PALAVRAS À CHUVA
Por entre a chuva passam palavras
que ficam transparentes
e que espelham tudo o que me envolve.
Ou ficam negras e toscas
ofuscando o que sinto.
Quero pintá-las de branco
da cor da lua e da cal
mas o branco da paleta sumiu.
Pinto-as, então de lágrimas
e, aí, perdem a forma e o cheiro
esquecem-se do sonho
e tornam-se invisíveis
nos olhos pintados de nada
à espera do branco da paleta
da cor da lua e da cal.
MV
RETRATO
É no papel que me encontro
quando os olhos se alargam de esperança
ou quando a saudade se amarra
a lenços com monograma de ontem.
E é no papel que me desencontro
quando as palavras se evadem
quando se ausenta aquilo que quero
e se deslaçam as raízes entroncadas
no desejo do encontro.
No papel, sempre no papel,
o meu lápis teima em percorrer
as longas veredas do querer,
mas só encontra espaço
para escrever a palavra nada.
De súbito, o nada passa a tudo
e tudo o que eu quero volta a chegar
e volta a rosa perfumada
e a folha retalhada de cores e sons
e, então, acredito na trança das vidas cruzadas.
Por este tudo e por este nada
não tenho a certeza se sei viver
não sei se me sei procurar
nos estames e corolas
das muitas palavras em flor.
Marta Vasil
NÃO SER CAPAZ
Uma rosa ainda por ser
vergada pela brisa
por não ser capaz de crescer.
Uma luz apagada a doer
numa cidade escura
por não ser capaz de acender.
Um girassol a agoniar
a chuva a esconder-se
por não ser capaz de o regar.
Uma cerejeira vazia
num ermo de cheiro a solidão
por não ser capaz
de por cerejas em gestação.
Um corpo, um desejo inusitado
a apagar-se, a contrair-se
num gesto desajeitado
por não ser capaz de ser amado.
Marta Vasil
AS SEREIAS SÓ CANTAM EM SILÊNCIO
Ontem fui ilha. Ilha solitária
arquitectada no ermo da vida.
Rodeei-me de mar revolto
em tempestades e intempéries
calcinadas pelo tempo.
Enquanto tecia infinitos incertos
e olhava maresias sem nome
acedi a ser península.
E enquanto a solidão se foi esfumando
no canto das sereias que me possuíram,
fui ficando ligada por sendas
onde deslizei sentimentos em constante agitação.
E com as mãos em flor
linha a linha, ponto a ponto
teci rendas de palavras e poemas
sonhados em bolas de sabão.
Deixei de ser Ilha! Acedi a ser península!
Evacuei-me da solidão.
Mas hoje as sereias só cantam em silêncio.
Marta Vasil
EUTANÁSIA
Agonizo num leito de palavras por apagar.
Leito feito de lençóis de pano
do mais fino cetim
onde já matei em corredio,
a semântica das tuas palavras
mortas, ausentes de mim.
De forças já desfalecidas
teimo em apagar a sua grafia.
Sinto a premonição de que o dia está a chegar.
Urge redigir em testamento:
“Quando a grafia das tuas palavras apagar
quero ser morta de ti
mesmo que a eutanásia delas
se tenha que praticar.”
Marta Vasil
FALTAM-ME...
Faltam-me as mãos
para escrever nos versos
a sombra dos sonhos
que falam alto à luz da madrugada.
Faltam-me os olhos
para ver a cor fogo do entardecer
nos contornos (im)precisos desse olhar.
Faltam-me os passos
para vaguear nos rios que me atravessam
em rotas de mel e cravo.
Faltam-me os fios
para consertar as velas do navio
na poeira do tempo por desbravar.
Falta-me a lua cheia
grávida de tanto branco
para pintar em cor de açucena
os golpes descuidados que faço.
Em recolha de rios no leito
silencio esta loucura
que retenho no peito.
Marta Vasil
DISORTOGRAFIA
Crescem-me sílabas na boca
separadas por cavernas
e incapazes de se juntarem.
Não vale a pena pô-las em jogo
desconheço as regras da ortografia,
só vão formar casos de disortografia
e nem uma palavra
elas vão conseguir formar.
Marta Vasil
SOU MÃOS
Sou mãos.
Cumpro ordens do coração
e espremo frutos em lábios sedentos
Ou cumpro ordens da razão
e aprisiono doces memórias
em estátuas de matéria indefinida.
Sou mãos.
Atiço matéria vulcânica
e queimo solos e desbravo caminhos
por onde flui a lava das veias
Ou mato margens de rios
e desnudo-as de qualquer geometria.
Sou mãos.
Rompo as grades das jaulas
e desenho voos periclitantes
Ou toco o ar e toco a terra
em malabarismos de cavalo selvagem.
Sou mãos.
Remo palavras contra a corrente
e afundo o perfume do meu delírio
Ou remo a favor do vento
e embriago a mentira da minha verdade.
Sou mãos.
Amarro-as em poeira de tempo
e perscruto-lhes as linhas, a sina da vida
Ou solto-as e viro-as do avesso
e escrevo apenas que sou mãos.
Marta Vasil
Deixo o meu agradecimento, entre outros, ao
Zé Brazão por ter contribuído para que as minhas mãos continuassem a escrever.
TRANSPLANTE
Por instantes pára a vida
e tudo morre em lentidão
Engrossa a seiva dos troncos
em dor de coágulos inevitáveis
Os acordes do rio abrandam
nas cordas vocais já cansadas
Esconde-se o cantar da natureza
em fuligem de nuvens imparáveis
Retraem-se as palavras do meu poema
adormecendo cancerígenas
em mares de letras inseparáveis
O sangue percorre-me as veias
já então muito saturadas
dos gritos ásperos e mudos
gritados no silêncio das noites desesperadas
Rasgo sentimentos com bisturi
na ânsia louca de os transplantar
O tempo vai correndo na sua lentidão
e eu já parca de vida
não encontro dador compatível
com tamanha força de amar.
Marta Vasil
SONHOS POR ARRUMAR
Acorda calma a manhã.
Preguiçosa. A bocejar.
Parece que a força da Natureza
desafia à serenidade
com vontade de tudo arrumar.
O vento preso na brisa amena
adormece as nuvens em suave deslizar.
O sol indolente no raiar
aquieta o brilho provocante do roseiral.
A gata enrosca-se no seu abrigo
sem vontade de me afagar.
E é então que me apetece arrumar-me.
Sereno as mãos em gestos de seda,
indolentes no versejar.
Arrumo o olhar no casulo da mariposa,
preguiçoso em se soltar.
Parece estar tudo aprumado no seu lugar.
Só restam sonhos e mais sonhos,
alguns muito difíceis de arrumar.
Marta Vasil