Está na hora
O mundo é mais belo pela madrugada
Quando os pássaros já voam e o Homem ainda sonha
Quando o Sol arrependido devolve ao mundo a sua cor
Mas é breve o instante
Ao longe o caos vai trepidando
Seus passos, lentos, se apressando
Sem pressas, louco, atropelando
Com tempo, pouco, reclamando
Às portas da demora:
Está na hora...
Está na hora...
Está na...
E eu vou, já vou, só mais um pouco
O teu cheiro travestido é travesseiro
Onde encosto o meu rosto entorpecido
Onde me entrego à lembrança por inteiro
E pelos campos da lembrança vou perdido
E perdido te acho
Toco-te ao de leve a face
Fito os lábios vincados num sorriso
E me curvo em ti
Não me soltes deste abraço
Não me deixes só
Não me deixes nesta hora
Pois eu sei que está na hora
E tu bem sabes, está na hora
Que é só esta, está na hora
A nossa hora, está na hora
Agora, está na hora
Agora, está na hora
Agora, está na hora
Ago...
Fado queixume do mar
Sabes, ainda sinto
a cicuta
do som da tua voz
em cada palavra escrita
na superfície das ondas
nessa cilada perfeita
da leitura do teu olhar
Ainda me sabe a boca
ao mosto do poema
embebido na ironia salgada
que arrastavas
na derme dos dedos
Em vão, vacilo, perante a história
cingida pela cintura
que a sintonia envolvia na vastidão
desse imenso soletrar
Salivo no rosto
o fogo posto
perante esse sabido
desgosto, tão ténue,
mas tão intenso
como a maré desse mar
Ah! Rugido das águas
de encontro às rochas
da desilusão tão certa
da desilusão tão dura
da descoberta
sedimentando sílabas
desgastando a ternura…
O teu poema é fado
perdido de tão encontrado
na orla do tempo
a vagar…
Emerge do sal e sobe
a amurada das minhas mãos concheadas
e lava o veneno das frases
que poluem as areias douradas
e salva o perfume
do búzio que escuto ao longe
num queixume
a naufragar…
a naufragar…
a naufragar…
ELETROCARDIOGRAMA
Eletrocardiograma
Quando bem garotinha
Percebi no aflorar dos sentimentos
que meu coração parecia ter mãos
Às vezes, elas tocavam a realidade
E a realidade era muito confusa
assustava e fazia doer algo dentro
Eu então escondia a dor, "engolia" o choro
E ninguém se importava
Ignorei quase sempre o mundo real
Crendo mais no que meu coração inventava
O que ele sentia tão intenso
Com suas inocentes mãos
Capazes de criar um mundo particular
Nos galhos da goiabeira, nos cadernos,
Em lápis de cor, tampinhas, caixas ou livros
Nos retalhos de tecidos ou em alguma canção
Distante do mundo real, tão indiferente
Guardo este segredo
Esse lugar dentro de mim
Onde existe uma criança descalça
Com cabelos desgrenhados
Joelhos ralados e unhas sujas
Que observa formigas em filas
Desvira besouros pretos
Perde as horas em viagens no pensamento
Tão vívidas e infinitas
Uma sina em ter esse coração Ingênuo
capaz de tocar e amar simplesmente,
Que ainda se assusta
Que se machuca por vezes,
Espanta por coisas que outros ignoram
Que leva a sério o que acham bobagens
E no peito escondido
Esse coração abafado
Prefere não crescer.
Pensei em muitas pessoas quando escrevi esse texto. Mas Carlos Correa, esse é pra você, que tem um coração de criança e cheio de fé.
DA PRECE AO GRITO
Entre a azáfama
do dia a dia e as amarras
que me induzem
ao um nó mais forte
prefiro as mãos abertas
para o infinito
para onde envio preces
e de vez em quando
um grito!
Maria Lucia (Centelha Luminosa)
CHEGADA E PARTIDA
Do seu olhar noturno
encanta-me o relâmpago
que o faz brilhar de emoção
quando me olha ao chegar...
daí, desnuda-me ao toque
à flor da (minha) pele
inaudita canção...
palavras de amor
nunca me foram ditas
por sua boca interdita
mas ela me dá pra compensar
o hálito perfumado
que eu sorvo
até te esgotar
mas é no rio do teu corpo
que eu mergulho fundo
para te encontrar...
depois, se extravia de mim
por tempos a fio
n'algum imprevisto
recolho-me quase sem vida
para engolir os dias
muda e esquecida
já não existo...
Maria Lucia (Centelha Luminosa)
eu estou lá fora
sinto-te perdida nesta vida
viras as costas à tua alegria
e ao amor não sentido ainda
sinto o teu corpo em lamento
uma solidão presa num gemido
no grito que me traz o vento
qual dor qual sofrimento
de um olhar já tão dolorido
de tão sagrado sentimento
recorda - amor - este momento
deste sentir a te sentir agora
num suave e breve fragmento
é hora - tenho que ir embora
eu nunca quisera ser violento
com a tristeza que em ti mora
a alegria de mim é o teu alento
abre a porta - eu estou lá fora
só o rio corre...
Há silêncio nas molduras,
o tempo a sobrar.
Calaram-se as vozes,
o sono acabou por chegar.
Venturas e desventuras,
o tempo entristeceu,
a manhã jamais rompeu!
E um gemido se ouve,
nos pomares e hortas
onde vida já houve.
Agora só lembranças mortas.
Só o rio corre!
A lua chega sempre na hora certa,
o sino toca dá notícias de quem morre,
a aldeia deserta.
Só os cães ladram,
pressentindo a morte.
Ergue-se o silêncio dos que esperam
igual sorte.
Casas sem vida, portas cerradas,
com o tempo a sobrar.
Só as molduras caladas,
resistem ao vazio,
enquanto as noites descem.
Lá em baixo o rio,
e as ervas crescem,
onde a luz é mais forte,
e o lençol de linho embrulhou a morte.
O vento arranca as flores,
que se negam a abrir,
e para sempre as dores,
no peito a fluir.
Tudo se esconde no cinzento,
sem nenhuma forma ou beleza,
é tudo o que observo com tristeza,
e lamento.
Aproximo-me de mansinho...
Todos se foram,
há tanto tempo!
Só o rio corre…
Só ele não morre.
Vai chorando baixinho.
natalia nuno
rosafogo
Mapa de lágrimas
Mapa feito de lágrimas
ao som do profundo ser
Ali estava no passado
O meu futuro querer
Uma chave a rodar
Um corpo a afundar-se
linguagem difícil de apagar
desenhada na minha face
Realidade pura de dor
Uma crueldade garantida
Um tempo ligado
A uma morte preconcebida
Dei agora vou querer
Algo em retorno
Chora então por mim
Onde me deixaste ao abandono.
CA
Ressaca
Alguém já sentiu o vazio que vem em ondas?
Eu estava lá, em harmonia, até ser
surpreendida pela mudança nas águas.
Tive um pressentimento ruim
Tentei fugir para terra firme,
mas a onda quebrou bem ali...em mim!
inapetência
hoje nada me quis
nenhuma palavra cheia
do que me quisesse
abriu a porta para
que eu pudesse entrar
hoje, até a morte ignorou
a oferta
da tarde ludibriada de vento
e do céu desfolhado de pássaros
nada, nada me quis...
e atiro-me da sacada
de pensamentos
para matar de vez
as ausências.