Poemas : 

[eu vi]

 
eu vi a loucura do mundo
no mundo
que me coube observar
como se a loucura fosse um copo de vinho
sobre o balcão
à espera das minhas mãos
da minha sede
da minha boca
como se o vinho fosse a esponja
que apaga o giz
na ardósia da minha memória

eu vi a fogueira reacesa da inquisição
erguer labaredas
apaixonadas
pelo corpo dos homens
das mulheres
que aguardam a vez na fila do desemprego
com seus olhos resignados
esperançados
enquanto a língua de fogo
como que os beija
enquanto gritam em silêncio

eu vi as bruxas em redor
surpresas com os homens
as mulheres
sem nome
com um talão na mão
exibindo o número que tarda
no painel electrónico
as bruxas
a quem só resta a loucura
que reclamam as chamas só para si
mordendo a madeira
por morder
com feitiços de água pura de inveja

eu vi uns miúdos esfolarem o tempo
procurando a solução do tempo
o fim do tempo
somando os número da roleta
de um a trinta e seis
como se na soma se consumasse
a aposta
a matança do tempo

eu vi uns indivíduos sonhando a gravata
distante da fogueira
longe de qualquer chão
longe de qualquer ramo
confiando o seu caminho
no fundo de uma garrafa qualquer
sonhando a gravata
apostando na madeira a arder

eu vi o crepúsculo nas mãos dos homens
das mulheres
dos velhos
das crianças
o crepúsculo nos gestos que não nascem
e foram os gestos presentes
nos dias do pão

eu vi o charuto
o uísque
o champanhe
o caviar
nas janelas dos escritórios
sem rosto ou nome
o riso do dinheiro
a gargalhada da fábrica
que fecha
e arregaça as saias para atravessar
os continentes
os oceanos
em busca de uma foda mais barata
que foda
com prazer
as cotações

eu vi as salas de chuto repletas
mapas espalhados
espelhados
em cada olhar
desbravando caminhos para o paraíso
longe de tudo o que é mundano
de tudo o que é humano
e vi-os a caminhar
sentados
deitados
encostados
à parede ocasional
e vi-os com o terror consumindo-lhes a queda
para um purgatório sem fim

eu vi a loucura do mundo
no mundo
que me coube observar
e afogo a minha própria loucura
num copo
como se buscasse ao lábios da cicuta
os braços da cicuta
o regaço da cicuta
como quem descobre a última
a derradeira
verdade
e com ela
e por ela
se entrega à morte

eu vi o céu em chamas sem futuro
seco
estéril
como os campos do meu país
alfaias
artefactos
artes
em letargia
como histórias de antanho
à espera de um príncipe qualquer
montado num cavalo branco qualquer
que os beije
e redivive

eu vi a morte
olhos nos olhos
e a morte tocou-me na fronte
como se o meu destino fosse ver a morte
na rotação da terra
sob o eixo da estupidez
a morte rindo
e rindo-se para mim
mostrando os corpos queimados
derramados
espalhados
mutilados
pela arte suprema da guerra
inventada para o supremo gozo de alguns

eu vi mais do que o que havia para ver
e mato-me
lentamente
diariamente
com a esperança dentro dos bolsos
para amanhã não acordar
não ver as notícias
que nos impingem
e que mesmo sem as requerer
recebemos

eu vi o carro fúnebre passar
engalanado
frente ao monumento
de todos os prazeres
e comprar as flores
como quem compra um corpo para consumir
em uma hora
numa das mais banais pensões
que couber na imaginação

eu vi allen ginsberg imolar-se dentro do poema
como se o poema fosse o corpo de fénix
renascendo das cinzas
fundando-se nas cinzas
como um sísifo que sonha o topo do monte
para ver a pedra perder-se pelas sombras
monte
abaixo
vi-o uivar
não pela sua geração
mas por esta
que como mosca
sai do meu país
não por falta de merda
mas por excesso da mesma

eu vi camões vieira bandarra pessoa pascoaes duarte
tantos outros
eu vi-me
alinhados
como em fuzilamento contra uma parede
uma vala comum por perto
e o zeca a cantar os vampiros
ele também alinhado contra a parede
uma vala comum por perto
e tiro algum nos atira contra a parede
uma vala comum por perto
que tiro algum nos apaga a voz

eu vi que quando nos dizem que o futuro é
devemos dizer
que o futuro é
o que nós queremos









 
Autor
Xavier_Zarco
 
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Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 14/04/2013 19:19  Atualizado: 14/04/2013 19:19
Usuário desde: 03/09/2012
Localidade:
Mensagens: 18165
 Re: [eu vi]
Amigo Poeta
Também vi e gostei do seu texto depois de algumas leituras!
Parabéns!
Beijos!
Janna

Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 14/04/2013 19:58  Atualizado: 14/04/2013 19:58
Colaborador
Usuário desde: 30/06/2009
Localidade:
Mensagens: 6699
 Re: [eu vi]
Zarco,
Eu também vi com olhos
de tristeza,
muito da loucura que tu viste,
nesta parte do mundo que me coube ver,
que a loucura das pessoas pelo costume
e a ganância dos poderosos espalha-se feito peste
por todos os espaços.
Vi, li e gostei do poema!
Abraço.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/04/2013 01:29  Atualizado: 15/04/2013 01:29
 Re: [eu vi]
Gostei!

Um texto longo, mas interessante de se ler.

A atenção (e tensão) cresce a cada estrofe vencida . A narrativa (veraz) de uma época difícil e uma realidade pérfida para o homem contemporâneo (consciente, tudo vê e sente), que enfrenta todas dificuldades que o modelo da sociedade vigente (capitalista / exploradora ) derrama sobre as nações, ora empobrecidas. Sísifo –homem empurra sua rocha ladeira acima para ela voltar a rolar e o trabalho ser retomado. Mas, o homem –sisifo não se dá por vencido, porque tem consciência da situação precária que enfrenta. E a estrofe final diz isso (fecha) com clareza - o ‘chamamento’ para a reação... Não aceitar as imposições/ premonições como um fado – assim ‘é’. A vontade (potência), o querer , que deve ser o lume do novo homem, um novo porvir... revolucionário.