Insanidade perfeita
Sinto-me cansada
Já me faltam as palavras!
As que saboreio entre dissabores
Da minha própria loucura
Já não sinto o meu corpo
As vogais consomem-no
Adormece em brandas consoantes
Ficam tantas frases por dizer
Aquelas,
Que já não consigo escrever,
Falta-me a força
A caneta começa a tremer
Soluça.
O meu olhar constrói
O que meu pensamento rejeita
Esta sou, eu
A doce mulher
A insana, poeta...
Conceição Bernardino
paroxismo
só saberei amar-te uma vez,
e esta cópula que trago na pele será o teu altar
onde te deitas,
onde pernoitas
como a chuva que me lambe o rosto
e a vela que ainda não ardeu.
saberei abraçar-te no momento certo
se a (in) certeza assim deixar
serei a pudica mais obscena
nesta lama de oceanos
onde os corpos se dividem em cores
e os rios se (re) partem
adocicando os seios que saboreias
no ventre dos (dis) sabores
só saberei amar-te uma vez,
se alguma vez me souberes amar
Conceição Bernardino
Recolho-me no leito estreito das tuas mãos
Pululam-me os seios no céu imenso,
que colhes na boca, e no corpo semeias
flores e pânico, dentro deste mar imenso
onde nenhum corpo faz sentido
ou se desvenda no tempo.
Recolho-me no leito estreito das tuas mãos,
enquanto procuro o voo arrojado da tua boca
a lamber-me os medos, e o sal dos meus olhos.
Os teus dedos sopram-me areias quentes, vindas
de arquipélagos cortados a meio, e deslizam
trémulos como duas folhas de malmequer, suaves,
sobre o meu ventre.
Sorrio envolta do sonho, olhei pela vidraça,
e lá estavas tu, dentro da imaginação, no bater
das ondas.
Conceição Bernardino
Casulo de fogo
Procuro a tua primitiva intensidade,
Desfolho-me pétala a pétala
Dentro do ranger das borboletas
Que repousam no teu corpo amplo
Nas videiras as uvas sangram;
O mel adocicado que provo da tua boca
E ardo em dementes lírios,
No clamor de diamante onde o vinho
Se derrama no galopar dos nossos corpos.
Mordo a polpa, e seus regatos de açúcar
Adornam-me os seios num fértil sossego
Abrindo o universo dentro dos teus braços
Amo a luz das nossas pupilas a reflectir-se
No culminar da noite que há-de vir.
Conceição Bernardino
Uma carta com remetente
Porto, 30 de novembro de 2016
Minha querida mãe,
Hoje decidi escrever-te esta carta. sei que nunca a irás ler, não tiveste a oportunidade que me deste de poder estudar. Ler-te-ei de coração aberto todas as sílabas, mesmo as que não se podem transformar em papel. O amor não se escreve mãe, não é objecto estruturado nem redondilhas com rimas soltas. É algo que se sente e dói, dói tanto, que nem a própria dor se explica. Hoje já te disse que te amo, digo-te todos os dias, assim o farei para sempre, mesmo que o sempre não exista. Inconformada ou não passei de filha a mãe, isto para muitos não terá grande lógica, mas a nossa vida nunca foi feita de lógicas ou estatísticas e sim de degraus; cada um com aprendizado que jamais seria possível se não estivesses a meu lado. Sei que esta carta parece só mais uma, como as que te lia, vindas de outros familiares queridos. Não mãe, não é só uma carta, é um pouco do nosso cordão umbilical que jamais será cortado, mesmo sendo eu a dar-te banho, mesmo sendo eu os teus olhos, a mudar-te a fralda, independentemente de todas as circunstancias da vida.
É triste, mas é verdade mãe, a maioria dos filhos abandonam os pais, nos lares, nos hospitais ou simplesmente por aí, a velhice é o bicho papão das sociedades modernas, do avanço tecnológico, do futuro promissor de políticos provetas, das leis chulas que criam para tapar o sol com a peneira. Usa-se e abusa-se da palavra dignidade, que dignidade existe num rosto enrugado só, completamente só. Estamos a chegar ao natal mãe, o menino é sempre o mesmo, continua despido e ao frio, acendem-se as lareiras, mas as mentalidades continuam geladas, ansiosas que os duendes as compensem e que a missa do galo as perdoem.
Sabes mãe, sou uma filha com tanta sorte, com tanto amor, só por te ter ao meu lado.
Conceição Bernardino
Céu de Cal
Céu de cal
Os lobos já se deitaram
Mastigam com os dentes uma morte íntima
Em redor a terra saturada
E a fértil noite, abraça-me,
Prenuncio-me às estrelas que pintaste no céu
As veredas abrem-se húmidas
Sacio-me no silêncio da tua boca
Enquanto engoles a sombra
E o choro das amoras.
A cicatriz roça-me os dedos
Incendeia-se antes do tocar dos corpos
Como duas folhas no meio da paisagem
À espera de um porto seguro
Prenuncio-me de novo,
Mas as estrelas já não estão lá,
Naquele imenso céu de cal
Ouço-me!
Ouço-me dentro de ti
Como um búzio a espalhar oceanos
No gume lunar dos sentidos,
E as pupilas entregam-se à solidão das glicínias
Aquecem o frio da adaga
Onde a minha ausência repousa
Conceição Bernardino - "in - semente de cal"
Carpe Diem
Uma pena, dois momentos
Naquela noite decidi que não ia ficar amarfanhada no travesseiro à procura do cheiro das promessas incertas. Não podia esperar que o tempo me encontrasse, vesti uma roupa ousada, apetecia-me foder, nem que fosse o próprio tempo.
Olhei para o relógio da minha medula, as vértebras aceleravam o meu desejo, numa frenética dança de movimentos, enquanto o batom roçava os meus lábios sem distinguir se os que iria beijar teriam a mesma cor ardente ou não.
Bati com a porta sai, na expectativa que te poderia esquecer definitivamente, sem que mais nada soubesses de mim, ainda assim deixei-te um bilhete acreditando que pudesses voltar.
“Esta noite não esperes por mim, se sentires a falta, procura-me da mesma forma que te sinto, no calor dos teus seios”.
O olhar de desdém de algumas mulheres excitavam-me, faziam-me sentir mais selvagem, já o dos homens, sentia uma gula carnívora só pelo prazer da carne.
Fiz paragem a um taxista que me cruzou um olhar galã, mandei-o seguir para o centro da cidade do Porto. Precisava matar a sede com um afrodisíaco, antes que o meu corpo explodisse nos braços de qualquer um que me sussurrasse uns míticos gestos de desejo.
Entrei num bar repleto de sabores, a música ambiente dobrava-se quase como um gemido convidando-me a dançar, sentei-me ao balcão, de frente um espelho que indicava apressadamente quem me admirava os quadris.
Pedi um cocktail de ameixa, levei-o até aos meus lábios, beijei-o como se beijasse os teus pela última vez, numa despedida frenética sem lhes sentir o adeus; comovi-me, por segundos revivi a nossa última noite entre vagos de cerejas húmidas, o tactear da tua mão aveludada ainda me queimava os seios, o teu rímel tatuava-me a nuca suavemente como se o sol agreste apossasse a timidez numa íris só tua.
Conceição Bernardino
Do outro lado do espelho - continuação
II
Nada, terá um efeito assustador para alguns, para outros será apenas uma palavra vulgar, habitualmente sustentada pelo que os rodeia. Nada, pode ser o lugar mais indigesto onde as convulsões se tornam em embolia amnésica ou o despertar da abelha rainha para um mel raro.
Já produzi casulos de ecos, afiei navalhas nas cordas vocais e rasurei a linha perpendicular ao esófago. Voltei ao meu interior sem querer e, roubei-te um fado maldito, cheio de dó’s menores, podia transformar-me em tudo mas o tudo é muito pouco comparado com o pouco que procuro. Como é difícil investir em planos e segui-los afincadamente, sendo o que se deseja nada plano e muito menos físico. O corpo é insuficiente para me movimentar lá dentro, o ar asfixiante é poluído, bastava-me um vidro para saltar para o outro lado. Os lugares nunca foram o meu forte, tu sabes que sim, qualquer rua serviria para me perder sem ti.
Subi algumas vezes ao céu, onde mora o “Principezinho”, falou-me de ti, voltei sem saber quantos degraus desci.
Será mesmo que desci?
Por instantes tive a sensação que subi, confundi-me com estradas sem asfalto, flutuantes como as nuvens de algodão doce, depois só me lembro de te dizer:
- Até já!
É sempre um até já que fica, longo ou breve, nunca se descodifica esta breve despedida.
(Continua)
Conceição Bernardino – in “do outro lado do espelho” - 2014
Do outro lado do espelho - VII
VII
Cresci demasiado pequena, absurdamente pequena, para tanto espaço, vi-me ali vezes sem conta, sozinha em plena inconformação, a rezar nem sem bem o quê ou para quê. Nunca gostei de igrejas, o silêncio mastigava-me o medo, os espinhos de Cristo faziam-me lembrar os que me cravaram na inocência. São frias, amplas e os santos de madeira carregam no olhar um doloroso sofrimento, talvez me reveja nos seus olhos.
As atrocidades cometidas são sempre as mesmas, repetem-se constantemente; guerras, massacres, fome, doenças.
Como se lida com um mundo assim, com o caos, quando se acorda para a vida?
Haverá alguma resposta instantânea?
Foi o suficiente para sentir vergonha da minha condição humana. Convenceram-me a procurar um médico, assim o fiz. Quando lhe coloquei diversas questões, prescreveu-me três caixas de ansiolíticos. Voltei para casa sem respostas e com uma mão cheia de drogas. A adolescência é tramada, quando não se é conformista passa-se a ser extra terrestre, e a droga é uma puta que nos é servida a qualquer preço. Preferia ser eu a puta do que ser fodida pela “puta” do sistema a julgar-me pela inconformação. Resolvi escolher o meu caminho, fosse qual fosse, seria melhor do que enlouquecer com o número 179 587 135, é isto que somos para o Estado.
(Continua)
Conceição Bernardino – in “do outro lado do espelho” - 2015
De volta à insónia
aceito a inutilidade que carrego nas mãos,
os quartos são sempre iguais,
o eco das paredes
permanecem terrivelmente sós,
tão sós como as folhas que se mutilam
nos passos cansados por um par de botas abandonadas
o vazio das algibeiras preenchem
este pedaço de terra que me desola o peito,
de dentro arranco um rio infindo
de moinhos,
o pão é talhado ruidosamente
pela febre de bocas que mastigam a minha sanidade
onde quer que poise o olhar
o retorno do vento é sempre veloz,
a mecha já não adorna as candeias,
vejo-me no meio do hall,
completamente perplexo,
as vozes rogam pela vida
ainda moro
no infinito das coisas simples,
onde o mar começa
e a noite acaba,
onde as flores fazem amor ao relento,
e os lobos
se deitam comigo
à procura da lua dentro do meu quarto crescente
Conceição Bernardino