PAZ REMOTA
aceito a inutilidade que carrego nas mãos,
os quartos são sempre iguais,
o eco das paredes
permanecem terrivelmente sós,
tão sós como as folhas que se mutilam entre as balas perdidas
e os gemidos caídos no chão
o vazio das algibeiras preenchem
este ruído que me desola o peito;
de dentro arranco um rio infindo de esperança,
o pão é talhado estrondosamente
pela febre de bocas que mastigam a minha insanidade
onde quer que poise o olhar
retorno ao apelo da paz,
a essa paz que roga pela vida
dentro de uma ogiva de amor nuclear
ainda moro
no infinito das coisas simples,
onde o mar começa
e a noite acaba,
onde as flores fazem amor ao relento,
e a paz sabe a jasmim
in - ideários
Lágrimas de amor
Ajoelho-me a teus pés
Remendo um rosário de orquídeas
E beijo o chão, para que possas caminhar
Sem frio, embalo-me dentro do útero que nunca sai
Tenho medo mãe, que não voltes acordar,
Que os teus braços tombem
Sobre o meu corpo desprotegido
E naufrague sobre o deserto dos meus olhos
Os passeios ficarão manchados
De passos desconhecidos, e eu espessura voraz,
A impiedade que ascende de todas as pedras
À procura dos teus passos
Agora, recordo essa criança que ferve no teu sangue,
Correndo pelos teus anos, levados pelo seu canto confidente.
Um dia serei como tu, talvez, quando as andorinhas chegarem.
Conceição Bernardino
Insanidade perfeita
Sinto-me cansada
Já me faltam as palavras!
As que saboreio entre dissabores
Da minha própria loucura
Já não sinto o meu corpo
As vogais consomem-no
Adormece em brandas consoantes
Ficam tantas frases por dizer
Aquelas,
Que já não consigo escrever,
Falta-me a força
A caneta começa a tremer
Soluça.
O meu olhar constrói
O que meu pensamento rejeita
Esta sou, eu
A doce mulher
A insana, poeta...
Conceição Bernardino
Aromas capitalistas
Sou eu o teu papel,
Que te incita e te outorga
Sulcando a ondulação do espaço
No fértil movimento deste imenso desígnio,
Onde nos consumimos fodendo,
Nas orlas tranquilas da sabedoria egocêntrica
Sou eu o papel mais raro,
Rasgado a meio, feito de carne e palavra,
Porém cativo no seu denso capricho,
Fogo dos aromas capitalistas
Rendido à salvação da alma,
Manipulando a qualquer preço o túnel onde o sol nos espera
Sou eu ou tu,
Tantos faz, o papel branco sujo,
Que invoca de pé a nossa história
E aplaude o verbo “saudosista” das disparidades,
E o esquecimento de um gozo que sofre em esquecer-se,
Algures, num território dentro de nós
Conceição Bernardino
(inédito)
Céu de Cal
Céu de cal
Os lobos já se deitaram
Mastigam com os dentes uma morte íntima
Em redor a terra saturada
E a fértil noite, abraça-me,
Prenuncio-me às estrelas que pintaste no céu
As veredas abrem-se húmidas
Sacio-me no silêncio da tua boca
Enquanto engoles a sombra
E o choro das amoras.
A cicatriz roça-me os dedos
Incendeia-se antes do tocar dos corpos
Como duas folhas no meio da paisagem
À espera de um porto seguro
Prenuncio-me de novo,
Mas as estrelas já não estão lá,
Naquele imenso céu de cal
Ouço-me!
Ouço-me dentro de ti
Como um búzio a espalhar oceanos
No gume lunar dos sentidos,
E as pupilas entregam-se à solidão das glicínias
Aquecem o frio da adaga
Onde a minha ausência repousa
Conceição Bernardino - "in - semente de cal"
Carpe Diem
Dissertação sobre o estado da nação visto de dentro para fora
Trago pensos nos bolsos e um frasco de betadine na mão direita, na esquerda um saco de algodão em rama e um espelho de aumento, já revirei o pensamento embrulhei-o em jornal, das tripas faço coração sem enteróclise, limito-me à audição fugindo do imbróglio da carolice, arrumo o estômago dou um sorriso ao fígado e penteio a vesícula.
Amanhã trato do umbigo e quem sabe troque o betadine por álcool etílico, faço alergias ao látex e a pírula faz-me cócegas no esófago.
- Desculpe, tem pomada para as hemorróidas? Não? Então embrulhe-me um saco de almofadas.
Conceição Bernardino
Recolho-me no leito estreito das tuas mãos
Pululam-me os seios no céu imenso,
que colhes na boca, e no corpo semeias
flores e pânico, dentro deste mar imenso
onde nenhum corpo faz sentido
ou se desvenda no tempo.
Recolho-me no leito estreito das tuas mãos,
enquanto procuro o voo arrojado da tua boca
a lamber-me os medos, e o sal dos meus olhos.
Os teus dedos sopram-me areias quentes, vindas
de arquipélagos cortados a meio, e deslizam
trémulos como duas folhas de malmequer, suaves,
sobre o meu ventre.
Sorrio envolta do sonho, olhei pela vidraça,
e lá estavas tu, dentro da imaginação, no bater
das ondas.
Conceição Bernardino
Casulo de fogo
Procuro a tua primitiva intensidade,
Desfolho-me pétala a pétala
Dentro do ranger das borboletas
Que repousam no teu corpo amplo
Nas videiras as uvas sangram;
O mel adocicado que provo da tua boca
E ardo em dementes lírios,
No clamor de diamante onde o vinho
Se derrama no galopar dos nossos corpos.
Mordo a polpa, e seus regatos de açúcar
Adornam-me os seios num fértil sossego
Abrindo o universo dentro dos teus braços
Amo a luz das nossas pupilas a reflectir-se
No culminar da noite que há-de vir.
Conceição Bernardino
Uma carta com remetente
Porto, 30 de novembro de 2016
Minha querida mãe,
Hoje decidi escrever-te esta carta. sei que nunca a irás ler, não tiveste a oportunidade que me deste de poder estudar. Ler-te-ei de coração aberto todas as sílabas, mesmo as que não se podem transformar em papel. O amor não se escreve mãe, não é objecto estruturado nem redondilhas com rimas soltas. É algo que se sente e dói, dói tanto, que nem a própria dor se explica. Hoje já te disse que te amo, digo-te todos os dias, assim o farei para sempre, mesmo que o sempre não exista. Inconformada ou não passei de filha a mãe, isto para muitos não terá grande lógica, mas a nossa vida nunca foi feita de lógicas ou estatísticas e sim de degraus; cada um com aprendizado que jamais seria possível se não estivesses a meu lado. Sei que esta carta parece só mais uma, como as que te lia, vindas de outros familiares queridos. Não mãe, não é só uma carta, é um pouco do nosso cordão umbilical que jamais será cortado, mesmo sendo eu a dar-te banho, mesmo sendo eu os teus olhos, a mudar-te a fralda, independentemente de todas as circunstancias da vida.
É triste, mas é verdade mãe, a maioria dos filhos abandonam os pais, nos lares, nos hospitais ou simplesmente por aí, a velhice é o bicho papão das sociedades modernas, do avanço tecnológico, do futuro promissor de políticos provetas, das leis chulas que criam para tapar o sol com a peneira. Usa-se e abusa-se da palavra dignidade, que dignidade existe num rosto enrugado só, completamente só. Estamos a chegar ao natal mãe, o menino é sempre o mesmo, continua despido e ao frio, acendem-se as lareiras, mas as mentalidades continuam geladas, ansiosas que os duendes as compensem e que a missa do galo as perdoem.
Sabes mãe, sou uma filha com tanta sorte, com tanto amor, só por te ter ao meu lado.
Conceição Bernardino
Estremecerei árvore a árvore até que os pássaros acordem
Estou cansada
De escrever poemas na privada
Como eu queria não pensar em nada,
Deambular pela vida, nem querer
possuir mais que a frugal condição de estar viva
Estou cansada apenas
Sem pena nenhuma de estar
Não deixarei morrer em vão o nome dos meus avós
Nem a paisagem invernosa, na serenidade
Estremecerei árvore a árvore até que os pássaros acordem
E voem, voem até à última pena
Não deixarei o dia morrer silencioso dentro de mim
Farei da saliva chama e da palavra o punho
Até que os algozes engulam a luz intensa do meio-dia
E as cinzas porosas neoliberais
Estou cansada apenas
Sem pena nenhuma de estar
Conceição Bernardino