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Mais do baú das memórias

 
Lembro-me do cheiro a feno acabado de ceifar, paveia a paveia, ugado a preceito em feixes que me faziam chorar os ombros. Passos dolorosos que pareciam não acabar mais, em desequilibrios de carreiros onde por vezes um montinho de azeitonas que afinal não eram azeitonas, porque se o fossem, ali não se encontrariam se nenhuma oliveira por perto e muito menos em julho. Bem sabemos que as cabras não produzem azeite, quando muito, se antes prenhes, uma ordenha pela manhã e outra ao cair da noite. E eu que nunca aprendi a ordenhar uma cabra; fugiam-me antes que lhe pudesse deitar os dedos ao amojo intumescido de leite.
Lembro-me da figueira com dois ou três figos que ninguém comia (talvez por dó ou respeito à sua velhice, não sei) na ponta de um ramo tísico, amarelado de icterícia. Costumava subir-lhe para espreitar o que se escondia por detrás do muro alto (quando somos pequenos todos os muros nos parecem altos) encostado a ela e cujos cacos de vidros espetados lá em cima, me impediam de o saltar. Um pedaço de terra abandonado, umas flores entristecidas de sede e uma casa caiada de portas e janelas fechadas, era tudo o que lá havia. Duas vezes por ano chegava um automóvel com um casal de meia idade ( a ele chamavam-no "o polícia" - todo ele suspensórios que lhe seguravam as calças de quando tinha sido gordo e agora um palito ), abriam o portão e desapareciam por detrás do muro. Ao outro dia começava a faina do desgraçado:
- Ó José, vai ali ver daquelas silvas antes que elas nos entrem pela janela.
E atrás das silvas a terra por cavar, as batatas por semear, as maçãs por apanhar...
Duas ou três semanas e o José, já mais morto do que vivo (ora de suspensórios ora de pijama à hora do almoço), lá começava a sentir algum alívio nos calos dos ouvidos.
O automóvel desaparecia e com ele o polícia e a esposa. Haveriam de voltar meio ano mais tarde por via de recolher o que o José havia deitado à terra, que, sem amanho, já se sabe: não passariam de uns bolicotos de batatas, capazes de envergonhar a classe dos tubérculos que por aquelas bandas costumavam ser quase do tamanho das abóboras.


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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cleo
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