Contos : 

BOUQUET DE TAIOBA

 
(Do livro UM BICHINHO À TOA, do autor, editado por Biblioteca 24 horas - SP)


Fazia horas que a meninada se encontrava a postos. Bandeirinhas verde-amarelo, uma em cada mão, davam um colorido especial ao cenário. Monsenhor Juvêncio, maior autoridade eclesiástica local, paramentado para o evento da sacralização, se impacientava e caminhava de um lado para o outro, cochichando com seus acólitos, e ameaçando ir embora. Encenação pura. Monsenhor Juvêncio sempre se portava dessa forma. Quando, na presença da autoridade, fosse ela de qualquer patente, ou, fosse qual fosse a demora, se abria em firulas, e deixava escorrer seus sermões de bajulação. Gostava mesmo era de se fazer notar.

No palanque especialmente montado, as autoridades começavam a se amontoar. O doutor delegado, em impecável terno de linho, emblema da corporação espetado no paletó, a cada instante, num gesto quase que automático, levava a mão à lapela engomada, como se estivesse espanando alguma sujeira depositada. Zicão, o professor multifacetário, reservista que sobrevoou os continentes, transitava com desenvoltura, garbosamente trajando sua farda de campanha e ostentando suas condecorações militares. Zicão era figura folclórica. Batia continência ao vernáculo! Isso, quando não estava metido em seus cálculos matemáticos. A furiosa banda de música se acomodara em canto estratégico. Mestre Tito precisava ter uma visão geral de toda a cena, de forma a que pudesse reger seus amestrados músicos de acordo com o momento.

A cidade assistiria dentro em breve, à inauguração do mecanismo que a colocaria no espaço da modernidade. Era o primeiro edifício que se construía ali, e que ia além dos seis andares. Era, na verdade, um arranha-céu! Não se comparava nem de longe, com o ultrapassado Maria Lina, menina dos olhos da arquitetura local, templo da juventude rebelde de cabeleiras soltas, feito bandeira, cinturões e fivelas, que se reunia nos bares de sua ampla galeria de entrada.

A bem de ser, aquilo nada tinha a ver com a oficialidade. A obra era particular, mas, seria uma insensibilidade não fazer daquele ato uma festa cívica. Sem a aprovação da prefeitura, jamais haveria uma obra daquele porte na cidade. Era mais do que justo. Isso significava a convocação de todas as representações políticas e sociais da cidade.

Depois de muita espera, o locutor oficial anuncia a chegada de sua excelência. E a furiosa saúda-a com um dobrado. Todos aplaudem. As bandeirolas se agitam, enquanto o carro oficial corta a multidão. Professor Zicão perfilha-se e bate continência. O delegado se emociona; saca o lencinho de três pontas que lhe sobressai do bolso do paletó e começa a enxugar os olhos. Ah, que cena comovente, anuncia o locutor. Monsenhor Juvêncio desfecha um sorriso largo e mostra os dentes grandes, que se escondem sob o bigode bem aparado.

Em discurso brilhante, rebuscado de metáforas, um aluno do último ano saúda as autoridades presentes e enaltece a construção daquela obra fenomenal.

Fala o professor Zicão:

– Vossência é merecedora de tamanha comoção honorífica...

Fala o delegado!

– Elementos, vitais, proporcionam a concretização desse evento estratégico, particularizado por agentes de sua profícua administração...

A cada discurso, os apupos de uma platéia embriagada, no entrecorte de um dobrado executado pela corporação musical sob a regência de Mestre Tito.

A fita vermelha entrecruza-se ante a porta de entrada do edifício. Lá no saguão amplo, o silêncio do vazio, na espera da entrada das autoridades. Apenas algumas sentinelas, vestidas a caráter, recebem e enviam mensagens em pequenos aparelhos portáteis de rádio transmissão. O corte da fita se faz com aplausos. No empurra empurra, adentram ao local onde está a maravilha. Sua excelência, de braços com a esposa dirige-se até a porta do elevador. Antes do ato final, aluna das mais aplicadas, deposita-lhe nos braços corbelle de flores, adredemente selecionadas. Emociona-se a primeira dama! Lágrimas correm-lhe dos olhos. Um beijo estala-lhe na face enrubescida.

Espaço reservado, o pequeno saguão se comprime. O momento mais esperado. Sua excelência tange a fita verde-amarela. Descerra a placa comemorativa com nome de todas as autoridades do município. A porta do elevador se abre. Monsenhor Juvêncio profere a benzição e esparge a água benta. Acionado o botão, sobe o elevador até o oitavo andar, levando sua excelência, a esposa, o engenheiro chefe e monsenhor Juvêncio, que a cada andar esparge água benta, na medida em que o elevador vai parando. Boquiabertos, todos, em silêncio, acompanham, compenetrados no painel luminoso sobre o portal, a evolução da subida e descida da engenhoca moderna. Num instante a porta se abre novamente e sobre aplausos dá-se por inaugurado o elevador. Primeiro e único da cidade!

Recomposto o palanque, anuncia o locutor com entusiasmo:

– Senhoras e senhores, ouviremos agora a palavra de sua excelência!

Microfone preso nas duas mãos à altura do peito, sua excelência encorpa a voz e desfila enaltecedoras reticências a respeito do evento. Diz sobre os benefícios do elevador! Da economia de tempo nas subidas e descidas! Ao final, os agradecimentos:

“– E... agradeço, penhoradamente, aos engenheiros que trabalharam nessa obra, né.

- Agradeço a monsenhor Juvêncio, que não mediu esforço para trazer as bênçãos de Nosso Senhor para a obra, né.

- Agradeço ao professor Zicão, grande representação de nossa cidade, né, nos campos de batalha de Monte Castelo, lá no Mundo Velho. Ao Dr. Delegado...

- Agradeço a briosa banda de música, né, sempre pronta de dobrar em nossas festas.
- E, por fim, né, agradeço essas bonitas professoras. E, em especial, quero agradecer aquela linda menina, né, que ofereceu, em nome de todos, tenho certeza, aquele moio de flor para minha mulher...”

Entreolham-se os presentes. Professor Zicão entra em posição de descansar!

No outro dia, sua excelência era chamada em todos os cantos como “Excelência do Moio”, codinome que viria a ultrapassar as barreiras da pequena cidade, para ganhar mundo.

Intrigado de saber, sua excelência convoca ao gabinete, o previdente secretário de Educação.

– O que houve? Uma explicação era devida!

– Muito bem, excelência – começa o secretário, cheio de dedos – ao se referir às flores, dissestes moio; moio de flores, quando o correto seria dizer, buquê de flores, ou, corbelle - e capricha no biquinho francês: corbêie".

Sua excelência agradece.

– Difícil esse corbêie; buquê é legal! – raciocina.

Mercadinho novo, pérola de sua administração! A cidade toma nova dimensão. Sua excelência, apesar do “moio”, não se agita, está contente, satisfeito. Corre o mercado, confere, cumprimenta, abraça, sorri, faz acenos. Num canto, em exposição, belíssima banca de folhas, hortaliças. Sua excelência se aproxima. Dirige-se ao atendente e pergunta:

– A quanto está esse buquê de taioba? – O banqueiro ri...

– Exa. não é buquê, é molho.

Sua excelência balança a cabeça, pensa, em voz alta:

– Diacho, eu falo moio eles falam que é buquê. E eu falo buquê eles falam que é moio! Entendo mais nada.

Dispensou o secretário de Educação!


Leia de Wagner M. Martins

FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira

UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho

Participação:

Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira

No prelo:

UM INTRUSO NO QUINTAL

 
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wagner
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