido por Lucas Junot. Das três quadras desse poema, apenas uma é de autoria de Augusto Hilário. Diga-se a bem da verdade que, do ponto de vista métrico, muito mais correta do que aquela que alcançou maior difusão. Eis a quadra divulgada por Lucas Junot:
A minha capa ondulante
Feita de negro tecido
Não é capa de estudante
É mortalha de vencido.
O estudo do “Fado do Hilário” é de extrema importância para entendermos certos aspectos de toda a poesia popular, cultuada e divulgada por milhares de poetas, na Língua Portuguesa: o porquê da persistência de tantos autores em continuarem escrevendo em redondilha maior, o porquê dos velhos temas persistirem e o porquê de perpetuação desse tipo de literatura poética ancestral. É o que vou discutir nas próximas páginas.
Transcrevo, a seguir, o texto mais conhecido do “Fado do Hilário”, que, completo, é formado por 36 quadras.

Fado do Hilário

A minha capa velhinha
É da cor da noite escura.
Ela quer acompanhar-me
Quando for p’ra sepultura.

Ela há-de ir contar aos vermes,
Ai, já que eu não posso falar
Segredos luarizados
Ai, da minh’alma a soluçar.

Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra,
A forma de um coração,
Ai, a forma de uma guitarra.

A minha capa ondulante
Foi feita de negro tecido
Não é capa de estudantes,
Mas é capa de vencido.
O poema acima, que se popularizou, não é a totalidade das estrofes intituladas “Fado do Hilário”. Representam, pois, pouco mais de 10%. Se apenas estas se popularizaram é o que basta. Estas é que caíram no gosto popular; estas é que tocaram na sensibilidade das pessoas que ouviram e gostaram. Pouco importa se a “elite” de cantores de fado optou por apenas estas em detrimento das demais. O certo é que esse poema – e apenas esse poema – acabou se popularizando.
Analisemos a primeira estrofe do “Fado do Hilário”. Ei-la:
A minha capa velhinha
Tem a cor da noite escura.
Ela quer acompanhar-me
Quando for p’ra sepultura.
Literariamente forma uma trova, isto é, um poema de quatro versos em redondilha maior. Tem idéia completa. É um poema independente, pois a quadra sobrevive sozinha, separada do todo.
O primeiro verso fala de uma capa bastante usada, velhinha, negra, que “tem a cor da noite escura”. Aí estão presentes duas figuras envolventes, a capa e a noite, ambas escuras. A primeira é um objeto físico, puramente material, que protege do frio e da chuva, ao mesmo tempo era parte do uniforme dos universitários de Coimbra. A segunda é a ausência de luz, simbolizando a própria morte. Não é à toa que a qualidade da noite (“escura”) rima exatamente com sepultura, o Sheol dos hebreus, o Hades dos gregos, o Infernus, dos romanos.
Essa primeira estrofe do “Fado do Hilário” é formada por dois dísticos, dois pares de versos, ou duas estrofes unidas, formando uma estrofe de rimas simples (ABCB), típica do folclore. Os poetas cultos (ou mais cultos) preferem as rimas cruzadas (ABAB).
O segundo dístico, formado pelos 3º e 4º versos da primeira quadra do poema conta que a capa quer acompanhar o poeta no momento em que ele for para a sepultura.
Aqui, é importante notar o emprego dos verbos. Noutra palavra, como agem os substantivos, dois deles (ela e eu) ocultos e apenas um (sepultura), exatamente aquele que guarda o invisível, o corpo do morto, visível. Ela, a capa, é ativa, tem vontade própria, quer acompanhar o poeta, que também é ativo, quando ele for para a sepultura. Ninguém leva o fadista, ninguém o conduz num caixão. É ele que vai.
Boêmio, alcoólatra, amante de rameiras e tuberculoso, a vida que ele leva é que o conduz à sepultura. Conduz no sentido de que essa é a vida que ele quer levar. É uma opção pessoal. Ninguém o obriga a viver desbragada, perigosamente. Daí é que a capa conduz o fadista à sepultura e não ele a conduz ou é conduzido com ela.
Do ponto de vista psicológico, a capa é o símbolo do útero materno. Da mesma forma, podemos estender esse simbolismo à sepultura. Morrer é retornar ao útero da mãe terra. Assim, a capa, o útero materno, conduz o poeta ao útero universal, à sepultura comum da Humanidade, O Sheol, dentro da melhor tradição velho-testamentária. Aqui podemos lembrar outro poeta boêmio português, Manoel Maria Barbosa du Bocage, no verso célebre: “Somos todos iguais na sepultura”. Ali, onde se recolhe definitivamente o homem que é pó, nada mais lógico do que o homem ser conduzido pela capa velhinha, que é a própria natureza mortal do ser humano, a “eterna” condenação à morte.
A segunda estrofe, que ao ser iniciada por um sujeito oculto (Ela, a capa), é uma simples quadra, impossibilitada de vida própria, é a continuidade lógica da primeira estrofe.
Ela há-de ir contar aos vermes
Ai, já que eu não posso falar,
Segredos luarizados
Ai, da minh’alma a soluçar.
Antes de mais nada, preciso fazer algumas observações formais sobre essa estrofe.
Do ponto de vista formal, ela sofreu alterações espúrias, portanto, introduzidas por outrem que não o poeta. A métrica do segundo e quarto versos forma octossílabos, com a introdução de um “Ai”, no início de cada verso. O terceiro verso é um exassílabo, tem seis sílabas métricas. É possível que o poeta haja, originalmente, escrito “lunarizados”, do adjetivo lunar, aquilo que tem características da lua, e não “luarizados”, que tem forma de lua. A tradição popular simplificou o “lunarizados” para “luarizados”. Alterações, como veremos mais adiante, comuníssimas nos poemas popularizados.
Voltemos, porém, aos “Ais”. Os leigos nas leis da versificação, os espíritos menos apurados nas técnicas do artesanato poético, evidentemente, não entendem de sutilezas métricas. As interjeições (“Ai”, no caso) não precisam estar presentes no poema para que existam; podem ser elididas, suprimidas, ficando subentendidas.
Dito isto, acredito que a redação original era a seguinte:
Ela há-de ir contar aos vermes,
Já que eu não posso falar,
Segredos lunarizados
Da minh’alma a soluçar.
O processo de popularização poética impõe alterações no original. Há muitos exemplos. Fico apenas com um, o que me parece suficiente.
O poeta pernambucano Guimarães Barreto, no início do século XX, escreveu um poema onde constava a seguinte estrofe:
Um dia eu a vi rezando
Aos pés da Virgem Maria.
Era uma santa escutando
O que outra santa dizia.
Acabou se popularizando desta maneira:
Eu vi minha mãe rezando
Aos pés da Virgem Maria.
Era uma santa escutando
O que outra santa dizia.
Alguém lê ou ouve um poema, uma estrofe, altera, começa a declamar ou cantar com a nova redação e acaba caindo no domínio público. Vox populi; vox dei. Esse é apenas um detalhe que acompanha o “Fado do Hilário”, fado que é um poema ultra-romântico, lembrando o clássico “A Noiva do Sepulcro”, de Soares de Passos.
A morte perpassa todo o poema de Augusto Hilário da Costa Alves.
A capa – sempre a capa – irá contar aos vermes, aos agentes que fazem o homem voltar ao pó, os segredos lunarizados (ou luarizados, na voz do povo) da vida (alma) triste do poeta.
A lua, velha companheira dos poetas, é uma divindade ancestral ligada a cultos orgíacos. É a manifestação do complexo de Édipo, ao nível do subconsciente universal. A capa, o ventre materno, é capaz de contar os segredos mais recônditos do fadista.
Perpassa o poema um fatalismo enorme, uma espécie de predestinação. Daí é que o poeta, na vida material, é acompanhado pela capa-útero, que o conduz à sepultura. E lá, nas profundezas da terra, nos quintos dos infernos, de onde o homem veio e para onde o homem retorna, conta aos agentes da transformação da carne em pó, os segredos mais íntimos, todas as fraquezas da carne.
Produto do meio em que vive, ou mais precisamente da vida que leva, a capa-útero, a predestinação, conduz a história do autor. O poeta é sua própria história. É o “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, de Ortega Y Gasset.
A terceira estrofe é interessantíssima:
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra,
A forma de um coração,
A forma de uma guitarra.
No quarto verso, novamente um “Ai”, desnecessário do ponto de vista poético, mas útil enquanto efeito audível. Essas intromissões, estranhas à metrificação, servem para comprovar que existem diferenças concretas entre letra de música e “letra” de poema.
A poesia popular é repetitiva, enquanto peça retórica. É simplória. A ligação do violão, em seu nome feminino guitarra, à morte do poeta ou mais precisamente, o instrumento acompanhando o poeta-músico em seu sepultamento, seja sendo enterrados juntos, ou no caso de Hilário, o caixão tendo a forma da guitarra é uma figura comum aos poetas populares. Diga-se, para maior clareza, que a última guitarra usada por Augusto Hilário da Costa Alves era de um formato aproximadamente triangular, o que lhe dava um aspecto cardiforme.
Enquanto os poetas “literários” têm a preocupação de produzirem imagens novas, os poetas populares repetem as imagens velhas, gastas. Daí a própria “capa velhinha”, que não deixa de representar uma imagem da imagem.
Essa é uma das características básicas da poesia popular, o conservadorismo estético. A preferência pelas imagens ancestrais (capa, noite, sepultura, guitarra, vermes, segredos, coração, caixão, etc.), pelos metros velhos (redondilha maior) e as formas estróficas antigas (quadras) são características inseparáveis da poesia popular. Daí, a implicância da crítica literária (“erudita”) em repetir e repetir a pobreza desse tipo de literatura.
A poesia popular veste-se com o reaproveitamento do que já serviu a poetas anteriores. Noutras palavras, nutre-se das sobras, cobre-se com expressões e formas poéticas desgastadas pelo uso; vive de migalhas e farrapos.
A última estrofe do poema é uma espécie de fecho da composição.
A minha capa ondulante
Foi feita de negro tecido.
Não é capa de estudante,
Mas é capa de vencido.
A exemplo do que ocorreu em estrofes anteriores, o “Foi” com que se inicia o segundo verso é apócrifo, pois acrescenta uma sílaba à redondilha maior.
Os universitários de Coimbra usavam capas como parte do uniforme, seguindo certos padrões ligados às antigas ordens religiosas criadoras das universidades medievais. Hilário, misto de guarda-marinha e estudante profissional, usava uma capa preta, diferente das que cobriam os estudantes coimbrãos. A capa poeta era ondulante, voava ao sabor do vento. Este é um símbolo vital. Quando Deus fez o homem conferiu-se a alma, a vida, soprando nas narinas de sua criatura. Alma em hebraico é exatamente Ruach, sopro, e é sinônimo de vida.
Para concluir, outro aspecto fundamental de toda a poesia popular é a predominância de figuras femininas: a saudade, a noite, a tristeza, a morte, a água, as flores, a natureza. Há uma receptividade para temas que considerem esse aspecto. Exemplo clássico é o conto “Negrinho do Pastoreio”, o mais famoso do folclore gaúcho. As versões anteriores à divulgada por João Simões Lopes Neto, viraram curiosidade de sociólogos literários e críticos literários. Ao introduzir o mito da “Virgem Maria”, como madrinha do negrinho – pura e simples invenção do escritor pelotense – forneceu o elemento para que o conto inventado, alterado, reescrito, merecesse a consideração de obra do folclore.
Esse é um aspecto fundamental para a popularização e a sobrevivência de formas literárias ultrapassadas pelas correntes literárias cultas. E está presente em todos os poetas populares.
NOTA DO AUTOR: SERIA FASTIDIOSO CITAR AS FONTES DE ONDE RETIREI INFORMAÇÕES SOBRE O FADO DO HILÁRIO. FORAM DEZENAS DE HORAS LENDO INÚMEROS TEXTOS DISPONÍVEIS NA INTERNET. OBRA DE JORANLISTA LITERÁRIO E POETA O TEXTO ACIMA É DEVEDOR A MUITAS PESSOAS QUE ESCREVERAM SOBRE HILÁRIO DA COSTA ALVES E SEU FADO FAMOSO. A PARTIR DA SISTEMATIZAÇÃO DESSAS INFORMAÇÕES, O QUE FAÇO DE NOVO – SE PODE EXISTIR ALGO DE NOVO SOB O SOL – É USAR O FADO DO HILÁRIO PARA DIALOGAR COM A RICA POESIA POPULAR, GOSTEM DELA OU NÃO GOSTEM OS CRÍTICOS LITERÁRIOS.
 
FADO DO HILÁRIO

A vara e os livros

 
Meu pai era operário do DAER – Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem, ficando pouco tempo em casa. Morávamos na Vila Jerônimo Coelho e eu estudava na então Escola Municipal Parque e Grêmio dos Viajantes, hoje Escola Municipal PE. José de Anchieta.
Criado conservadoramente, sem envolvimento com a piazada das redondezas, mesmo porque há 35 anos, aquela parte da cidade era praticamente área rural, a ida para a escola proporcionou-me contato com um mundo novo. Uma dessas novidades foi o futebol das peladas.
Certo dia, após as aulas, demorei-me jogando futebol com a gurizada. Para minha vergonha essa aventura acabou com o aparecimento de minha mãe, portando uma bela vara de erva-de-corvo.
Tentei conversar, mas não teve argumento que servisse; apelei para as pernas, mas estas acabaram levando umas varadas, antes que conseguisse distanciar-me da fúria materna.
A partir daquele dia mudei meu comportamento. Futebol, só depois de comunicar em casa que ia jogar, onde e com quem. Para ocupar meu tempo, passei a ler os poucos livros que tínhamos em casa, a começar por uma velha edição da Bíblia.
Hoje, quando escrevo estas linhas desalinhavadas, minha mãe agoniza no Hospital São Vicente. Quando elas forem publicadas é possível que não esteja mais entre nós.
Já não tenho mais 7 anos. Tenho filhas, uma delas com essa idade, viciadas em livros, como eu. Chegam a dormir sobre eles.
Minha esposa, infelizmente para mim, não morre de amores pela leitura. Às vezes que ela reclamava perante minha mãe da minha bibliomania, Dona Crécia, com um sorriso orgulhoso, respondia prontamente: “Eu sou culpada disso. Eu e uma vara de erva-de-corvo...”
Obrigado, mamãe! Obrigado, pelas varadas que levei naquele dia!
NOTA DO AUTOR: O artigo acima foi publicado à página 8 de O CIDADÃO do dia 25 de abril de 1997. Leocrécia da Silva Monteiro, minha mãe, falecera no dia anterior, enquanto o jornal estava sendo impresso.
 
A vara e os livros

O Massacre de Porongos e a Capitulação de Ponche Verde

 
A PASSAGEM, NO DIA 14 DE NOVEMBRO DE 2004, DO 160º ANIVERSÁRIO DO COMBATE DOS PORONGOS E A PROXIMIDADE DE MAIS UM DECÊNIO DO FINAL DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA, DESPERTAM A ATENÇÃO DO PÚBLICO. ADEMAIS, PROVOCAM DISCUSSÕES ENTRE PESQUISADORES E INTERESSADOS NO ASSUNTO. A PROPÓSITO, O HISTORIADOR MOACYR FLORES, AUTOR DE DIVERSAS OBRAS SOBRE AQUELE PERÍODO E UM DOS RESPONSÁVEIS PELA PUBLICAÇÃO DE MILHARES DE DOCUMENTOS CONHECIDOS COMO COLEÇÃO VARELA (CV), DEU A LUME O LIVRO “NEGROS NA REVOLUÇÃO FARROUPILHA – TRAIÇÃO EM PORONGOS E FARSA EM PONCHE VERDE” (EST, PORTO ALEGRE, 2004), RESUMINDO A VISÃO OBJETIVA SOBRE AQUELES DOIS EPISÓDIOS UMBILICALMENTE LIGADOS.
O texto abaixo, é, em essência, o que foi publicado no Jornal Rotta/Jornal Cidade, de Passo Fundo, ANO 6 – II FASE – Nº 104, de 15 a 30 de novembro de 2004, sob o título de “Massacre em Porongos e Capitulação em Ponche Verde”. Nele, compulsando e confrontando documentos sobre aquele período histórico, aproveitei a oportunidade para divulgar um dos fatos mais vergonhosos da História do Rio Grande do Sul e da Revolução Farroupilha.
O historiador português José Caldas, em “História de um Fogo Morto” (Livraria Chardron. Porto, 1903), escrevendo sobre Vianna, cidade onde nasceu, dedicou longos parágrafos sobre a mitificação historiográfica. É-me impossível resistir à tentação de transcrever alguns deles.
Eis como abre o livro:
“Não conhecermos a nossa própria história é de bárbaro; conhecê-la, porém, viciada, tecida de burlas e de piedosas fraudes, é pior. Por que, no primeiro caso, com não sabermos quem somos, nem nos dizerem donde viemos, essa mesma ignorância obstará a que perpetremos muitos desconcertos; ao passo que se laborarmos no vício de uma falsa informação, daremos, muitas vezes, com a memória das fábulas que nos tiverem ensinado, razão sobeja e justificada a que se riam de nós.
Desde a antigüidade clássica, que a história dos povos, como resenha biográfica de dominadores vaidosos, que tentam impor à posteridade o último eco do seu orgulho insolente, é uma conspiração, já dizia José de Maistre, da mentira contra a verdade dos sucessos. Quase não há história de povos; há história de reis. Como o poder, ainda o mais detestado, é sempre munífico, nunca faltam nem aos maiores heróis nem aos mais odiosos déspotas, quem lhes exagerasse ou inventasse os merecimentos”.
A história de Passo Fundo, do Rio Grande do Sul e do Brasil, tem sido, exatamente aquilo que José Caldas, há mais de um século, percorrendo os textos históricos desde os gregos até os autores mais recentes, encontraria em muitos deles: “uma conspiração da mentira contra a verdade dos sucessos”.
Dois desses casos de “conspiração” ligam-se umbilicalmente: o massacre de Porongos e a capitulação de Ponche Verde, acertados entre o “efeminado maricas” David Canabarro e o Barão de Caxias, através dos puxa-sacos de ambos os dois generais.
No Rio Grande do Sul, salvo raras e honrosas exceções, os homens que escreveram e continuam escrevendo “nossa história” têm sido meros lambe-botas de estancieiros e generais.
Por isso, mais do que nunca, é urgente que se divulgue os fatos como eles verdadeiramente ocorreram. Ainda que correndo os riscos corridos por Domingos José de Almeida, o primeiro que tentou escrever uma história da Revolução Rio-Grandense de 1835.
Estes – e outros – despretensiosos trabalhos que venho publicando nos últimos tempos, prendem-se, visceralmente, a essa urgência urgentíssima.
Passo Fundo, RS, 10 de outubro de 2005.


O Combate dos Porongos - O Combate dos Porongos é um dos fatos mais controversos da História do Rio Grande do Sul. Nele a força imperial comandada pelo coronel Francisco Pedro de Abreu, conhecido como Chico Pedro, Moringue ou Fuinha, caiu sobre o 1º Corpo de Lanceiros de Linha, constituído quase exclusivamente por negros comandados pelo coronel Joaquim Teixeira Nunes. Também a infantaria foi atacada, após ter entregue, na véspera, o cartuchame por ordem do próprio general Davi Canabarro, comandante máximo das forças farroupilhas.
Há uma carta de Luis Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias, que presidia a província e comandava as forças do Império em operações no Rio Grande do Sul, ordenando Chico Pedro quanto à hora em que o acampamento dos Porongos deveria ser atacado, poupando-se “sangue brasileiro e quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro” (Anexos 3.1 e 3.2). É contestada por historiadores que apresentam uma visão mítica dos comandantes e combatentes farroupilhas, assegurando ter sido esse documento forjado por Moringue. A ordem de Caxias sempre foi considerada verdadeira por homens como Manuel Alves da Silva Caldeira, responsável pela condução do estandarte do 1º Corpo de Lanceiros de Linha, e Domingos José de Almeida, que chegou a ministro da Fazenda da República Rio-Grandense.
Manuel Alves da Silva Caldeira, que serviu quase toda a revolução no 1º Corpo de Lanceiros de Linha, deixou longos relatórios sobre o movimento armado, contestando autores de trabalhos históricos como Tristão de Alencar Araripe, Assis Brasil e Alfredo Ferreira Rodrigues. É o que consta de uma carta dirigida ao historiador Alfredo Varela, conforme passagem transcrita por Moacyr Flores (Op. Cit., págs. 57 e 58): “Araripe diz que Canabarro foi surpreendido nos Porongos. Assis Brasil, navegando nas águas do batel do Araripe, diz o mesmo, e o Sr. Alfredo Ferreira Rodrigues também segue a opinião, deles, inocentando Canabarro pela traição que fez em Porongos. Forjem os documentos que quiserem para defender Canabarro que não conseguirão salvá-lo (CV3102)”. Domingos José de Almeida coletou ampla documentação, pois pretendia escrever uma História da República Rio-Grandense. Deixou declaração confirmando ter visto a ordem de Caxias para que os lanceiros negros fossem massacrados, atestando sua autenticidade visto que reconhecia a letra de quem escrevia os atos oficiais e a assinatura do comandante legalista.
Na correspondência de Domingos José de Almeida, solicitando informações e papéis referentes à Revolução Farroupilha, insistia no pedido de dados sobre o “negócio dos Porongos”, referindo-se aos episódios antes, durante e depois do ataque.
Desde que sua intenção de escrever a História da República Rio-Grandense tornou-se pública passou a sofrer oposição de todos os lados, inclusive ameaças de morte. E os empecilhos para que não publicasse a obra se deviam fundamentalmente ao “negócio dos Porongos” . Por isso, após referências ao combate termina uma carta ao tenente-coronel Manuel Antunes da Porciúncula nestes termos: “Eis meu Antunes porque não querem que eu escreva essa História: e eu estarei livre de algum assassinato! O futuro o dirá!
Adeus:
recomenda-me à Sra., nosso velho F. e amigos”.
Almeida não escreveu sua História, mas deixou grande número de documentos indispensáveis para a reconstrução daquele período. Suas pesquisas levariam à revelação de fatos de tal gravidade que o faziam temer pela própria vida.
Domingos José de Almeida estava convicto de que houve um “negócio” (portanto um acerto, um acordo entre Caxias e Canabarro) para eliminar os negros que integravam as forças farroupilhas.
Moacyr Flores (Idem, págs. 71 e 72) conta que Bento Gonçalves manteve encontros e troca de correspondência com Caxias sobre a pacificação do Rio Grande. “A maior dificuldade – escreve o historiador – eram as exigências de Bento Gonçalves que não concordava com os termos das instruções”. As restrições do general farroupilha eram especialmente quanto à quinta cláusula, ao estabelecer que “Os escravos que fizerem parte das forças rebeldes apresentadas serão remetidos a esta Corte à disposição do governo Imperial, que lhes dará conveniente destino”. Por isso, os prisioneiros de Porongos foram levados para o Rio de Janeiro.
Uma das missivas de Bento Gonçalves foi interceptada pelo grupo de Davi Canabarro, de cujo núcleo central também faziam parte José Gomes de Vasconcelos Jardim, então presidente da República, os ministros Manuel Lucas de Oliveira e Pe. Chagas e Antônio Vicente da Fontoura. Este, que estava no acampamento dos Porongos, partiria, no dia seguinte ao combate, para o Rio de Janeiro, onde foi negociar um acordo de paz com o governo imperial.
Moacyr Flores lembra (Ibidem, p. 57) que, em 1842, no Alegrete, foi organizada uma sociedade secreta para tratar da pacificação do Rio Grande. Membros dessa organização, como Davi Canabarro, aceitavam a paz nos termos propostos pelo Império. Bento Gonçalves da Silva, que julgava humilhantes as condições oficiais, ao obrigarem os farroupilhas à solicitação de anistia e à entrega dos soldados negros, não concordava com elas. Para apressar o fim da Revolução o grupo de Canabarro acertou , com Caxias, a “traição (...) em Porongos”.
O Brasil dependia da economia escravista. Assumir a libertação pura e simples dos escravos que lutaram sob o governo da República Rio-Grandense – e até mesmo reconhecer a existência desse governo – era negar a essência do próprio regime brasileiro, abrindo um precedente perigoso. Qualquer insurreição teria facilidades em reunir um exército, bastava acenar com a libertação dos escravos que a seguissem. Depois, o que fazer com os negros libertos? Tanto poderiam tornar-se um exército mercenário a serviço das repúblicas platinas quanto fortalecerem os pequenos quilombos espalhados pelas serras rio-grandenses. E se esses negros se unissem aos caigangues, que não gostavam do governo dos brancos?
A única solução prática e imediata, tanto para o governo do Império quanto para os escravistas gaúchos, era o que aconteceu em Porongos: eliminar os farroupilhas negros.
Antônio Vicente da Fontoura era racista. E racistas eram a maioria dos oficiais que se submetiam ao comando de Canabarro. Legou-nos um precioso documento sobre o período, inclusive sob a vida íntima de alguns altos dignitários farrapos. É intitulado “Diário” (EDUCS/SULINA/MARTINS, 1984). Nele está documentada a homossexualidade de David Canabarro.
A Capitulação de Ponche Verde - Quando aconteceu o “negócio dos Porongos” as forças farroupilhas estavam isoladas entre si. Os comandantes apresentavam sérias divergências pessoais. Caxias tinha o controle completo da situação. Tanto que Canabarro pediu permissão para reunir e aquartelar suas forças em Ponche Verde.
Bento Gonçalves da Silva, a 6 de março de 1845, define o exército de Canabarro como “massa sem governo, sem ordem nem disciplina”. E, referindo-se à política do governo republicano rio-grandense, acrescenta que “O resultado de tanta asneira foi ser batida vergonhosamente aquela massa desordenada e por fim termos uma paz que só conseguimos alguma vantagem pela generosidade do barão, deste homem verdadeiramente amigo dos rio-grandenses, que não podendo fazer-nos publicamente bem por causa da péssima escolha dos negociadores e da estupidez sem igual dos que os designaram, nos fez o que não podíamos já esperar, salvando assim em grande parte nossa dignidade”. (Coletânea de Documentos de Bento Gonçalves da Silva, p. 259, Comissão Executiva do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, Porto Alegre, 1985).
Uma vez enfraquecidas as principais forças de resistência farroupilha, os lanceiros negros e “os infantes desarmados por ordem de Canabarro e mortos pelos soldados do coronel Abreu”, como escreve Moacyr Flores (Op. Cit., p. 61), presos ou mortos os dissidentes como é o caso de Joaquim Teixeira Nunes, possivelmente entregue pelos próprios companheiros, ou isolados como Bento Gonçalves, estava aberto o caminho para que as exigências da Corte fossem aceitas.
Para tanto, foi montada uma verdadeira conspiração de silêncio, ocultando-se ou desmoralizando documentos importantes para o entendimento dos fatos. Em termos de desmoralização, o centro é a ordem de Caxias para que Chico Pedro atacasse o acampamento dos Porongos (Anexos 3.1 e 3.2). Canabarro foi adredemente avisado de que seria atacado por Moringue e zombou das advertências. Poucas horas antes do combate mandou retirar as munições da infantaria, ordenou a retirada de parte do seu arquivo e a permanência de outra junto com sua amante, a Papagaia, e do médico com quem era casada.
Se alguém poderia colocar em dúvida a autenticidade dessa ordem não há mais motivos para isso desde que ela passou a fazer parte de publicações patrocinadas pelo Exército Brasileiro com “Ofícios do Barão de Caxias de 1842 a 1845” (Imprensa Militar, Rio de Janeiro, 1950, págs. 148-149). Se até uma editora oficial acolhe como verdadeira a ordem para que, preferencialmente, os negros fossem mortos, é inadmissível que alguém continue advogando sua falsidade.
Moacyr Flores (Idem, p. 72 e seguintes) cita diversos documentos de Caxias comprovando que os farroupilhas, através de Antônio Vicente da Fontoura, pediram-lhe permissão para se reunirem e que ele lhes autorizou que isso acontecesse na Estância dos Cunhas, em Ponche Verde. Ordenou que Moringue continuasse a perseguição aos rebeldes, menos em Ponche Verde. Mandou que o comandante militar de Piratini vigiasse Bento Gonçalves.
A ata de paz (Anexo 3.4) foi assinada, apenas por oficiais farroupilhas, a 25 de fevereiro de 1845. No mesmo dia Manuel Lucas de Oliveira, ministro e secretário dos negócios da Guerra dos farroupilhas, encaminhava a ata a Caxias, acompanhada de ofício que rezava textualmente: “Só falta Exmo. Sr. para decisão definitiva do transcendente objeto que V. Exa. se digne transmitir as autênticas concessões do Governo Imperial para serem públicas (...)” (Henrique O. Wiederspahn, “O Convênio de Ponche Verde”, EST/SULINA/UCS, 1980, p. 99).
“Caxias não respondeu e nem publicou os termos da paz”, conclui Moacyr Flores (Op. Cit., p. 75). Apenas expediu uma proclamação, com data de 1o. de março de 1845, anunciando a pacificação e a anistia, esta nos termos do Decreto Imperial de 18 de dezembro de 1844 (Anexo 3.8, conferir com 3.3). Esse decreto desapareceu dos arquivos oficiais, como nota Edna Gondin de Freitas, chefe da Seção de Legislação Brasileira da Câmara dos Deputados, na apresentação da coletânea “Anistia; Legislação Brasileira, 1822-1879” (Câmara dos Deputados, Brasília, 1980). Sobrou, porém, uma cópia desse decreto (Anexo 3.6), preservada por Domingos José de Almeida (Coleção Varela no. 2178).
Durante muito tempo os farroupilhas apresentaram como o “Tratado de Ponche Verde”, um documento assinado por Antônio Vicente da Fontoura.
Segundo Henrique O. Wiederspahn (Op. Cit., págs. 11 e 12) Caxias modificou o documento elaborado pelos farroupilhas (Anexo 3.5).
Em 1880 Tristão de Alencar Araripe divulgou um texto bastante diferente das versões elaboradas pelos revolucionários e Conde de Caxias, conforme se vê na edição fac-símile de seu livro “Guerra Civil no Rio Grande do Sul” (Corag, Porto Alegre, 1986, p. 178).
Como notam os historiadores, há divergências entre essas três versões do acordo, especialmente com a que Tristão de Alencar Araripe pôs em circulação. As diversas solicitações feitas, inclusive por próceres farroupilhas, de indenização por seus escravos que serviram nas forças republicanas comprovam que, de fato, vigoraram os termos recolhidos pelo historiador cearense.
Para colocar a história dentro da terminologia contemporânea, no dia 14 de novembro de 1844, no Cerro dos Porongos, próximo à atual cidade de Pinheiro Machado, aconteceu um massacre. Deliberadamente, o Império Brasileiro, através do general Luis Alves de Lima e Silva, e a República Rio-Grandense, por intermédio de seu presidente, José Gomes de Vasconcelos Jardim, do comandante das forças farroupilhas, Davi Canabarro, e outros líderes do movimento, promoveram a matança dos negros que integravam o 1o. Corpo de Lanceiros de Linha, e de infantes, que receberam ordem de entregar as munições, e que formavam as frações mais combativas das forças revolucionárias. Com isso, apressavam o fim do movimento armado e eliminavam o maior empecilho à paz: a libertação dos soldados negros. Mais de uma centena deles pereceram no confronto e muitos mais foram remetidos à Corte, como “escravos da Nação”, sendo empregados em serviços do governo ou vendidos para os escravagistas.
Os caudilhos farroupilhas, que integravam uma sociedade secreta, aceitaram as condições impostas pelo Império. Para tanto, fizeram passar como tratado de paz uma convenção por eles inventada. Contribuíram para a morte de líderes que não concordavam com as imposições imperiais, como o coronel Joaquim Teixeira Nunes, e o isolamento de outros. Bento Gonçalves da Silva foi colocado à margem dos acontecimentos, e o general Antônio de Souza Neto exilou-se no Uruguai.
Diga-se, a bem da verdade, que Neto levou consigo duas centenas de negros, que lutavam sob seu comando. Republicano convicto, com certeza temia que seus soldados negros fossem reduzidos à escravidão ou massacrados. Nessa época o Uruguai já havia abolido a escravatura.
Moacyr Flores é até eufêmico ao aplicar os termos “traição” para o que aconteceu no Cerro dos Porongos e “farsa” para o ocorrido em Ponche Verde. Na verdade, houve massacre num lugar e capitulação pura e simples em outro.
No momento em que a discussão sobre “o negócio dos Porongos” ganha as ruas, a leitura do mais novo livro de Moacyr Flores é muito importante. Importante, ainda, é lembrar o que ele escreve à página 16: “Atualmente, a sugestão de que os negros tenham garantido 20% das vagas em universidades é mais uma medida demagógica e discriminatória, atribuindo ao negro uma incapacidade de competir com as demais etnias. Por que não fornecer bolsas de estudos para alunos carentes, a fim de que se preparem melhor para prestar vestibular?”

Documentos Anexados

Carta de Caxias para atacar Porongos
Reservado – Sr. Cel. Francisco Pedro de Abreu, Com. Da 8ª Brigada do Exército - Regule V. S. suas marchas de maneira que no dia 14, às duas horas da madrugada possa atacar as forças a mando de Canabarro, que estará nesse dia no Serro dos Porongos. Não se descuide de mandar bombear o lugar do acampamento de dia, devendo ficar bem certo de que ele há de passar a noite nesse mesmo acampamento. Suas marchas devem ser o mais ocultas que possível seja, inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter as suas observações sobre o lado oposto. No conflito poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro. A relação junta é das pessoas a quem deve dar escápula, se por casualidade caírem prisioneiras. Não receia a infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro de seu general-em-chefe para entregar o cartuchame sob o pretexto de desconfiarem dela. Se Canabarro ou Lucas forem prisioneiros deve dar-lhes escápula de maneira que ninguém possa nem levemente desconfiar, nem mesmo os outros que eles pedem, que não sejam presos, pois V.S. bem deve conhecer a gravidade deste secreto negócio, que nos levará em poucos dias ao fim da revolta desta Província. Se por acaso cair prisioneiro um cirurgião ou um boticário de Santa Catarina, casado, não lhe registre a sua bagagem, nem consinta que ninguém lhe toque, pois com ela deve estar a de Canabarro. Se por fatalidade, não puder alcançar o lugar que lhe indico, no dia 14, às horas marcadas, deverá desferir o ataque para o dia 15 às mesmas horas, ficando certo de que, neste caso, o acampamento estará mudado um quarto de légua, mais ou menos por essas imediações em que estiveram no dia 14. Se o portador chegar a tempo de que esta importante empresa possa se efetuar, V.S. lhe dará seis onças, pois ele promete-me entregar em suas mãos este ofício até às 4 horas da tarde do dia 11 do corrente. Além de tudo quanto lhe digo nesta ocasião, já V S. deverá estar bem ao fato do Estado das coisas pelo meu ofício de 28 de outubro e, por isso, julgo que o bote será aproveitado desta vez. Todo o segredo e circunspecção é indispensável nesta ocasião, e eu confio no seu zelo e discernimento que não abusará deste importante segredo. Deus Guarde a V. S. Quartel-General da Província e Com.-em-Chefe do Exército, em marcha nas imediações de Bagé, 9 de novembro de 1844 - Barão de Caxias.
Apenso - NOTA IMPORTANTE DO COPIADOR, à p. 148 desta coletânea de ofícios de Caxias: Este ofício deve ser criteriosamente analisado. Há quem tenha suas dúvidas a respeito de sua autenticidade. No Livro 171 do Museu do Estado, ele está deslocado, isto é, foi copiado na última página do mesmo, pág. 249, enquanto o ofício que trata da parte do combate dos Porongos está na pág. 206. O Ofício a que se refere Caxias, de 28 de outubro, contendo o mesmo assunto, não foi possível descobrir. Esse ofício talvez elucidasse o assunto. Vide o que diz a propósito Alfredo Ferreira Rodrigues no Almanaque do Rio Grande do Sul de 1901. A defesa de A. F. Rodrigues de Canabarro me parece fraca. Julgo o documento legítimo, pois Francisco Pedro não teria nenhuma conveniência em divulgar um documento que lhe tiraria todas as honras de uma estrondosa vitória, como foi julgada a surpresa dos Porongos.

Carta de Chico Pedro sobre o Ataque a Porongos
1º - Ofício do Ten.-Cel. Francisco Pedro de Abreu ao Barão de Caxias, datado do campo de Porongos, de 14.11.1844: Hoje ao romper da aurora ataquei ao Canabarro com o seu intitulado exército de mil e tantos homens: foi derrotado completamente, tendo cento e tantos mortos, e trezentos prisioneiros, e julgo excederá muito dos trezentos; porque ainda tenho gente por fora, e estão chegando aos cinco e aos seis; enfim poderiam-se escapar como duzentos e tantos homens a cavalo extraviados, isto mesmo por o campo ser muito montanhoso, e a minha cavalhada estar muito puxada, pelas muitas marchas de noite, e de dia emboscado. No número dos prisioneiros são trinta e quatro oficiais, sendo um deles o Ministro da Fazenda alheia: deixaram toda a bagagem, e alguns até se escaparam em mangas de camisa; perto de mil cavalos.

Instruções Reservadas
Eis o texto integral das referidas Instruções Reservadas:
1º. - No caso que os rebeldes continuem a manifestar desejos de depor as armas o General-em-Chefe poderá admitir essa manifestação de desejos, mas somente por meio de petição assinada pelos principais Chefes, dirigidas a Sua Majestade o Imperador, e concebidas em termos respeitosos, que em nada ofendam ao decoro da Nação e aos princípios fundamentais da lei do Estado.
2º. - O General-em-Chefe é autorizado a deferir imediatamente em nome de Sua Majestade, o Imperador, a qualquer petição que lhe for apresentada pelos Chefes rebeldes para o fim e nos termos indicados no artigo antecedente, e publicará em seguida o Decreto Imperial que nesta ocasião se lhe remete pelo Ministro da Justiça, concedendo ampla Anistia a todos os comprometidos na luta da rebelião, ao qual fará dar a maior publicidade nas diferentes povoações da Província.
3º. - Todos os indivíduos pertencentes às forças rebeldes, que nelas ocuparem postos de Oficiais, serão dispensados indefinidamente do serviço tanto de Linha como da Guarda Nacional, o que será declarado em Ordem do Dia do Exército, mencionando os nomes de tais indivíduos, sem publicar todavia que essa dispensa se dá por serem eles Oficiais. O General-em-Chefe exigirá informações dos Chefes rebeldes sobre os indivíduos em quem concorrer a circunstância indicada, fazendo deles três relações das quais duas serão remetidas, uma à Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, outra à da Justiça, e a terceira ficará guardada no Arquivo da Província.
4º. - O General-em-Chefe poderá entregar a cada um dos indivíduos de que trata o artigo antecedente declaração por escrito da dispensa do serviço de Linha e da Guarda Nacional, mas isto unicamente no que em que julgue esta medida indispensável, quer para conseguir a pacificação, quer para acautelar abusos.
5º. - Os escravos que fizeram parte das forças rebeldes apresentados serão remetidos para esta Corte, à disposição do Governo Imperial, que lhes dará conveniente destino.
6º. - Todas as mais praças das ditas forças serão mandadas retirar para suas casas, e aquelas que voluntariamente quiserem servir no Exército poderão ser admitidas, se o General-em-Chefe o julgar conveniente, distribuindo-as pelos diferentes Corpos.
7º. - O General-em-Chefe não deferirá a petição de reconhecimento da dívida contraída pelos rebeldes, quando porém, apareçam estorvos à terminação da guerra por embaraços pecuniários da parte dos rebeldes, o mesmo General-em-Chefe é autorizado para remover esses embaraços a dispender, das quantias destinadas às despesas gerais da Guerra, até a quantia de trezentos contos de réis. Esta disposição só terá lugar depois da Anistia, e de depostas as Armas rebeldes, e finalmente quando o General-em-Chefe, em sua discrição, entender que há suficiente garantia para que seja eficaz o emprego da medida. O General-em-Chefe que dirigirá esta operação, velará que ela seja concluída de modo que não possa haver reclamação alguma para o futuro.
8º. - Na Ordem do Dia do Exército se declarará que os Oficiais anistiados que tinham postos legais de 1ª ou 2ª Linha, ou da Guarda Nacional, antes da rebelião, ficam em conseqüência da Anistia restituídos ao gozo das prerrogativas e direitos Militares inerentes a esses postos.
9°. - O General-em-Chefe fará constar que o Governo Imperial dará as providências necessárias para a revalidação das dispensas e licenças concedidas pelo Vigário Capitular de nomeação dos rebeldes, depois de lhe haverem sido cassadas as faculdades outorgadas pelo Diocesano, por ser esta medida necessária para a tranqüilidade das consciências e a paz das famílias.
10°. - O General-em-Chefe procurará que os principais Chefes rebeldes, por própria garantia e a bem da futura tranqüilidade da Província, se retirem dela, para qualquer parte de sua livre escolha, dentro ou fora do Império, não sendo para os Estados limítrofes; e somente deixará de insistir sobre esta determinação quando ver que do seu cumprimento resulte a impossibilidade da pacificação.
11º. - Depois de cumpridas as disposições dos Artigos antecedentes o General-em-Chefe fará o Exército Imperial tomar posição tanto na fronteira, como nos pontos interiores que julgar mais adequados, e de tudo dará parte ao Governo, de quem esperará as convenientes ordens.

Ata de Pacificação elaborada pelos Farrapos
1 - O indivíduo que for pelos republicanos indicado presidente da Província, é aprovado pelo Governo Imperial e passará a presidir a Província.
2 - A dívida nacional é paga pelo Governo Imperial, devendo apresentar-se ao Barão a relação dos créditos para ele entregar à pessoa, ou pessoas para isto nomeadas, a importância a que montar a dita dívida.
3 - Os oficiais republicanos que, por nosso Comandante-em-Chefe, forem indicados, passarão a pertencer ao Exército do Brasil no mesmo posto, e os que quiserem suas demissões ou não quiserem pertencer ao Exército, não serão obrigados a servir, tanto em Guarda Nacional, como em 1ª linha.
4 - São livres, e como tais reconhecidos, todos os cativos que serviram na República.
5 - As causas civis, não tendo nulidades escandalosas, são válidas, bem como todas as licenças, e dispensas eclesiásticas.
6 - É garantida a segurança individual e de propriedade, em toda a sua plenitude.
7 - Tendo o Barão de organizar um corpo de linha, receberá para ele todos os oficiais dos republicanos, sempre que assim voluntariamente queiram.
8 - Nossos prisioneiros de guerra serão logo soltos, e aqueles que estão fora da Província, serão reconduzidos a ela.
9 - Não serão reconhecidos em suas patentes os nossos generais; porém, gozam das imunidades dos demais oficiais.
10 - O Governo Imperial vai tratar definitivamente da linha divisória com o Estado Oriental.
11 - Os soldados da República, pelos respectivos comandantes relacionados, ficam isentos de recrutamento de 1ª linha.
12 - Oficiais e soldados que pertenceram ao Exército Imperial, e se apresentaram ao nosso serviço, serão plenamente garantidos como os demais republicanos.

Texto de Tristão de Alencar Araripe
1o. – Anistia geral e plena para todas as pessoas envolvidas na rebelião.
2o. – Isenção de serviço militar e da guarda nacional para todos os indivíduos que tenham servido no exército da rebelião.
3o. – Gozarem os chefes rebeldes das honras dos seus postos.
4o. – Pertencerem os escravos, que serviram como soldados da república, ao estado, que os indenizará aos seus antigos proprietários.

Decreto de Anistia
Recorrendo à minha imperial clemência àqueles de meus súditos que, iludidos e desvairados, têm sustentado na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, numa causa atentatória da Constituição política do Estado, dos decretos da minha Imperial Coroa firmados na mesma Constituição e reprovado pela nação inteira; que leal e valorosamente se tem empenhado em debelá-la; e não sendo compatível com os sentimentos do meu coração o negar-lhes a paternal proteção a que os ditos meus súditos se acolhem arrependidos, hei por bem conceder a todos e a cada um deles, plena e absoluta anistia, para que nem judicialmente, nem por outra qualquer maneira, possam ser perseguidos ou de alguma sorte inquietados pelos atos que houverem praticado até a publicação deste decreto nas diversas povoações da referida província.

Convenção de Caxias
Art. 1º. - Fica nomeado Presidente da Província o indivíduo que for indicado pelos republicanos.
Art. 2°. - Pleno e inteiro esquecimento de todos os atos praticados pelos republicanos durante a luta, sem ser, em nenhum caso, permitida a instauração de processos contra eles, nem mesmo para reivindicação de interesses privados.
Art. 3°. - Dar-se pronta liberdade a todos os prisioneiros e serão estes, às custas do Governo Imperial, transportados ao seio de suas famílias, inclusive os que estejam como praça no Exército ou na Armada.
Art. 4°. - Fica garantida a Dívida Pública, segundo o quadro que dela se apresente, em um prazo preventório.
Art. 5°. - Serão revalidados os atos civis das autoridades republicanas, sempre que nestes se observem as leis vigentes.
Art. 6º. - Serão revalidados os atos do Vigário Apostólico.
Art. 7°. - Está garantida pelo Governo Imperial a liberdade dos escravos que tenham servido nas fileiras republicanas, ou nelas existam.
Art. 8°. - Os oficiais republicanos não serão constrangidos a serviço militar algum; e quando, espontaneamente, queiram servir, serão admitidos em seus postos.
Art. 9°. - Os soldados republicanos ficam dispensados do recrutamento.
Art. 10°. - Só os Generais deixam de ser admitidos em seus postos, porém, em tudo mais, gozarão da imunidade concedida aos oficiais.
Art. 11°. - O direito de propriedade é garantido em toda plenitude.
Art. 12°. - Ficam perdoados os desertores do Exército Imperial.
(ass. O Barão de Caxias)

Decreto de 25.11.1844
Hei por bem prorrogar por mais três meses, que serão contados da data em que o presente Decreto chegar às mãos do Barão de Caxias, Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, a autorização, que lhe foi dada por Decreto de 14 de março do corrente ano, de poder anistiar os indivíduos compreendidos na rebelião da Província do Rio Grande do Sul, que se tornassem dignos da Minha Imperial Clemência, depondo as armas, e submetendo-se ao Meu Governo.
Quanto aos termos da citada portaria de anistia, transcreveremo-la também e de acordo com o seu inteiro teor:
O Barão de Caxias, Viador de Sua Majestade a Imperatriz, Marechal e Ajudante de Campo de Sua Majestade o Imperador, Grão Cruz da Ordem de São Bento de Aviz, Cavaleiro das Imperiais Ordens do Cruzeiro e da Rosa, Condecorado com a Medalha da Guerra da Independência, Presidente e Comandante-em-Chefe do Exército em Operações na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, etc.
Faz saber aos que este título virem que em virtude de autorização que lhe foi conferida por Decreto Imperial de 18 de dezembro de 1844, resolveu conceder a JOCA BENTO CORREA, plena e absoluta anistia; para o que não possa judicialmente, ou por outra qualquer medida ser perseguido, ou de alguma sorte inquietado, pelos atos, que houver praticado durante a revolução desta Província.
Em firmeza do que mandei passar o presente; que vai por assinado, e selado com o Selo das Armas do Império.
Quartel-General da Presidência, e do Comando-em-Chefe do Exército, em São Gabriel, 18 de março de 1845.
(ass.) Barão de Caxias
(Tipografia do Exército)
(*) Paulo Monteiro, autor de centenas de artigos e ensaios sobre literatura e história, pertence a diversas entidades culturais do Brasil e do exterior. Endereço para correspondência e envio de livros para leitura e análise: Paulo Monteiro – Caixa Postal 462 – CEP 99.001-970 – Passo Fundo – RS.
 
O Massacre de Porongos e a Capitulação de Ponche Verde

Academia Passo-Fundense de Letras Promove Lançamento de Romance Sobre “Caso Adriano”

 
A Academia Passo-Fundense de Letras promoverá o lançamento do livro “Os 12 Bilhetes de Adriano”, do escritor Gilmar de Azevedo. Professor de Literatura nas Faculdades Anglo-Americano de Passo Fundo, e na UERGS – Universidade do Estado do Rio Grande do Sul, este é o 19º livro do escritor passo-fundense, e o primeiro de ficção.
O livro é a história fictícia dos assassinatos de doze meninos, cometidos em Passo Fundo e adjacências, há alguns anos. E nele o romancista apresenta aspectos profundos da natureza humana, dialogando com os fatos concretos, a mitologia grega, e grandes obras literárias e filmes consagrados. Tudo isso é contextualizado com acontecimentos da época, entre os quais a Guerra do Iraque.
Dentro do processo de modernização da Academia Passo-Fundense de Letras, o lançamento será acompanhado de uma mesa redonda, envolvendo especialistas em saúde mental e pessoas que acompanharam o chamado “Caso Adriano”.
Além do escritor Gilmar Azevedo e de Paulo Monteiro, presidente da Academia, que será o mediador da mesa redonda, estarão presentes o advogado Daniel Viuniski, que atuou como advogado de um grupo de meninos que, sob tortura, assumiram a autoria de um dos assassinatos. Com isso, Daniel Viuniski, membro da Academia Passo-Fundense de Letras e um dos mais respeitados criminalistas do Estado, conheceu os meandros das investigações. Também participarão do evento os jornalistas Gerson Lopes, que cobriu o caso inspirador do livro para os jornais Diário da Manhã e Folha de São Paulo e Roberta Salinet, que acompanhou as investigações e os julgamentos do criminoso para a RBSTV.
O médico e escritor Aventino Alfredo Agostini, especialista em Anatomia Patológica, o psiquiatra, escritor e cineasta Jorge Alberto Salton, membro da Academia, a psicopedagoga Marisa Potiens Zílio, autora de livros sobre o comportamento humano, e um representante da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo, também comporão a mesa redonda.
O evento acontecerá na próxima quinta-feira, dia 27 de agosto, a partir das 19 horas, na sede da Academia Passo-Fundense de Letras, situada na Avenida Brasil Oeste 792, com entrada franca.
Lançamento de livro com debate sobre os assuntos tratados é uma inovação. Segundo o acadêmico Paulo Monteiro faz parte de um processo de modernização e abertura para a comunidade implantado na Academia. É a primeira vez que um grupo de especialistas em diversas áreas se reúne para discutir uma obra de ficção. Com isso, afirma o presidente, a Academia cumpre mais uma de suas finalidades: contribuir para a elevação cultural da comunidade passo-fundese.
 
Academia Passo-Fundense de Letras Promove Lançamento de Romance Sobre “Caso Adriano”

a sombra

 
paulo monteiro

há uma sombra nas faces
nos olhos na mente
mentiras mentiras e mentiras
só mentiras e sombra
os homens caminham
para todos os lados
para todos os lados
para trás e para a frente
para a direita e para a esquerda
para todos os lados
os homens caminham

sempre a sombra acompanha-nos
a sombra a sombra enorme
chamada ganância competição
ordem et caterva

os termos mudam
conforme as condições
mas sempre significam a mesma
sombra

a sombra enorme
um mito
tem sete cabeças
e sete línguas vezes sete
tem sete nomes vezes sete vezes
quanto sete existe
a sombra é um 7
é preciso ir além do 7
 
a sombra

soneto bestialógico 1

 
paulo monteiro

um soneto perdido entre dois versos
parece-nos dizer quanto sentimos
fugir a inspiração quando tentamos
contar em verso o que nos toma conta

um soneto perdido entre dois versos
que tentamos unir multiplicando
por sete vezes dois já nos recorda
mil simbolismos até mesmo bíblicos

e depois de infinitas tentativas
em que gastamos tempos ou neurônios
resta-nos a conclusão fatal que

não há nada mais triste neste mundo
que ver sobrar depois de tanto esforço
um soneto perdido entre dois versos
 
soneto bestialógico 1

do amor

 
paulo monteiro

teu corpo é suave como a pluma leve
de um pintassilgo quando deixa o ninho
e como uma avezinha mal-crescida
procuras tonta as margens do caminho

levo emplumada a mão que fina escreve
busco prender teu corpo num delírio
e foges sorumbática e aturdida
como seu eu fosse víbora ou martírio

depois cansada paras minha presa
entregas-me teu corpo frio de medo
e após refeita como uma ave ilesa

adormeces na tarde e acordas cedo
já sem frio já sem medo linda e dócil
começando um trinado no meu dedo
 
do amor

BOCAGE: UM POETA CONTRA A HIPOCRISIA

 
Paulo Monteiro (*)

O dia 21 de dezembro de 2005 deveria ser uma das datas mais significativas para toda a literatura da Língua Portuguesa, neste começo de milênio. Todos nós, que amamos a literatura e a língua de Camões deveríamos estar reunidos para lembrar a passagem dos duzentos anos da morte do maior sonetista – e um dos mais representativos poetas – de nossa língua. Entretanto, será um dia triste, pois a censura e as trevas medievais ainda acompanham a vida e principalmente a obra de Manoel Maria Barbosa du Bocage.
Em Portugal, o próprio ministério responsável pela Educação, impõe limites a que o poeta seja lido nas escolas. Isso é inadmissível num país civilizado, em pleno Século XXI. Há motivos históricos para isso. E Bocage paga muito caro por, ao mesmo tempo em que realizou uma das obras poéticas da melhor qualidade, tocar nos pontos profundos da formação portuguesa que interferiram, e continuam interferindo, na vida nacional dos países criados pelo imenso império colonial lusitano.
Bocage nasceu em Setúbal no dia 7 de setembro de 1766. Aos 10 anos perdeu a mãe. Aos 16 ingressa no Regimento de Infantaria de Setúbal. Deserta e foge de casa, acompanhado do irmão Gil Francisco. Mais tarde muda-se para Lisboa, entrando para a Companhia dos Guardas-Marinhas, incorporada na Academia Real da Marinha. Une-se à boêmia literária lisboeta, destacando-se como improvisador. Mais uma vez deserta. Passa a viver ao deus-dará, embriagando-se e recebendo o aplauso e a admiração de poetas como Filinto Elísio e Marquesa de Alorna.
Deixa-nos, dessa época, um retrato dele próprio, que, no aspecto físico, pouco difere do quadro que dele nos ficou.
Magro, de olhos azuis, carão moreno
Bem servido de pés, meão de altura,
Triste de facha, o mesmo de figura
Nariz alto no meio e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno;
Mais propenso ao furo do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Trata-se da versão “séria”, existindo uma outra, “clandestina”, a exemplo que ocorre com muitos poemas bocageanos.
Acaba retornando à Marinha, talvez motivado pela paixão por Gertrúria, nome poético de Gertrudes. Há duas delas conhecidas. Uma casou com seu irmão Gil Francisco e que segundo alguns biógrafos seria o grande amor – e ainda maior desilusão amorosa – do poeta.
Ao partir para o Oriente se despede com versos como estes:
Deixar, amado bem, teu rosto lindo,
Teus afagos deixar, tua candura,
Tanto me oprime, que da Morte escura,
Sobre mim negras sombras vêm caindo.

Eu parto, e vou teu nome repetindo,
Porque dê desafogo à mágoa dura;
Meus tristes ais, suspiros de amargura,
Aquém dos mares ficarás ouvindo.

Mas se me cercam no cruel transporte
Quantas fúrias o Báratro vomita,
Se meu mal é pior que a mesma Morte,

O Fado em me aterrar em vão cogita!
Com todo o seu poder não pode a Sorte
Tua imagem riscar desta alma aflita!
Sua admiração pela obra de Camões também deve ter contribuído para esse retorno à marinha e pela “aventura no oriente”.
Ele mesmo o confessa num soneto famoso:
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu é, mas... oh! tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
Antes de chegar à Índia passa pelo Rio de Janeiro, precedido pela fama literária. Conta-se que, durante um sarau, um espectador dotado de privilegiada memória resolveu aprontar uma peça para o poeta. Bocage improvisou um poema e o gaiato berrou: “Isso é um roubo. Esse poema é meu”. E repetiu todos os versos. Novo improviso e nova denúncia de fraude. Ao final da terceira ou quarta "fraude", Bocage não resistiu. Abraçou o gozador. O final da história fica por conta da imaginação: devem ter acabado comemorando o encontro com um porre homérico.
Em Damão deserta. Há documentos de que era um militar responsável. A notícia de que Gertrudes o trocara por outro deve ter contribuído para a deserção. Torna-se andarilho. Imortaliza a infelicidade amorosa em belos versos líricos.
Do Mandovi na margem reclinado,
Chorei debalde minha negra sina,
Qual o mísero vate de Corina
Nas tomitanas praias desterrado.

Mais duro fez ali meu duro fado
Da vil Calúnia a língua viperina;
Até aos mares da longínqua China
Fui por bravos tufões arremessado.

Atassalou-me a serpe que devora
Tantos mil; perseguiu-me o grão gigante
Que no terrível promontório mora.

Por bárbaros sertões gemi, vagante;
Falta-me inda o pior, falta-me agora
Ver Gertrúria nos braços de outro amante!
E o ainda pior. Esse amante seria o próprio irmão Gil Francisco, que casaria com a Gertrúria.
Na Índia encontra nativos e mestiços querendo ser brancos, europeus. Isso lhe revolta. Vinga-se nalgumas das mais ásperas e atualíssimas sátiras da língua, como esta:
Das terras a pior tu és, ó Goa,
Tu pareces mais ermo que cidade,
Mas alojas em ti maior vaidade
Que Londres, que Paris ou que Lisboa.

A chusma de teus íncolas pregoa
Que excede o Grão Senhor na qualidade;
Tudo quer senhoria; o próprio frade
Alega, para tê-la, o jus da c’roa!

De timbres prenhe estás; mas oiro e prata
Em cruzes, com que dantes te benzias,
Foge a teus infanções de bolsa chata.

Oh! que feliz e esplêndida serias,
Se algum fusco Merlim, que faz bagata,
Te alborcasse a pardaus as senhorias!
Essa consciência de que os moradores das “colônias” eram diferentes dos metropolitanos é interpretada por leitores apressados como racismo. Bocage viu a artificialidade da cultura mestiça, ou melhor, a inconsciência dessa mestiçagem.
Daí é que ao retornar a Portugal satirizará o mulato brasileiro, padre Domingos Caldas Barbosa. Este, sim, racista, pois não se aceitava como realmente era, brasileiro e mulato.
Lembrou-se no Brasil bruxa insolente
De armar ao pobre mundo estranha peta;
Procura um mono, que infernal careta
Lhe faz de longe, e lhe arranha o dente.

Pilhando-o por mercê do Averno ardente,
Conserva-lhe as feições na face preta;
Corta-lhe a cauda, veste-o de roupeta,
E os guinchos lhe converte em voz de gente.

Deixa-lhe os calos, deixa-lhe a catinga;
Eis entre os Lusos o animal sem rabo
Prole se aclama da rainha Ginga;

Dos versistas se diz modelo e cabo;
A sua alta ciência é a mandinga,
O seu benigno Apolo é o Diabo.
Duzentos e tantos anos depois, nós, aqui do Brasil, podemos assistir pela televisão outros “descendentes da rainha Ginga”, muitas vezes investidos de cargos oficiais e pagos com dinheiro dos cofres públicos, fazendo suas “macaquices” na Europa... E não podem vir a Passo Fundo participar da Jornada Nacional de Literatura...
De volta a Portugal, curtindo sua desilusão amorosa, continua a vida boêmia. Sob o nome de Elmano Sadino, ingressa na Academia de Belas Letras, mais conhecida como Nova Arcádia. Aumenta o seu reconhecimento público. Ciente de seu próprio valor literário acaba se atritando com meio mundo. É lido e aplaudido. Recebe críticas violentas. Responde à altura.
É excluído da Academia e vinga-se dos ex-confrades. Muitos dos quais, hoje, são apenas lembrados pelos versos que Bocage lhes dedicou.
Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas,
Macedos e outras pestes condenadas;
Vós de cujas buzinas penduradas
Treme de Jove as melindrosas filhas;

Vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas
Do baixo vulgo insossas gargalhadas,
Por versos maus, por trovas aleijadas,
De que engenhais as vossas maravalhas,

Deixai Elmano, que, inocente e honrado,
Nunca de vós se lembra, meditando
Em coisas sérias, de mais alto estado.

E se quereis, os olhos alongando,
Ei-lo! Vede-o no Pindo recostado,
De perna erguida sobre vós mijando.
As principais obras de sua autoria publicadas em vida foram: Rimas (Tomo I), em 1791; Rimas (Tomo II), em 1799; Rimas (Tomo I, 2ª edição, correta e aumentada, no ano seguinte; Poesias (Tomo III), em 1804; Improvisos de Bocage na Sua Mui Perigosa Enfermidade, em 1805. Pouco antes de sua morte foi dada a lume Colecção dos Novos Improvisos de Bocage na Sua Moléstia.
A consagração do poeta, a sua consciência do próprio valor e a coragem no cantar todos – mas todos, mesmo – os temas pessoais e coletivos, levaram-no a enfrentar problemas com a censura, que culminaram com seu encarceramento em prisões do Estado e da Inquisição entre 10 de agosto de 1797 e 17 de fevereiro do ano seguinte.
Não perdoa ninguém. Nem mesmo o clero. Ataca os padres em termos violentos, inclusive sobre a pederastia dos mesmos. Esses versos fazem parte de um volume publicado postumamente, sob o título de Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas. Muitas dessas poesias são apócrifas.
Sirva de exemplo este em que denuncia o desrespeito ao celibato sacerdotal:
Bojudo fradalhão de larga venta,
Abismo imundo de tabaco esturro,
Doutor na asneira, na ciência burro,
Com barba hirsuta, que no peito assenta;

No púlpito um Domingo se apresenta;
Prega nas grades espantoso murro;
E acalmado do povo o grão sussurro
O dique das asneiras arrebenta.

Quatro putas mofavam de seus brados,
Não querendo que gritasse contra as modas
Um pecador dos mais desaforados;

“Não (diz uma) tu, padre, não me engodas;
Sempre me há de lembrar por meus pecados
A noite em que me deste nove fodas!”
Bocage criticava padres, mas era visceralmente católico. Muitos de seus poemas estão carregados de um profundo catolicismo. Marianista extremado e antiprotestante, ele, que somente no altar amava os frades, foi sepultado na Igreja das Mercês, em Lisboa.
O poeta setubalense influenciaria os satíricos da “Belle Époque”. Olavo Bilac era seu admirador confesso. Entre fins do século XIX e começos do século XX foram comuns os epitáfios em versos. Eis o autoepitáfio burlesco de Bocage:
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade;

Não quero funeral comunidade,
Que engrole “sub-venites” em voz alta;
Pingados gatarrões, gente da malta,
Eu também vos dispenso a caridade;

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”.
Quase morrendo ditou a seu amigo Morgado de Assentiz, um dos sonetos mais densamente humanos conhecidos, verdadeiro “confiteor”, que anda pelas melhores antologias da língua lusitana.
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

“Outro Aretino fui... A santidade
Manchei... Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!
Como tantos outros grandes artistas, Manoel Maria Barbosa du Bocage terminou seus dias na mais absoluta pobreza, realizando traduções para sobreviver. E como eles, também, teve a seu lado bons e dedicados amigos. Ficou mais conhecido pelas piadas que lhe são atribuídas porque foi um poeta que viveu intensamente sua época e por isso é transcendental.
Duzentos anos depois de sua morte a temática desenvolvida por ele continua atual. Por isso, também, segue perseguido e censurado. Verdadeiro poeta maldito. Maldito pelos hipócritas e fariseus. Censurado por aqueles que sempre satirizou e que são os responsáveis maiores por todos os problemas daquele tempo e que praticamente não mudaram.
Ler Bocage, comentar Bocage, exigir a anistia para Bocage devem ser imperativos de honra para todos nós, os herdeiros da língua em que ele poetou, enriquecendo com seus versos.
(*) Paulo Monteiro pertence a diversas entidades culturais do Brasil e do exterior. Tem centenas de artigos e ensaios publicados sobre temas históricos e literários.
 
BOCAGE: UM POETA CONTRA A HIPOCRISIA

in pacen

 
paulo monteiro

aqui em atenas apenas
sócrates dorme
silenciosamente dorme
com a consciência tranqüila
após beber cicuta
 
in pacen

Las Satrapías: o Poema Enterrado Vivo

 
Paulo Monteiro

Estudioso da história, em mim cada vez mais se firma a convicção de que não existe história neutra. Todos nós estamos com ela comprometidos, na acepção mais radical da palavra. E radical sou, pois vou à raiz das coisas.
Revolta-me ouvir pessoas defenderem o retorno de um regime ditatorial. Fiz-me homem lutando pela liberdade. Sofri por ela e a amo imensamente.
Esse amor se aprofundou em 1975. Naquele ano, diversos companheiros que participavam da luta clandestina contra o autoritarismo foram presos. Dois deles me conheciam, sabiam até meu endereço. Foram barbaramente torturados, mas não me denunciaram aos verdugos. Não recordo mais seus nomes de guerra, como eram chamados os codinomes ou nomes falsos. Os nomes verdadeiros, que só vim descobrir tempos depois, eram Hilário Gonçalves Pinha e Ernesto Bernardi.
Ao saber que as prisões se espalhavam pelo Estado tratei de ocultar farto material “subversivo” que estava comigo. Jornais clandestinos, livros de autores proibidos e um poema. Exatamente, um poema! O último poema de Pablo Neruda, intitulado “Las satrapías”, escrito em 15 de setembro de 1973, poucos dias depois do golpe de estado que derrubou o governo de Salvador Allende, e instalou uma ditadura sanguinária no Chile.
Aqueles vinte e três versos do poeta do “Canto Geral” representavam o documento mais comprometedor, pois comprovavam que eu era um perigoso agente do comunismo internacional. Nas mãos dos carrascos, talvez se constituíssem na prova material de que eu fosse até mesmo um comedor de criancinhas. Para ser mais claro que eu – como se dizia dos comunistas – assasse criancinhas...
Ante a urgência de consumir com aqueles documentos, na impossibilidade de retirá-los de minha casa, na Vila Jerônimo Coelho, enrolei-os com todo o cuidado em sacos plásticos, abri um buraco, acomodei-os ali e transformei o local num belo canteiro de alfaces. Em todo esse processo fui auxiliado por minha mãe, Leocrécia da Silva Monteiro, a única pessoa de minha família que conhecia minha dupla militância e o que deveria fazer caso eu tivesse problemas com os órgãos de repressão.
Nos dias seguintes reunimos o Comitê Municipal do Partido Comunista Brasileiro – PCB – e fui designado para ir a Porto Alegre, participar de um grupo organizado para lutar pela liberdade dos companheiros presos. Na capital, caminhando, à noite, pelas ruas, com um representante do Comitê Central do Partido, de que não devíamos mais nos reunir “paralelamente”. Eram ordens de Moscou. Isso mesmo: “ordens de Moscou”.
Mandei todos eles às favas e a todos os outros lugares possíveis e imagináveis. Retornei para Passo Fundo e dissolvemos o Comitê Municipal e umas cinco ou seis células que nos davam sustentação. Para nós, leitores e estudiosos de Marx, Engels e Lênin, uma “ordem de Moscou” para que deixássemos nossos camaradas entregues às garras de torturadores era demais. Significava a negação do marxismo, a indignidade, no sentido mais lato da palavra. Nunca mais quis saber de partidos comunistas.
Ânimos serenados e alfaces comidas, sabendo que os companheiros que poderiam delatar-me, se comportaram com dignidade exemplar, desenterrei as publicações. Para minha tristeza, a umidade transformou o material impresso numa pasta ilegível. Salvei apenas uma velha edição de “Um Passo Adiante Dois Passos Atrás”, coincidentemente a denúncia de um partido que se transformara naquilo em que o PCB já era.
A tristeza maior, porém, foi a perda definitiva daquela edição clandestina de “Las satrapías”.
Algum tempo depois, sob pseudônimo, escrevi um artigo para um jornal do Partido Comunista Brasileiro prevendo que os comunistas brasileiros acabariam no que acabaram, até envolvidos em mensalões e mensalinhos.
Passados trinta e três anos, o poema está acessível a qualquer leitor, na internet. Alguns daqueles versos, ainda agora, mais de três décadas depois, continuam vivos na minha memória.
Hoje, numa homenagem a Hilário Gonçalves Pinha e Ernesto Bernardi, revelo essa história. Ambos se portaram, diante da prisão e da tortura, com altivez e dignidade estoicamente heróicas. E é em homenagem à memória de Hilário e Ernesto que faço e dedico-lhes esta tradução para o português o poema de Pablo Neruda.
As Satrapias

Pablo Neruda

Nixon, Frei e Pinochet,
até hoje, até este amargo
mês de setembro
do ano de 1973,
com Bordaberry, Garrastazu
e Banzer, hienas vorazes
de nossa história, roedores
das bandeiras conquistadas
com tanto sangue e tanto fogo,
atolados em suas riquezas,
depredadores infernais,
sátrapas mil vezes vendidos
e vendedores, atiçados
pelos lobos de Nova York,
máquinas famintas de dores
manchadas no sacrifício
de seus povos martirizados,
prostituídos mercadores
do pão e do ar americano,
imundos, carrascos, manada
de prostibulários caciques,
sem outra lei que a tortura
e a fome continuada do povo.
 
Las Satrapías: o Poema Enterrado Vivo

Um sonho sonhado junto continua e desperta admiração

 
Vereador Diógenes Baségio, presidente da Câmara Municipal;
Senhor Décio Ramos de Lima, chefe do Gabinete e representante do prefeito municipal, em cujas pessoas saúdo os demais integrantes da mesa diretora dos trabalhos;
Pintora Klênia Sanches, autora da capa do nº. 6 da Água da Fonte, e padre Paulo Augusto Farina, entrevistado desta edição da revista;
Senhores acadêmicos e senhoras acadêmicas;
Senhores e senhoras convidados;
Quem deveria falar em nome da Academia Passo-Fundense de Letras nesta noite, aqui não pode estar presente. Problemas de saúde em pessoa de sua família impediram nosso confrade Marco Antônio Damian de comparecer a esta sessão solene e fazer-se órgão desta Academia. Apenas ontem, à tarde, comunicou-me do impedimento.
Entre exigir esforço de algum de nossos muitos confrades em produzirem um pronunciamento de última hora e assumir essa responsabilidade, optei pela segunda alternativa. É um ônus de quem sempre quis presidir esta casa e o conseguiu, com a graça de Deus e o apoio dos seus pares.
Quando, na noite de 7 de abril de 1938, um punhado de idealistas liderados pelo italiano Sante Uberto Barbieri decidiu fundar esta casa, é possível que nem imaginassem a importância da iniciativa. Modestos, em vez academia, optaram por criar o Grêmio Passo-Fundense de Letras.
Inseriam-se num programa político no qual a nacionalização do ensino e a divulgação da língua e da literatura nacionais exerciam um papel preponderante. O mundo dilacerava-se, pois nações que chegaram tarde à divisão imperialista dos mercados e fontes de matérias primas pretendiam conquistar espaços à força, através do nazi-fascismo.
No Brasil, não tínhamos unidade lingüística, ainda. Aqui mesmo, em Passo Fundo, proliferavam escolas em dialetos trazidos por imigrantes mais ou menos recentes. Brasileiros de nascimento, mas não falando a língua do país, faziam questão de dizerem-se nacionais das pátrias de seus pais, avós e bisavós. A Academia Passo-Fundense de Letras surge nesse meio histórico. E se consolida, ao contrário de outras iniciativas congêneres que não prosperaram. E os fracassos superaram os êxitos.
A criação daquele pugilo de idealistas consolidou-se porque Passo Fundo já apresentava um passado de iniciativas culturais exitosas, desde o Clube Amor à Instrução, na década de 1880, e sua biblioteca reunindo mais de mil volumes, à disposição dos passo-fundenses, passando pelas diversas iniciativas de cunho teatral, pelos jornais – e aqui há de se destacar nossos dois diários circulando, ininterruptamente, até hoje.
Devemos lembrar a verdadeira revolução na educação vivida por Passo Fundo, entre 1920 e 1930, sob a liderança de Nicolau de Araújo Vergueiro, tão bem historiada por nossos confrades Welci Nascimento e Santina Rodrigues Dal Paz no livro “Vultos da História de Passo Fundo”, que, ampliado, sairá em segunda edição nos próximos meses.
O então vastíssimo município de Passo Fundo que, no ano de 1921 dispunha de apenas 7 escolas com uma freqüência de 161 alunos, salta, em 1929, para 159 escolas e 8.029 alunos. Repito: uma verdadeira revolução educacional. Era a colocação em prática do pensamento de August Comte, da construção de um nível superior de vida e de ascensão ao estado positivo através da educação, pensamento que perpassa o trabalhismo gaúcho, herdeiro histórico do positivismo castilhista.
Essas 159 escolas, com seus 8.029 alunos, exigiam professores qualificados. Por isso e para isso, no dia 3 de abril de 1929, aqui mesmo, a sede do Clube Pinheiro Machado, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense, inaugurava-se a Escola Complementar, destinada à formação de normalistas. Representou um grande avanço em termos de qualidade para a educação passo-fundense. A partir daí, novas exigências foram surgindo, culminado com a criação de cursos superiores na área da educação.
A pequenina Escola Complementar transformou-se na Escola Norma Oswaldo Cruz, hoje Curso de Magistério da Escola Estadual de Educação Básica Nicolau de Araújo Vergueiro, a maior escola pública do município e da região.
A Academia Passo-Fundense de Letras sente-se honrada em lembrar os 80 anos da Escola Complementar e da EENAV. Aqui temos ex-alunos do Colégio Estadual Nicolau de Araújo Vergueiro, como este orador e tantos outros, e diversos ex-professores. Neste prédio iniciou a formação de professores e, anos depois, o movimento para a criação da Universidade de Passo Fundo, culminando com dezenas de cursos superiores – inclusive de doutorado. Somos orgulhosos dessa contribuição. Por isso, professora Mônica Hoffmann, é que nos reunimos. Aceite nossos agradecimentos e nossas felicitações e os retransmita aos demais integrantes da comunidade escolar eenavista.
Comemoramos, hoje, o Dia Municipal do Escritor, instituído pela Le 3.764, de 2001, de autoria do então vereador Edson Nunes, membro da Academia Rio-Grandense de Medicina Veterinária. A Lei, instituindo a data de fundação da Academia Passo-Fundense de Letras como ponto de referência, comemoração e lembrança dos escritores da Capital Nacional da Literatura é um reconhecimento, público e oficial, deste sodalício.
Esta casa reuniu, reúne e continuará reunindo poetas, romancistas, contistas, cronistas, historiadores e todo o gênero de homens e mulheres dedicados à produção literária.
Desde seus primeiros dias, através de programas radiofônicos, colunas em jornais, publicações de livros e periódicos, a Academia Passo-Fundense de Letras é um campo fértil onde vicejam as letras locais, fertilidade que tem mais uma prova nesta noite, com o lançamento da edição nº. 6 da revista Água da Fonte, que desde o número zero, em dezembro de 2003 divulga autores, não apenas integrantes do sodalício.
Água da Fonte é um sonho sonhado junto. É um sonho de nosso confrade Gilberto Cunha, compartilhado com todos, desde o título, desde o formato, desde a capa, conforme registrado nos anais da academia. E porque foi um sonho sonhado junto concretizou-se, continuou e desperta a admiração, inclusive de consagrados escritores, como eu meso testemunhei junto a integrantes da Academia Brasileira de Letras.
A capa de Água da Fonte, sempre entregue a artista plástico passo-fundense, é uma demonstração do respeito, do reconhecimento e da consideração que os imortais de Passo Fundo têm pelas demais formas de arte. Respeito, reconhecimento e consideração pelas demais formas de arte é o que comprovamos, nesta noite, com a abertura da exposição da pintora Nil Marques, mineira que escolheu Passo Fundo para viver e trabalhar com seus filhos, a exemplo de tantos passo-fundenses adotivos que transformaram nossa terra em sua terra.
Esperamos que a exposição de Nil Marques sirva de exemplo de que os artistas são convergentes e não concorrentes como, nesta academia, demonstramos com iniciativas práticas.
Muito obrigado!
(Discurso pronunciado pelo acadêmico Paulo Monteiro, presidente da Academia Passo-Fundense de Letras, na sessão solene do sodalício realizada no dia 7 de abril de 2009)
 
Um sonho sonhado junto continua e desperta admiração

antipoema 3

 
sobre o telhado
os quero-queros
olham o condomínio fechado
crescendo sobre o campinho

já não gritam
cochicham

o sol aquece o cimento-amianto
e a especulação imobiliária queima até os pés dos quero-queros
 
antipoema 3

Dois Sonetos Brancos de Paulo Monteiro

 
1. Os Canalhas

(Este soneto branco foi escrito em fevereiro de 2005, pouco antes do Autor sofrer cinco acidentes vascular-circulatórios, no prazo de seis dias).

Os canalhas estão em toda parte.
Vermes, crescem no lixo e no caviar.
Alguns andam descalços, maltrapilhos;
Outros passam por mim engravatados.

Estes senhores vermes são os piores,
Pois fedem a perfumes parisienses,
Usando o linguajar do overnight. Ah!
Como é gostoso vê-los exibindo

Os seus cornos vistosos de reis nus.
Seus destinos, porém, estão traçados:
Segundo o figurino do Iscariotes,

São sempre pela História retratados,
Exibindo uma língua de três palmos,
Pendurados num galho de figueira.


2. Os Energúmenos

(...) Maldito o homem que confia no homem (...). Bendito o varão que confia no Senhor, e cuja esperança é o Senhor. (Jr 17.5-7).
(...) o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna (...) (Rm 6.23).

– “Acabou o reinado dos canalhas!
Acabou!”– Gritei em plena rua,
Por entre a massa que também vibrava
Festejando a vitória dos que críamos

Pôr termo às injustiças da política
Transformadas em normas de partido.
Meu Deus! Como fui tolo em olvidar
Aquilo que gravaste na Escritura.

Ao crer nos homens eu me fiz maldito,
E minha vida apenas foi poupada
Para testemunhar a imensa graça

Do Teu poder, enquanto se avoluma,
Ao derredor do príncipe votado,
Uma nojenta coorte de energúmenos.
– Março de 2005 –
 
Dois Sonetos Brancos de Paulo Monteiro

da conquista

 
paulo monteiro

encontrei o teu corpo numa esquina
entre pentes pulseiras na anarquia
organizada da barraca fina
que um camelô qualquer me oferecia

eras um vidro de perfume a sina
zomba de nós às vezes todo dia
quando a lei do provável ilumina
e levei-te comigo na alegria

com que colombo viu o mundo novo
ou fez parar um ovo sobre a mesa
e meu conhecimento foi profundo

na superfície cognoscível tesa
até que te quebrei com ódio fundo
num dia de certeza e de incerteza
 
da conquista

poeta brasileiro da geração do mimeógrafo pertence a diversas entidades culturais do brasil e do exterior estudioso de história é autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais literários e históricos