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ensaio mudo da palavra [2 de 4]

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


2.
as palavras só têm uma vida dentro de mim. quando partem nunca mais voltam. são palavras-som. bravas. como o gel de banho. livres como a gaivota que vive dentro do meu pulmão – palavras-som. partem e não voltam – algumas deixam saudades. outras desespero. outras arrependimento. outras incompreensão e outras uma raiva capaz de me levar a morrer afogado nesta água com aroma a pinheiro bravo – tudo na palavra-som é efémero – ingratas. se soubessem o que custa trazê-las à boca – restam-me as palavras-papel. imagino-as minhas para sempre – guardo-as. enquanto durar o papel. a secretária. a gaveta ou a estante castanha escura encostada a uma parede que nunca sei quando irá ruir – tenho medo de tudo o que pode ruir. já ouvi ruir palavras a viver em corpos. corpos a sobreviver em palavras. promessas. amores destruídos por amantes de corpo estilizado a mão cirúrgica – tudo pode ruir dentro das minhas palavras – na semana passada ruiu um prédio no bairro do aleixo pela mão do homem que tinha dinamite – implodiu – implodiu com tudo o que tinha dentro. só as pessoas foram capazes de abandonar o passado – aprendi que com o tempo tudo acaba por desmoronar – nascemos e logo começamos a perder vida. perdemos a infância. a inocência. a juventude. a família começa a ficar curta. depois começamos a perder um tempo que desconhecíamos e por último os sonhos. até que chega o dia em que perdemos o último travo – escrevo para não me esquecer – agora tenho um sonho como martin luther king. sonha que um dia vou ter uma palavra que falará tudo sobre mim. uma palavra que depois de estar impressa deixe de ser minha para sempre – o que não é meu não pode ruir – o que é de todos a todos pertence. e o mundo que é meu também não mais deixará arder pilhas de livros. nem que as palavas sejam bravas. não arderão – não sou escritor - não me parece importante ser o que quer que seja neste país. de gente que não é nada. um dia encontrei uma chave numa rua deserta. guardei-a. nunca abriu coisa nenhuma na minha vida. no entanto continuo a guardar a chave. com a mesma esperança que tinha quando a encontrei. a rua estava deserta e imaginei que a chave tinha caído do céu só para me fazer feliz – não. hoje tenho a certeza de que foi alguém desesperado que ali a deixou. por nunca ter aberto o que quer que fosse com aquela chave. e eu. igual. atormentado com esta chave e sem coragem para a largar no deserto que tenho nesta vida. quero tornar a minha palavra em papel – talvez um dia. depois da minha morte física. no túnel de luz aparecerá uma porta com a fechadura para a minha chave – já não servirá para nada. nem a porta. nem a chave. usarei a chave mas as ruas continuarão desertas e as paredes continuarão a ruir. os livros a implodir e as palavras escritas gritarão –
 
Autor
sampaiorego
 
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