Prosas Poéticas : 

Estou grávida (provavelmente o melhor parágrafo alguma vez escrito)

 
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Estou grávida (provavelmente o melhor parágrafo alguma vez escrito)
 
Ficam a olhar as pessoas que passam, muitos carros, nota-se imediatamente que esta é uma cidade muito grande, do mesmo tamanho ou maior do que a cidade natal deles, há camionetas a passar, estafetas a largar as viaturas em segunda fila, as luzes intermitentes avisam que a paragem não será demorada, trata-se de assunto de trabalho, umas quantas bicicletas movem-se arriscadamente entre os automóveis, há multidões que se escoam vagarosamente junto às paredes dos edifícios, muitos toldos e lojas, bancas nos passeios, sinais luminosos a gerir a fluência do trânsito, movimento em todos os cantos, não há uma só molécula de mundo que esteja parada, é o eterno devir das coisas, dos corpos, das ideias, dos corações, os seres que nascem para morrer, os seres que morrem para nascer, o movimento dos que vivem sem nunca ter nascido, a quietude dos que morrem sem nunca perecer, dentro da rapariga vai surgindo uma palavra que ela não conhece ainda, lentamente quer materializar-se na sua consciência, devagar como um prego empurrado de dentro da terra cá para fora, lentamente a pontinha do sentimento começa a assomar à percepção, e é ele que une luz e escuridão dentro desta jovem mulher, são mundos que se chocam, são fronteiras que se misturam, é a dor com a saudade, o prazer com a tristeza, é a segurança que se mistura com as lágrimas presas num tanque de betão que quer rebentar pela fenda aberta no peito, toda aquela agitação exterior espeta-se-lhe na alma, porquê, porquê, porquê, para onde vais tu, ó merceeiro que estendes a tua barraca, para onde vais tu, ó velho esfarrapado que te estendes na calçada junto à estação, para onde vais tu, ó condutor acelerado que quase esmagas dois homens na estrada, para onde vais tu, e tu aí, para onde vais, para onde vamos, para onde vais tu, para onde vou eu, para onde, meu Deus, eu, eu, eu, para onde vou eu, Génio, que sabes tu da vida, pergunta a loira como um tiro ao rapaz, este não estava de todo à espera da questão, O que é que julgas que há para saber sobre ela, Porque pensas que não há nada para saber, A vida é o que é, saber algo sobre isso seria acrescentar uma luz à luz, seria chuva sobre mar, não traria nada de novo, Achas que não se pode viver nada novo, a vida é eterna morte para ti, Não, muito pelo contrário, a vida é eterno nascimento, é por isso que nada novo pode ser trazido até ela, ela é a novidade sempiterna, é a juventude perpétua, Não achas que algo pode ser acrescentado à tua vida, Não existe isso a que chamas a minha vida, existe a vida que é tua e minha ao mesmo tempo, não há linha que divida a tua da minha, tudo é igual, um mesmo ser que se transpira de uns para os outros, sendo sempre o mesmo e eternamente se moldando à multiplicidade que cria em si, Acreditas no amor, pergunta ela, Que tem o amor a ver com a vida, pergunta ele, Tem tudo, Tem nada, Como nada, pergunta ela, Porque dizes tu que tem tudo, a vida existe com ou sem amor, nunca ninguém conseguirá sequer provar a existência do amor, quando foi alguma vez um acto de amor visto, Quando não foi ele visto, julgas que é necessário provar-se o amor, é como provar-se a vida, precisarás de a provar para saber que estás vivo, tudo é um acto de amor, tudo está provado pelo amor que é, o amor é a prova de que tudo é, A vida é, o amor imagina-se, não existe amor nas árvores, nem nas pessoas, nem nas pedras, charcos, todo o amor é uma ilusão do pensamento do homem, sem o pensamento não existe amor, só a vida, despida de todos os trapos que lhe colocam por cima as superstições dos povos, Não acreditarias então se te dissesse que te amo, o rapaz deixa cair o livro que traz na mão, solta-se o pequeno marcador de lá de dentro e ele nem repara, Acreditaria que imaginas um amor na tua cabeça por alguém que vês apenas na tua cabeça, nunca uma só vez estiveste comigo, porque nem uma única vez estiveste tu dentro de mim, dentro da minha mente, a minha mente é quem eu sou e a essa nunca lhe ouviste a voz, imaginas um amor que não existe por um ser que imaginas existir, o que vês não passa de um desenho que os teus neurónios fazem de um pedaço de carne que vês à tua frente, jamais me amarás porque jamais me conhecerás porque jamais entrarás dentro de quem eu sou que é a vida que habita na minha cabeça, Mas a vida disseste que era só uma, por isso a vida que te ilumina a cabeça é a mesma que me brilha no coração, no meu peito e na tua cabeça somos já um só, esse Um Só de que falo é o amor que tu falas que é a vida, tu és vida, eu sou amor, são os dois lados de uma mesma folha de papel, é o molhado e o húmido, o brilhante e o luminescente, o acordado e o desperto, o mesmo e o si próprio, o tu e o eu que é teu e que é meu, somos nós, aqui, neste momento, Somos a mesma folha de papel, mas a tua página está em branco, porque nela o amor não escreverá palavras que não foram ainda criadas para falar do que ainda não existe, do meu lado da folha está o mundo todo escrito, o universo, as estrelas, o cosmos, a vida sem início, sem fim, Estás errado, diz a loira, és demasiado novo, és demasiado inteligente para o compreenderes, a inteligência serve para perceber o mundo e as suas leis, não aquilo que o cria e sustenta, enquanto não transcenderes a tua própria inteligência e regressares à simplicidade que a precede, que a permite e que a gera, nunca compreenderás o que significa o que tenho para te dizer, que é que o amor tocou-me hoje pela primeira vez nos meus dezoito anos de vida, são poucos, bem sei, mas chegam para saber que o que senti antes foi paixão, foi ardor, foi desejo, foram fantasias que me cruzaram o peito como uma flecha, mas que saíram do outro lado, furaram-me o ser, levaram pedaços da minha carne mas não permaneceram, agora percebo que o amor não é aquilo, não é aquilo porque é isto que sinto agora, e só agora que o sinto só agora o conheço, és inteligente demais para perceber o que significa estar eu aqui a dizer que te amo, a palavra sai-lhe da boca no momento em que já se vê um corpo largo a curvar por entre a multidão, vem vestido de negro, é alto e maciço, demonstra em cada passo uma segurança e autoridade imponentes, esse corpo chega-se até eles, troca meia dúzia de palavras com o génio, este oferece apenas uma à loira, Adeus, apanha o livro que tinha ficado esquecido na calçada, vira costas e nem vê as lágrimas que por ele se atiram ao chão, e foi antes daquela figura escura ter surgido por entre a multidão que a rapariga pronunciou pela primeira vez na sua vida a palavra amor, é nesse mesmo instante que, a nove mil trezentos e cinquenta e seis quilómetros de distância, uma mão procura outra, um olhar tropeça noutro, uma música suave passeia-se pelo ar de uma sala de jantar, é no preciso momento em que a loira diz Amo-te que uma morena diz, também pela primeira vez na sua vida, Estou grávida.


Não precisas de responder às tuas questões. Precisas é de questionar as tuas respostas.

 
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Andraz
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