África
Trouxe na memória o vermelho da terra,
Os poilões que se abrem como os livros,
A quente humidade que se cola à pele,
O pôr-do-sol abrasador que esmaga a linha do horizonte,
As cores vivas que por todo o lado inundam a vida,
Os enormes formigueiros das termiteiras,
Os cotos dos arbustos em praias de criação recente,
O coaxar sem fim dos batráquios pela noite dentro,
A espuma cremosa de um café bem batido,
O gosto das ostras abertas sobre a chapa quente,
Os mangueiros e cajueiros que crescem rebeldes,
O sabor de um bom chabéu à mesa de amigos,
A diversidade cultural que pulula nas ruas,
Os papéis e os balantas e todas as outras etnias,
O burburinho da entrada e saída dos táxis colectivos,
As boleias cravadas em todas as estradas,
A travessia do tranquilo rio a caminho de Farim,
As quedas de água e a força do rio no Sul,
As grossas gotas das chuvas num manto sem fim,
A alegria de um viver diferente.
Trouxe na alma um feitiço, certamente...
Pois cá tão longe ela chama por mim,
Impiedosa, insistente,
Como se pudesse haver um amor assim!
Onde quer que estejas
Ouve as minhas súplicas inaudíveis,
Os meus gritos surdos de desespero,
A dor abismal que todo o meu ser emana.
Todos os meus poros choram por ti,
Lágrimas dum insuportável tormento,
A mágoa de ter de viver sem ti.
Nunca te esqueças, nunca me percas,
Guarda-me num qualquer canto da tua memória,
Bebe-me a alma, ainda que só nos teus sonhos.
Sente este amor desumano que me suga,
E que brada aos céus por ti,
Sem curar sequer de saber de mim.
Aí, onde estiveres, olha para mim,
Estou na lua prenhe, na estrela fugidia,
Numa clave de sol, estou dentro de ti...
O meu corpo foge-me à tua procura,
Abandona a alma que definha sem ti,
Despreza-me o ser que abandonaste.
Não posso, não consigo, não aguento mais,
Sentir-te tão perto e ter-te tão longe,
E não te ver mais, nunca, nunca mais!
Os Rios I
Ali onde ambos se encontram
Sob o olhar atento do poeta,
Fica a vila da minha infância,
A minha doce Constância.
Vêm de longa distância
Para se unirem em sagrados laços,
A quente água do Tejo
E a fria corrente do Zêzere.
Cruzam-se para seguir viagem
Com os corpos entrelaçados,
Deixando Constância saudosa
E trazendo o poeta na alma.
Descem até ao lindo castelo
Que envolvem com os dois braços,
Ouvindo a música das pedras macias
Em cujo ventre deslizam de forma traquina.
Nascem solteiros das entranhas da terra
Para ali se casarem com a benção do poeta,
Logo seguindo viagem apressada
Para a tão esperada lua de mel.
De corpos unidos para a eternidade,
Deixam de ser dois para formarem um só,
Para que o seu corpo sedutor
Encante tantas e tantas terras portuguesas...
Triste
Os teus olhos encontraram os meus
Num écrã poeirento de televisão.
Fizeste-me chorar cá dentro!
Por que é que posso ser feliz,
Quando tu não podes sequer comer?
Por que me deixam viver,
Se tu vais provavelmente morrer?
Deixa-me tocar-te, agarrar-te, segurar-te,
Deixa-me dar-te o que puder.
Menino negro de olhos grandes
Nos braços de sua mãe...
A pele cola-se aos ossos,
A barriga inchada chora,
Chora as dores de uma criança
Sem pão, sem leite, sem nada!
Sem nada a não ser o colo
Que a mãe triste lhe oferece.
Surges repentinamente
À frente de toda a gente,
Mas estás cercado pelo vidro
De um écrã poeirento...
Deixa-me amar-te, meu menino,
Meu pequenino, doce alma,
Grita a todo o mundo
Que queres viver,
Que queres ser gente como toda a gente,
Que queres poder crescer,
Brincar, sonhar, amar!
Olhos grandes como a dor
Que sente, que lhe foi apresentada à força...
Essa tristeza que mostras
É a indiferença das gentes,
Que no seu conforto se esquecem
De te estender os braços,
De te dar tão pouco,
Mas que para ti é tanto!
Como se pode compreender
Que isto possa suceder,
Que tu, meu menino lindo,
Cercado pelo écrã poeirento,
Precises tanto de nós,
E nós nada façamos...
Écrã frio e indiferente
Que te traz para perto de nós,
E te mostra tão longe, tão distante...,
Que nos faz estender a mão
E te leva de súbito para algures,
Ou nenhures!
Triste menino negro,
Leva um pouco da minha alma,
Tenta proteger-te nela,
Deixa-te abraçar por ela.
Que ela te possa dar,
Num outro Mundo..., talvez...,
A existência a que tens direito,
O alimento para o teu ser,
O amor que devias ter!
Lisboa, 2001
Vento
O vento passa sempre apressado
Como se estivesse atrasado
P'ra chegar a algum lado.
Passa num corropio
Uivando sons e sussurros,
Murmurando rezas imperceptíveis.
Levanta os lenços e as almas,
Separa os átomos em mil pedaços,
E logo foge inculpado ...
Escapa-se por entre os dedos,
Serpenteando as pombalinas fachadas
Em direcção ao azul celeste,
Para com toda a sua fúria,
Voltar a cair unido com grossas gotas de água
Nos rostos de quem por ele passa...
A Mão
A mão não pára,
Tem vida própria,
Vai da esquerda para a direita,
Qual máquina de escrever,
Desenha estranhas figuras,
De cima para baixo,
De sudoeste para nordeste,
Deixa cinzelados sentidos vários,
Sulca o papel fino rectangular,
Eleva-se uns milímetros,
E logo volta a aterrar,
Para em círculos e rectas,
Algumas palavras deixar,
Suspende-se por segundos,
Com uma caneta na mão,
E logo volta à carga,
Cheia de energia e dinamismo,
Com todos os seus músculos,
Ossos e cartilagens a vibrar,
Transmitindo a estas frases
Todo o conteúdo e emoção
Que ela quer libertar
Para poder, finalmente, descansar!
Lisboa, 2000