Crónicas : 

De Angola com amor - II

 

Na madrugada de 14 para 15 de Março os rios e os mares na fúria intempestiva galgaram os leitos e saíram à rua, irrompeu pelos musseques* com a mesma fúria da polícia em acto de desalojamento levando tudo à sua passagem.
A mãe Lisa no afã de socorrer os 2 filhos mais novos não conseguiu segurar um outro mais velho que voga agora na penumbra de uma morte que lhe estava anunciada pelas condições do barraco de folhas de zinco plantado numa língua de terra que se estende pelo mar dentro.
O Paulo, serralheiro de profissão viu o seu único tesouro, um fogão a gás a ser levado pela enxurrada e chora pela sua Maria que terá de queimar de novo as mãos nas brasas incandescentes onde coloca a lata que lhe serve de panela.
Do musseque da nova marginal, paredes meias com o memorial da independência onde repousam os restos mortais de um dos seus artífices, até ao Cazenga, passando pela Corimba e atravessando o Bairro Popular a morte saiu á rua sem ser anunciada, anunciam-se agora os óbitos na lengalenga das carpideiras num bailar de morte que dará lugar à festa das almas que se foram, porque o povo encontra na mais profunda das tristezas uma razão de celebração quiçá de libertação das trevas para a luz.
E eu? Eu não dei por nada, dormia um sono onde entrementes amaldiçoava o facto de ainda não ter o aquecimento de água instalado e ter que tomar banho de água fria.


*Musseque – denominação angolana para favela ou bairro de lata.

Nota: A tempestade que se descreve não foi noticiada pelos órgãos de comunicação afectos ao poder.

 
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jaber
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Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 16/03/2010 11:28  Atualizado: 16/03/2010 11:28
Usuário desde: 02/03/2007
Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: De Angola com amor - II
Mais um relato que me deixa a pensar que tipo de valor terá o povo para os que têm o poder de tudo nas mãos, incluindo o da informação!
E por aqui ainda nos queixamos...

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/03/2010 12:14  Atualizado: 16/03/2010 12:14
 Re: De Angola com amor - II
Jaber...que te dizer? É a tua sensibilidade a sobressair.

Um grande abraço para ti e para o musseque inteiro.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/03/2010 12:40  Atualizado: 16/03/2010 12:40
 Re: De Angola com amor - II
uma escrita fluída que retrata a realidade no que ela tem pior...
abraço grande Valente.

Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 16/03/2010 15:35  Atualizado: 16/03/2010 15:35
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 Re: De Angola com amor - II
Uma realidade que em muito lembra as favelas dos morros brasileiros, querido.Apreciando muito essas crônicas.
Bjins, Betha.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/03/2010 23:29  Atualizado: 16/03/2010 23:29
 Re: De Angola com amor - II
Não há maior sentido e definição para uma crônica do que ser um “flagrante da vida real”. `Neste aspecto, e após a leitura desta e de textos anteriores teus, eu afirmo que é este um registo onde és quase perfeito literariamente. Detesto perfeição, eis porque gostei mais ainda. O título é especialmente bonito o que confere ao narrador uma espécie de ternura, de quem é ao mesmo tempo estrangeiro e filho da terra, de onde regista essas tão dolorosas imagens. Excelente, meu caro!
Um beijo,
Sandra Fonseca.