Textos : 

O Mundo é o Palco dos Tolos...

 
uma curta viagem à loucura

Num mundo onde o Homem é, sempre foi, considerado descartável, seja pelo seu status social pseudo-inferior ou pela sua parca capacidade económica, e onde as aparências contam mais que a realidade da vida e tanto como o dinheiro, o personagem desta história será tão valioso como o conjunto de todos os nossos medos. Socialmente excomungado pelos seus pares dedica a sua vida próxima à vingança por meios que só a sua mente consegue engendrar, sem moralismos, sem o civismo postulado por uma burguesia falida. Por entre os crimes e os abusos cometidos, a sua loucura chega, no entanto, a torná-lo cada vez mais humano. Os seus sentimentos, ainda semi-puros e capazes de equilibrar os pratos da balança de forma a impedir que algumas das suas acções se tornem extremistas em demasia, estabelecem um dos seus dois limites, o outro limite será sempre ele.
Desengane-se quem pensa que os erros só podem acontecer uma vez na vida, a própria vida é um ciclo inconstante de erros, ou que a loucura de um não será a dos outros, no fundo todos nós somos um assassino em potência, somos predadores da nossa própria espécie.


Começara naquele momento a trovejar e o dilúvio que há dias se avizinhava era agora uma realidade. Alguns, lá fora, deitavam-se debaixo dos bancos do jardim na esperança de se protegerem da borrasca, nem todos tinham um tecto, nem todos tinham um rosto, e ele incluía-se agora nesses números. Posto fora apenas com a roupa que tinha no corpo e com algumas notas, lá fora praguejando e ditando insultos ao rei e aos seus perniciosos e devotos súbditos, sem qualquer esperança de indulto, a decisão era irreversível. Diz-se que a decisão pseudo-patriarcal se devia a cinco anos seguidos de festins bem regados junto dos anarquistas que, dizia-se também entre os meios mais cultos, impulsionavam a discórdia e fomentavam injustificadamente diversas pelejas de rua, num tom de desafio às mal equipadas e malformadas forças da autoridade. Uma tristeza vê-lo partir assim, tão novo, rumo a um destino incerto. A partir daí a ruindade tomou-lhe conta do ser. Os sorrisos perdidos davam agora lugar a um ser infeliz de ar taciturno.
Toda a sua vida lhe fora um coma social auto-induzido, ignorara o verdadeiro real quando embarcou numa cruzada por valores mais altos que a sua própria compreensão, valores que outros advogavam como incertos, impuros. Julgou poder ser ele um dos motores que ajudaria à transformação daquela sociedade decrépita. A sua ansiedade por mudança contrastava com a acomodada vida dos papéis que davam poder a uns e escravatura a outros.
Permitiu, no entanto, que lhe dividissem o mundo em dois, a classe social em quatro, a família em milhares. Permitiu que esse mundo se tornasse um manto de retalhos com diferenças acentuadas nas cores e nos ideais. A partir daí desenvolveram-se-lhe estigmas sobre aqueles que viviam com o seu olhar catatónico, num seu outro mundo privado, ou sobre outros que não vêem, ouvem ou falam, cujo corpo apenas se alimenta de síndromes diversas, a esses chamava-lhes simplesmente diferentes.
Com o tempo a sua interpretação mudou, tornou-se mais humana, não via gente diferente, mas sim especial, gente capaz de o fazer sentir as limitações da vida, a sua pequenez, a pequenez de todos, afinal não havia assim tanta diferença entre uns e outros. Raios.
Por isso se fazem constantes promessas, palavras que não passam de mentiras para ajudar esses aleijados, sempre com a consciência de que tudo não é mais que mero egoísmo. Somos egoístas, consumistas egoístas, reflectia com frequência. A sua reflexão ia sempre mais além quando alegava em público que a vida não era mais que um momento fútil do passado e quando as suas curtas frases laceravam os olhares dos seus ouvintes… somos nada e não o conseguimos negar ou aceitar, atirava ele em uníssono com os pensamentos de cada um fazendo cada palavra ecoar repetidamente à sua frente, desafiava-os ainda a conseguirem contrariá-lo, tal era a confiança que tinha no discurso. E continuava, um dia alcançaremos o patamar mais elevado da evolução, mas ainda muito distante da perfeição com que nos limitamos, o tal objectivo final e inalcançável. Porém também advogava o perfeccionismo.
Era ávido devorador de livros, mas dos muitos que leu e consumiu, sublinhou sobretudo as lições de Heráclito e deixou-as entranhar-se em si. Tudo flui, nada permanece, esta era a afirmação do filósofo que tomara como o seu lema. À noite juntava os seus fiéis seguidores em redor de uma fogueira e falava-lhes, dava-lhes lições, formatava-os a seu bel-prazer
Durante muitos séculos conseguimos dividir-nos em senhor e escravo e subdividir os segundos em aptos e inaptos, criámos regras a que chamámos leis e forçámos alguns a cumpri-las, criando-lhes castigos se as não respeitassem ou tentassem alterá-las, isso levou a pelejas entre seres iguais, ao desenvolvimento da forma de matar, à doença baseada na loucura e no medo constante dos povos, que deveriam ter sido sempre um só.
Ninguém está a salvo da insanidade artificial, da incapacidade de dizer ou escrever «sim» quando se exige que tal se faça, algo que não é mais que uma contra negação de nós próprios ou a nossa dupla afirmação, pela lógica que o Homem criou e desenvolveu. A partir de hoje irei reaprender a chorar, a pensar, a ser humano.
Surripiaram-lhe a vontade de pensar. Amordaçaram-lhe o peito com aquele arame farpado fininho que dói só de ver e as mãos, entrelaçadas entre si e envoltas numa ignorância fétida, choravam-lhe. Este era um novo sentimento para ele, a solidão de estar entre a luz e as trevas, num limbo sem apoios como se fosse um trapézio sem rede.
Já fazia contas sem saber soletrar os números, escrevia sem conseguir somar letras, caminhava sem saber por onde começar. Nada disto tinha fim, nem fim nem nada mais porque o horizonte, aquela linha longínqua, estava ali, era ele.
Ele era de tudo um pouco, mas a astronomia, entre tantas ciências perdidas, apaixonava-o. Estudara-a em livros que seriam agora ilegíveis, alfarrábios que folheava na biblioteca do seu pai, na altura carregados de letras que ainda não sabia definir, relatos de experiências e aventuras impossíveis. Era cobaia do extraordinário, de tudo o que o fazia viver na ilusão e das promessas, sempre irrecusáveis, que essas histórias lhe traziam, filtrava todos os pormenores, incluindo os da morte que lhe ocupavam alguns pensamentos inimagináveis.
Sonhava que um dia, se mais dias ainda houvesse para além daquele, se libertaria e ganharia tudo o que nunca outro ser havia ganho... algo para ver, algo por que viver.
Considerava-se agora a outra metade de metade de si, moeda que se vira na mesma face, sem coroa, sem reino. O seu pensamento derretia-se no sal das lágrimas que escorriam imparáveis para o chão, com a vida a desfazer-se e a contorcer-se em dúvidas sobre como seria o dia de amanhã... se haveria amanhã. Os seus olhos viveram o momento efémero do presente que não mais era senão o agora, e agora, e agora, nada mais que um mísero agora.
Quando as manhãs ensolaradas se debruçavam sobre abril, baptizadas pelos mistérios do nevoeiro e pelas cores já primaveris, lembrava o tempo em que ainda sabia de cor o momento da mudança de estação e os cheiros das flores acabadas de acordar. Fê-lo pensar que as coisas podiam voltar a ter uma beleza própria que só já conhecia de outros tempos.
Nessas manhãs sentia-se invadido por um turbilhão de memórias que lhe acordavam os sentidos, manhãs em que se juntava família e amigos num cómodo, aprazível e saudável repasto no campo.
O vento que sempre lhe agitou o mar daquela vida, ao contrário das pessoas por quem nutrira amor e consideração, nunca desistiu dele. O vento amava-o como se ele próprio fosse um dia uma brisa, noutro um redemoinho, noutro o silêncio que dançava entre o esvoaçar dos pássaros e as copas das árvores.
Esse tal vento, quando o sentia soprar, vinha ao contrário do habitual, num mundo invertido, num espelho distorcido do sonho comum a todos, a vida. O cheiro do outono já não era como dantes e as noites apressavam-se, frias. Somos todos um só, um pequeno e só grão de areia que se esvai por aí, sem destino, sem sentido e sem aquela vida que fabricáramos para nós e para os outros, pensava ele.
Era a outra metade de metade de si, era nada e tudo, entre o zero absoluto e o infinito, ele e ela.
A tristeza invadia-lhe o corpo, olhava em volta, via quem lhe dera tantos sorrisos, e quem também o tinha esquecido, e pensava que era ali o fim do caminho. A vontade de voltar atrás já não o alimentava e aquele oásis a quão teimosamente chamava de passado tinha-se perdido, uma situação incontornável que lamentava profundamente. Disseram-lhe um dia que tudo deveria ser feito a dois, mas o espaço para repartir com outra pessoa ocupara-se em definitivo, agora e até ao fim dos seus dias, era só ele, ele e o espaço ocupado por alguém que não o queria partilhar, ele e as memórias que mantinha. Ela, por sua vez, parecia não se importar com nada disso, vivia despreocupada e aparentemente feliz, esquecida da existência comum. Como se aquele pedaço de vida tivesse sido uma perda de tempo.
Sentia falta de uma mão amiga, de um conforto que o fizesse esquecer as agruras da vida e que, subtilmente, o lembrasse que aquele olhar e aquele sorriso ainda ali estavam. Recordava com saudade todas as palavras que tinham trocado mesmo sem a necessidade de as dizerem, já se sabiam um ao outro e por isso não compreendia a súbita separação. Achava que ambos tinham a capacidade de contornar o primeiro problema que lhes aparecesse, mas o medo tomou conta dela. Desistiu. Preferiu esquecer o futuro. Preferiu sofrer sem ele, deixá-lo sofrer sem ela.
Lembraria sempre, num qualquer dia triste e sonolento, outros tempos em que se juntava com ela num local recatado e conversavam durante horas, decidiam o futuro. Diziam um ao outro como queriam que fosse a sua velhice, trocavam alguns olhares sorridentes e riam das sãs loucuras que deixavam no pensamento de cada um. No fim nada era mais que nuas palavras, somente palavras. Ele era o único que acreditava que todas juntas fariam algum sentido, que todas elas se contorciam de sentimentos reais, mas houve um dia em que tudo isso se desmoronou. Tinha sido um duro golpe para si, mas em segredo ainda alimentava uma réstia de esperança de que tudo poderia voltar a ser como dantes ou melhor ainda, ele, sim, perdia tempo com esses sonhos.
Já muito poucas coisas lhe interessavam, o foco estava no grande objectivo que tinha criado para a sua vida, ir mais longe e chegar a um destino que apenas a ele interessava, sem olhar a quem. O seu trabalho era a sua vida, o seu amor era o seu ser, amigos guardava alguns sem que lhes pedisse nada, mas era altruísta ao ponto de os ajudar sem que também esses lhe pedissem fosse o que fosse. Essa espécie de egocentrismo, que mal organizado lhe poderia ditar um outro destino, algo até cruel, consumia as suas acções e alimentava-lhe os dias.
Jurara a si mesmo que ninguém mais o magoaria, uma decisão de vida ou de morte, e que assim teria tudo aquilo a que tinha direito ou que conquistasse pela força, afinal uma conquista não era um roubo.
Quanto às mulheres, resguardava-se nos peitos de algumas que representava e vendia, nada mais que isso, sem paixão e sem carinho, somente o prazer físico de dois corpos que se encaixavam todas as noites. Era isso, os sentimentos mais humanos, embora não se tivessem extinguido no regaço da sua amante e amada, estavam então enclausurados no limbo entre um velho paraíso e um actual inferno. A ferida era demasiado profunda e a vingança não lhe permitia sará-la. Por vezes questionava-se se poderia deixar de a amar, mas a resposta, soando a falsa, era sempre a mesma, tremia sempre que tentava responder que sim, poderia. Mentia à mente, mentia ao corpo.
A vida tornara-se injusta, só e desprovida de sentimentos como os que um dia experienciara. Um caminho sem sentido, um abismo sem pontes, um labirinto sem saída, um infinito nada. Fugira-lhe o medo e a coragem, ficara apenas com o sol e a lua que também não eram só seus. Não tinha filhos a quem passar o conhecimento ou que pudesse ver crescer, tornava-se, a cada dia, um manto de retalhos que se desfiava com o passar do tempo.
Nem sempre fora o louco que é agora, tiraram-lhe o nome e o estatuto social, e ele amaldiçoara-os a todos e todas as gerações seguintes, sem quaisquer resultados. A única vingança que conseguiu foi desgraçar a vida de alguns através do ópio e de algumas daquelas palavras quase imperceptíveis que se penduravam nos seus lábios já negros.
O seu dia a dia era agendado em calendários toscos, onde descrevia e marcava as suas actividades, por vezes burlescas, e as divisões que fazia com os outros, tudo ao pormenor, preciosidades que guardava num pequeno cofre que escondia envolvido em pútridos pedaços de tudo, ali ninguém tocaria. A decoração do seu espaço era feita de objectos primários, com prateleiras forradas de luxos imaginários, alguns sem qualquer utilidade, mas que serviam para ocultar algumas pratarias, antes pertencentes a outro alguém.
A lucidez da mentira infiltrou-se-lhe no corpo como se de um verme se tratasse, revolveu-lhe as entranhas, alimentou-lhe a loucura. Instalara-se o caos. O desnorte que parecia mover-se em si, acometia-se de outras loucuras como os olhares transviados que deitava às damas da alta sociedade ou a mão atrevida que deslizava pelos bolsos dos empertigados lordes que se passeavam descuidados. A vida opaca fundia-se naqueles densos nevoeiros fazendo com que os corpos desfocados se aglomerassem ao fim da manhã nas largas boulevards e se abalroassem com o despeito habitual. Era, de certa forma, uma imagem distorcida mas socializante, talvez a única maneira de se socializar sem olhar a classes, como se todos tivessem os olhos vendados e os sentidos agrilhoados. Estes ambientes facilitavam-lhe a recolha de bens alheios, eram propícios à arte do gamanço.
Era uma alma perdida, audaz, mas perdida. Nas muitas vezes que invadia a grande cidade, camuflado numa enorme gabardina e com a cabeça enfiada num velho e gasto bowler, que só lhe deixava de fora os restos de cabelo oleoso que lhe restavam, tornava-se na inveja de muitos, talvez a larga maioria, por ter mais espaço que todos os outros na via pública ou em alguns apinhados cafés da moda, havia uma distância de segurança de cerca de dois ou três metros, o cheiro que emanava de si e da sua roupa era de tal modo repelente que nem os polícias de giro ousavam interpelá-lo. Chegava a ter piada o asco que tinham dele, queimava.
Não gastava um tostão e tinha tudo o que exigia, sabia-lhe bem a vida assim, era um comodista aproveitador que sabia usar a língua viperina conjugada com os piores atributos de uma doninha fedorenta. Mas que ninguém se deixasse enganar, ele fora mau, rude e asqueroso no pior sentido que cada um desses adjectivos possa conter. Um animal perigoso que por entre a trafulhice e a capacidade por vezes atabalhoada de orador, governava e liderava os mais temidos e destemidos assassinos, violadores e ladrões que paravam diariamente no tal parque que outrora tivera música, poesia, flores... tudo morria agora, mesmo o silêncio da noite.
Sofria de devaneios sistemáticos espaçados por entre pensamentos dispersos, acontecimentos enigmáticos. A loucura chegou a criar-lhe miragens e a moldar-lhe a percepção da sua própria realidade, a certa altura, logo no início dessa sua segunda vida, afirmava a todos a sua unicidade, como sendo o último e legítimo herdeiro de povos ilhéus atlantes já submersos. Sempre foi um ser cheio de vida, partilhava-a com simpáticos duendes e sátiros numa folia que desafiava ludibriar os momentos mais adversos.
As palavras que lhe saíam da boca entornavam-se lentamente em cascata pelo peito e corroíam-lhe a pele sem que o animal sentisse qualquer dor. Por vezes o sentido que lhes dava confundia-o, faziam-no duvidar de si próprio, do propósito da sua vida.
O fim parecia próximo, já só balbuciava algumas formas de falar quase desgastadas pela fina brisa que corria da parca vida. A sua respiração ofegante assemelhava-se a vida que tinha levado e ao desdenho com que falara, no passado, de tantos quantos o rodeavam, a dada altura cada vez menos, perdia os seus ouvintes de dia para dia.
Via-se agora, a si próprio, como aqueles seus subordinados o viam, como o arquétipo de uma sociedade sem lei nem grei, individualista e sanguinária, onde a maior riqueza não era mais que a pobreza material dos conjuntos socialmente aceites pelas teorias filosóficas que se passeavam nos corredores do paço real, mas sim o que cada um conseguia amealhar para si, um espaço sem fronteiras e uma economia sem dinheiro, uma utopia generosamente perigosa.
Os raros momentos de lucidez enfureciam-no por lhe permitirem recordar o outro lado da vida que passara por si. As pedras da calçada também o enfureciam de vez em quando, quando, sentado num banco de jardim, se punha a estudá-las e a ler o que o íntimo de cada uma dizia, eram demasiado geométricas, roçavam uma certa perfeição arquitectónica e isso era, no seu olhar, contra natura.
Lembrava a mulher que o pariu com algum carinho, mas não a perdoava por nunca ter intercedido por ele. Aos três irmãos via-os como enviados de Belzebu, os verdadeiros culpados da sua actual condição, principalmente o empertigado, que era mais velho e que, sempre de nariz levantado e ar efeminado, lhe tinha tomado a futura mãe de um seu possível filho por meio de chorrilhos de mentiras e presentes dourados.
Ela tinha-lhe ferido o coração, mas esqueceu-se que também lá estava… meio suicídio.
Ainda assim escondia em si o desejo de um dia voltar a ter com quem partilhar o resto da vida, não da mesma forma, claro, mas alguém que também tivesse alguns inóspitos segredos e que lhe permitisse descobri-los, como se de um jogo a vida se tratasse. Aprender a ler os seus pensamentos, antecipar-se aos seus pedidos e, de certa forma, fazê-la feliz, dona do tempo e do mundo. O passar dos dias, no entanto, castrava-lhe essa vontade, os seus sonhos passavam sempre por aquela mulher que, em tempos, lhe tinha dado algum sentido à vida. Perdoar-lhe-ia tudo, mesmo sabendo que nada havia a perdoar, que o erro também tinha sido seu. As suas palavras nunca tiveram eco nas atitudes.
Se já não podia ser o sonho da mulher por quem nutria os mais desejados sentimentos, decidira, não seria mais o sonho de alguma outra mulher. Tudo o que tinha era só seu, só para si. A partir desse momento a partilha de qualquer tipo de amor ou amizade deixara de existir, também o egoísmo lhe tomava conta da vida. Certo era que não a conseguia esquecer, porém decidira igualmente relegar tais recordações para os seus momentos de fraqueza e de solidão, eram essas as feridas que não saravam, mas fosse qual fosse a dor que sentisse não a choraria, ela não merecia.
Ao irmão do seu pai, que lho tinha substituído na educação após o falecimento deste, desejava uma morte lenta e dolorosa... aristocratas sem cultura, como os apelidava.
Tentava imaginar os pensamentos dos que têm a vida cheia de nada, vagos e silenciosos, estagnados num espaço à parte que se ladeia de outros espaços quase comuns e de outros, que à distância de um olhar ou de um pequeno toque tímido, se afastam em galopante desdenho. Pensava ainda nos que também julgam ter tudo, mas que, quando a realidade os importuna, são pobres, de espírito e de bens materiais, o amor é banal, um sentimento quase surreal, um luxo para os outros, ou de outros. Eram estas as características que via no seu tio-padrasto, nos seus irmãos e um pouco, por força das circunstâncias e do convívio, na sua mãe.
Há ainda os que têm tudo sem saber o que é tudo, aqueles cuja definição da vida se baseia em míseros números e letras que se amontoam sem sentido.
Há entretanto uma quarta classe que julga que ter tudo quanto baste é ter sempre a razão do seu lado, os autoproclamados sábios. Estranhamente tudo e nada ainda faziam sentido.
De entre tanta loucura dava por si indeciso. Com a tal vida cheia de tudo e nada, com alguma riqueza de espírito e, embora poucos, alguns bens materiais, sabia-se desenhado por letras e números, com e sem sentido, sabedoria o quanto baste para poder dar os seus passos, nem sempre acertados, sentia-se longe e perto. Certo e errado.
Tinha a consciência de que muitas vezes fora posto de parte por não encaixar na perspectiva perfeccionista de alguém. Houve sempre quem lhe tentasse idealizar uma forma que não era a sua, mas a sua personalidade não era fraca ou moldável, era, no entanto, adaptável às circunstâncias quando se via errado, reaprendia-se aos poucos, mas recusava curvar-se.
Aos poucos vivia, sim, vivia! Tinha altos e baixos como todos, pensava, entristecia-se com o passar das primeiras horas da manhã, alegrava-se com as primeiras da noite, esquecia alguns passos dados e lembrava o olhar único de quem amava, memorizava sorrisos e lágrimas, ensinava-se e aprendia o tempo que o sentia, tudo por ainda ter alguma humanidade em si.
A vida serpenteava-lhe entre as opiniões dos que achavam devê-las ter, dos que se pensavam como anciãos e guardiões dos templos da verdade e da razão única. Esses templos, porém, não tinham qualquer significado para ele. Afirmava que cada um era um templo, um diamante por lapidar. Mas nem todos teriam a arte ou a capacidade de, a cinzel, desenhar nele linhas que encaixassem noutras, muito poucos poderiam almejar fazê-lo e até esses ele escolhia criteriosamente. Todos são hábeis artífices uns dos outros.
Não lhe custava viver assim, custava-lhe que nem todos vivessem assim, que nem todos tivessem a oportunidade de ser naturais, sem aquelas asquerosas perucas brancas e as caras carregadas de pó de arroz e sardas falsas.
Antes, ainda era mais novo do que agora, sentava-se no coreto do jardim a ler textos seus, a recitar poesia sua e a fazer inflamados discursos contra o poder que enclausurava e escravizava o pensamento e a capacidade de se ser. O seu último discurso ainda foi alvo de um estudo no âmbito da psicossociologia, levado a cabo por uma pequena revista académica que circulava na cidade.
Sol... chuva... frio... calor... e o tal tempo que nunca tem tempo para si, não o tempo das nuvens e do vento, mas sim aquele que nos conta os passos, umas vezes mais apressados para chegarmos a tempo, outras vezes mais lentos porque temos tempo. Olhar em redor e parar no meio do nada, a ouvir nada... nem um passo, nem mesmo o respirar do vento que é de outro tempo. Ouço só o bater constante do ponteiro dos segundos que me aproxima cada vez mais da meta que todos temos, o fim do nosso tempo, o início do tempo de outros que virão depois de nós.
Tudo agora passa lento, arrasta-se de tal forma que consigo dar conta de todos os pormenores de cada acção e de cada atitude. Consigo até desvendar os mistérios que se escondem por detrás de cada letra e da soma de todas elas na procura de construírem o seu futuro, a palavra. E depois os mistérios acumulados que me traz cada palavra, e cada frase, e cada livro. Dou por mim na terrível demanda pelos mistérios que se escondem nas ideias de quem escreve os livros que leio. Se ao menos conseguisse decifrar parte desses mistérios, mas... e os meus? Sim, eu também junto letras e palavras e frases e textos, eu também escrevo livros, eu também tenho os meus mistérios para descobrir e entender.
Será sensato deixar que sejam os outros... vocês, a decifrar os meus mistérios?
Provavelmente deveria almejar a conhecer-me a mim próprio. Posso começar por me ler de vez em quando e de fazer ecoar dentro de mim as ideias que me fizeram escrever o que escrevo. Não me percebo. Talvez seja esta a génese da minha loucura, ou da loucura de qualquer um de nós, até vossa. Sim, porque cada um de vós é um heterónimo meu, a cada um de vós eu roubo um pouquinho de história, são todos personagens do meu livro, quer queiram, quer não.
Olho o espelho, despenteado, mal acordado, rezingão e, de olhos embaciados, percebo, algo tardiamente, que já em nada sou eu. Transformei-me numa espécie de ficção, na imagem longínqua do meu ego, o não do meu não, a esquerda da minha esquerda. Acho que o corpo me puxa no sentido inverso ao que quero fazer, ao que sei estar certo, puxa-me para o erro, a transformação enlouquece-me e inverte-me o desejo, ainda não estou bem certo do que se passa.
Ando um pouco e sento-me à janela a imaginar o Sol, sempre imponente, a nascer a poente… a nossa estrela quente e irreverente é agora um mero brilho insolente, sinto o tempo a voltar para trás nos ponteiros do relógio – tac-tic, tac-tic, tac-tic… –, talvez possa agora remediar os erros de outrora. Mas como? Teria de reaprender a ler, desta vez ao contrário, da direita para a esquerda, reaprender a andar… não, a andar não pois ainda agora vim a andar para a janela, apenas troquei os passos, passei a virar sempre à esquerda.
A vida lá fora, como será? Os outros ainda existirão, ainda serão os mesmos?
Tenho medo, medo não, receio. As cores do arco-íris não se trocaram, por exemplo, apenas nascem do lado contrário, vivo na simetria da minha realidade, sinto-me sem vontade própria, um fantoche, uma marioneta, por muito que diga não o corpo desrespeita-me, mas de repente ganho vida própria de novo, dantes não entendia, mas à medida que os dias vão passando vou descobrindo coisas novas, estranhas mas novas.
Todos os dias, em alguns mais do que uma vez, tenho de me confrontar com um espelho para que o meu não-eu me veja, tenho de fazer todos os movimentos que ele fizer, para que não estranhe a posição em que se encontra e depois, quando ele sai do campo de visão desse espelho, posso ir à minha vida, á descoberta do mundo dele. Um mundo sem luz e sem escuridão, onde apenas vejo o Sol quando para lá se vira o meu novo mundo – o espelho – ou até mesmo a Lua e as outras estrelas.
É interessante como se consegue assim galgar o mundo, andando de espelho para espelho, no entanto cada um tem de ter bastante cuidado, não vá ainda assim o diabo tecê-las e o meu não-eu se lembre de aparecer num espelho onde eu não esteja. Se tal acontecer a coisa torna-se complicada. Primeiro deixo de ser imagem, deixo de existir e o meu não-eu morre, simplesmente morre. Segundo, nunca mais chego perto de outro espelho, não posso, não tenho quem me olhe, passo a viver naquele espaço sem luz e sem escuridão. Terceiro, nunca mais veria o mundo através de tantos espelhos perdidos, nunca mais veria caras bonitas – mesmo que ao longe. Viveria como alma sem dono, perdida no limbo a sentir constantemente vultos e sombras a passarem por mim nas suas escapadelas entre espelhos, ou, na pior das hipóteses, arranjaria trabalho como assombração, aberração distorcida em espelhos de casas velhas, onde teria sempre a hipótese de sair em liberdade de vez em quando, entrar no mundo real que também já foi meu… seria bom, mas não seria fácil e nunca mais voltaria a ser eu, de novo, seria outro alguém sem passado, frágil – porque quem não tem passado é frágil – e velho – porque decerto que de uma imagem distorcida, de uma malfadada assombração nunca sairia alguém de bom aspecto.
A vida neste mundo interior onde se nega a própria negação, onde o silêncio faz parte do quotidiano, onde se desaprende a falar, onde por vezes se cega por não existir nada para ver, faz-me pensar se eu não teria sido já assim, quando era gente, antes de, por maléficas artes mágicas – sabe-se lá quais –, ter trocado de posições com a minha imagem que agora sou eu, em vez do não-eu. Se o espelho reflecte apenas a nossa imagem ou se vai sugando a nossa essência cada vez que o olhamos, envelhecendo-nos. É curioso que quem se olha mais ao espelho ou são as pessoas que se tentam embelezar ou as que se preocupam em demasia com o aumento substancial das suas rugas.
Neste momento já nem ligo a isso, mas era capaz de ligar se estivesse no mundo a que chamo real. Já reparei que o facto de estar aqui há já tanto tempo não me vai emendar os erros do passado, o tempo por cá também não anda para trás, como julguei no início, resta-me pensar e esperar por um espelho disponível para ir dar uma volta a qualquer sítio que não conheça. Ou esperar pelo não-eu, a minha cara-metade.
Não, isto assim também não pode ser, tem de haver aqui por este limbo, este fim de mundo, alguma coisa de útil para fazer, não pode ser um marasmo eterno… ou sim? Terá sido por isso que a minha imagem me tirou o lugar? As dúvidas persistem e aumentam, e se as coisas aqui não forem como as imaginei ou descrevi para o meu íntimo? Estou numa prisão sem grades, sem guardas, apenas com um vidro à frente e nada por detrás, nem escuridão, nem luz.
Posso matá-lo! Se eu não aparecer no espelho, ele morre… e eu liberto-me!
Liberto-me! De quê? Da ignorância deste mundo inerte e interior sem som ou da sabedoria daquele outro, ruidoso? Aquele do lado de lá?
Matá-lo pesar-me-ia na consciência, é parte de mim, mato um pouco de mim, perco a minha imagem, perco inclusive a minha sombra, deixo de existir, suicido-me por completo. Isso faz com que a minha presença junto ao espelho seja uma obrigação para comigo próprio, não para com a minha imagem, para o meu não-eu. Não posso negar o meu não, o meu lado negro, não lhe posso negar vida, vontade, desejo, poder de decisão, não lhe posso negar nada do que já não me pertence.
Depois disso não, algum tempo passado a sua verborreia viu-se arrastada pelo chão sujo de beatas e escarros, atacava cada um que por ele passasse, qual cão raivoso cuja cegueira apenas lhe permitia ver máscaras em vez de realidades. A loucura tomara-lhe conta do corpo, da mente e da língua, não era mais que um miserável pedaço de nada a quem, de quando vez, atiravam ou pouco de pão duro e bolorento que, sempre desconfiado, ia lavar nas águas estagnadas e fétidas do já descuidado lago do jardim. Aquele jardim que antes estava forrado de flores viçosas e coloridas e se adornava aos fins de semana com música, que de forma afinada era tocada pela banda da terra, tinha-se tornado num local de má fama, um mercado onde a loucura, a prostituição e o ópio se comercializavam... sim, também a loucura era comerciável, através dos actos de assédio, de algumas violações e das palavras, como as dele, com e sem sentido. Um jardim que era passagem obrigatória durante o dia para quem se deslocasse da cidade e para a cidade, dos subúrbios e para os subúrbios, com garantia de algumas interpelações, de um lado para o outro do rio, só aí havia uma ponte, e esse espaço transformava-se num antro de crime à noite, não era raro ver uma poça de sangue no chão. Uma fronteira entre o bem e o mal.
Ali os dias camuflavam-se em estranhos nevoeiros durante grande parte do ano, até o sol se envergonhava de se chegar perto, talvez ele próprio receasse a proximidade, provavelmente teria mais onde gastar a sua energia. As noites tinham períodos de estranhos e até assustadores silêncios de repente assaltados por gritos de dor e de vergonha.
Muitos factores se tinham conjugado para que o medo tomasse conta das mentes mais fracas, o ano era bissexto, as teorias sobre os astros do firmamento estavam ainda ligadas à religião, tudo eram castigos divinos, apareciam maleitas sem cura que eram, dizia o povo, obra do demo. No mês anterior ao início da sua nova vida tinha passado um cometa que trazia acoplada uma lista de males que se temia durarem décadas. Havia escritos que o diziam desde a idade média. Ele lera muito sobre esses assuntos e aproveitou-se do seu conhecimento para, de alguma forma, subjugar alguns crentes dessas devastadoras teorias. Também as profecias do apotecário Nostradamus, por vezes adaptadas aos seus fins, eram usadas para incutir medos e criar subserviência. Mas o maior receio de quem arriscava contradizer as suas palavras durante algumas palestras de rua, eram as pragas que, num latim perfeito, lhes rogava. Tornava-se num parasita quando rogava uma praga, certificando-se que o destinatário sofria na pele o destino que lhe tinha sido traçado, ou que, pelo menos, acreditasse que tal podia acontecer e que, com isso, vivesse em constante sobressalto.
Ele assistia a tudo isso e no meio de tanta loucura conseguira ali a sua imortalidade através do escárnio, era como um rei entre os seus pares, esses que ainda ouviam atentamente as palestras que dava no lusco fusco dos fins de tarde, um mundo à parte com os seus contornos mitológicos. As odes satíricas e essas tais pragas com que amaldiçoava os sonhos de seus afortunados inimigos transformando-os para si, num ódio profundo e infinito, em seres dignos das almas perdidas de aspecto disforme nascidos num qualquer purgatório, caso a caso, surtiam um efeito psicológico avassalador, quase letal. Ele deliciava-se com o definhar dos seus oponentes, algo que mais não era senão um bonito e constante sombrio ocaso incessante dos olhares daqueles bichos aflitos e ímpios.
Uma vez por outra assistia também a duelos estúpidos, levados a cena por meio de um mais assanhado piropo ou de uma mísera ofensa tirada de algumas garrafas de Château Lafite. O resultado era sempre o mesmo, ou morria um, ou morriam os dois. Mas ele achava piada a tudo aquilo. Os olhares amedrontados dos adversários a contrastar com os olhares avaros dos padrinhos, os diálogos sem sentido onde cada um recusava as desculpas do outro, a honra seria ali restabelecida, e as moedas, relógios e até pistolas que iam ficando esquecidos ou em que a inusitada distracção dos intervenientes permitia uma recolha rápida dos pertences... sabiam-lhe bem, davam-lhe vida.
Ela estava a preparar-se para ser mãe quando soube da notícia... o único amor que tinha tido na vida, o único homem que tinha admirado e a quem teria entregue tudo o que pudesse, tinha sido excomungado do seio familiar perante a aprovação de toda uma elite nefasta.
Não podia mais pensar ou sequer sonhar, que algumas coisas seriam como dantes. Sabia que aqueles momentos que guardava para si, um dia, estariam de tal forma distantes que olhá-los seria como ler um livro de um qualquer autor. Conversas, afectos, silêncio, abraços ou simples beijos. Apetecia-lhe perguntar se ela se lembrava, mesmo sabendo que não obtinha resposta, que ela talvez preferisse ignorar tudo aquilo, tempo perdido? Nunca.
A chuva tinha destas coisas, tornava-o melancólico, pensativo. Mas gostava que chovesse.
Via-se, de repente, apagado de mil memórias deixadas numa caixa, cheia de sonhos, sorrisos e desejos que nunca conseguira alcançar. A vida perdeu assim boa parte de si própria, mantinha-se agora enclausurado numa solidão que achava não merecer.
Muitos, entre conversas de café, já falavam dele a tentar adivinhar o seu futuro, não era fácil, era demasiado esquivo nas respostas que dava. Alguns até lhe vaticinavam o suicídio, mas ele não estava para aí virado, teriam de o aturar por muitos mais anos, por quanto tempo a vida lho permitisse. Mas quem o conhecia minimamente, um punhado de gente, sabia que daquela vida quase errante só se poderia esperar o inimaginável.
Sim, era de ideias fixas e enquanto não tivesse uma resposta para cada problema que lhe aparecia não desistia, tinham de lhe garantir que o caminho que tomava era impossível de seguir, tinham de ser extremamente convincentes porque para ele o impossível era, tão somente, o desejo de nem sequer tentar. Continuava a querer para si o que era seu por direito e continuava querer consigo apenas quem lhe tinha transformado, pelo menos, uma parte da vida.
Recordava-a mais uma vez, sabia que tinha sido o único a dar-lhe quase tudo, a sua paixão, a sua protecção e os afectos que ela desejava e, embora soubesse que não a completava por completo, sabia que poderia ir mais longe, mas ela, teimosamente, negava-lhe todas as tentativas que tinha levado a cabo. Ela tornara-se uma pessoa fria e distante. A seus olhos continuava a ser a mulher mais bela do seu mundo. A única mulher do seu mundo.
O corpo estava-lhe amputado por dentro, por culpa de nada e de tudo e esse sentimento foi-se tornando estranho por o sentir cravado no peito, desfeito em dúvidas, quase certezas. Momentos de fraqueza que nessa altura não soube controlar. Estupidamente, ou não, ainda reservava em si um espaço para ela, era um facto.
As tardes cinzentas com o cheiro do carvão que queimava pequenos pedaços de carne nas grelhas improvisadas preenchia um vazio que desconhecia existir, nunca na sua vida anterior se tinha aproximado de uma cozinha, muito menos de quem confecionava a sua comida. Ouvia entretanto alguém a tocar uma velha concertina, o seu cantar melancólico, sensual, rouco e enamorado ecoava noutros espaços vazios da mente e, por vezes, as notas desconcertantes, que pareciam não rimar umas com as outras, começavam a ocupar espaços vitais à sua sobrevivência, faziam-no, de novo, respirar pausadamente. O mistério da música faz-se de sentimentos, mas a sua essência faz-se de gentes e do olhar desconfiado do ser humano, até que, subitamente, lhe acorda todos os sentidos.
O paladar, principalmente o paladar, fê-lo aprender a saborear a vida para lá da outra vida, para lá do confinamento a que estava obrigado, e fazia-o pensar que ainda tinha mais mistérios para desvendar. Nunca soube decifrar os cheiros de um campo de girassóis ou de uma seara de trigo ou mesmo o cheiro das primeiras chuvas de outono, da terra recém borrifada depois de um escaldante verão.
Mas o sentido que mais falta lhe fazia era o de humanidade, aquele feito de memórias e desejos, de conhecimentos e compreensão, de mãos dadas e abraços, de olhos nos olhos.
Ouvia a concertina como se ouvisse a si na voz esclarecida da música ou na rima imperfeita de um poema. Caminharia para as trevas se esquecesse cada momento ou se não lembrasse que nada foi tempo perdido.
Delapidava-se através dos olhos daquela gente simples e mal lavada, que unida poderia destruir todos os impérios, ser as mãos de uma revolução. Viu neles algo raro, viu-os como se fossem homens sérios a quem não interessa a discriminação e para quem os novos mistérios não trazem segredos.
Outras vezes o silêncio arrasta-se nas velhas paredes daquelas casas mais pobres do outro lado do rio, caiadas de branco e lavadas pelos poucos raios de sol que fugiam às nuvens. Esse mesmo silêncio que se entranhava nos medos e olhares desconfiados de cada um. Esses mesmos olhares que se cruzavam por leves segundos para que não contagiassem, nem com a tristeza de uns, nem com a incerteza de outros. O Mundo era confuso, ele estava confuso. As parcas paredes que o confinavam pareciam cada vez mais apertadas, o chão que pisava estava cada vez mais desgastado, a loucura teimava em fazê-lo escrever, e escrever e escrever. Nada fazia sentido, apenas a garantia de que a seguir a esse haveria sempre mais um dia que talvez não o fosse para as mesmas pessoas que o viram nascer no anterior, ou ali. Queria mais chão.
Ouvia algumas vozes que se misturavam com as músicas que lhe relaxavam o corpo. Ele não queria sentir um sono que pudesse ser o último, mas queria continuar a sonhar. Queria continuar a ler os seus olhos e a vê-la sorrir, dizer disparates e poder voltar a amá-la. Queria chorar com ela, num abraço, num beijo. As suas vozes nunca mais seriam as mesmas... O povo saltava da precaução para o medo, da sensatez para a estupidez, do sim para o não e ele, ao início, seguia-lhe essa tendência.
Ao tentar consumir todas as suas falhas, por entre os tormentos que teimava não esquecer, junto de alguns velhos homens sábios e a fumar pequenas mortalhas que enrolavam as memórias das noites distantes que se enriqueciam com o cheiro e o gosto das batalhas por consumar nos campos que em sonhos estremeciam ao sentir os corpos das suas futuras vítimas nas fornalhas por eles próprios acesas, aqueles tais que nem a vida mereciam, lambia as feridas que repetidamente, a cada palavra, reabriam nas recordações dos mistérios desvendados sem glória.
Daí em diante, em dia algum, não mais teria a preocupação de abrir outros livros de história sem ser o seu, lembraria toda aquela solidão. Na sua visão, nas suas profecias, soariam trompetas de vitória por entre a confusão dos pensamentos que lhe escorriam da reminiscência do próprio ser. A incongruência humana que lhe nascia no corpo mostrava-se, no entanto em actos vis e dementes e em tudo o que de si emanava, principalmente nos seus diálogos surdos tão evidentes que em todos os dias da semana, pela manhã ou no despontar da noite se transformavam em formas de vida inteligentes quando antes não eram mais que gente insana em busca de sonhos diferentes, ele regenerava-se.
O ar distanciado do sofrimento que se lhe esboçava nas faces descoloridas devido à fome, inimigo que não tem sentimento e contamina sem sofrer pelo facto indiferente de matar as vidas de crianças, velhos e todo um povo, sem culpa dessas atitudes desmedidas que os outros loucos têm a todo o momento, chegava a diverti-lo. O infame sorriso nos seus lábios de carrasco, que vivia em si vindo do sofrimento e do mau-trato, como se os que o rodeavam fossem animais para abate, carne para um régio festim indiscreto, era bárbaro. O medo que despoletava noutros por se banquetear com os despojos de um qualquer homem desconhecido que matasse, por lhe considerar a vida um fiasco, trouxera-lhe uma vida de assassinatos, era parte da fruta podre da sociedade.
Quando passava pelo bairro dos estivadores, o único sítio da cidade onde a sua influência pouco ou nada contava, fazia-o em passo apressado para chegar ao pontão de embarque e ficava largos minutos a contemplar toda aquela água, imaginava voar sobre os veleiros e barcaças que se cruzavam nos mares altos e se saracoteavam nas tempestades, sentia-se um Adamastor a pegar na chuva e a soprar o vento contra o desequilíbrio e a desigualdade dos homens que usava como se fossem marionetas encordoadas por si, qual divindade, e que a si se escusavam quando fustigados pelo chicote da verdade. A demência momentânea tomava assim conta dos seus sentidos, era purificante.
Deitava-se nas tábuas do pontão a trocar olhares com a lua, entre confidências que só os dois compreendiam, numa linguagem simples, mas só deles. Ao contrário do que se possa pensar já se conheciam há muitos anos e sabiam tudo um sobre o outro.
Ela, lá de cima, tinha uma vista privilegiada sobre ele e questionava-o sempre sobre tudo, sobre o que se passava. É curioso que quase nunca lhe sabia responder, de tão complexa que era a sua mente ainda humana.
Para ele a já longa vida da lua fora sempre de uma escravidão altruísta. Obrigações inerentes a um satélite, a um astro de segunda, como ela própria diria de si própria. A sua única função seria proteger-nos do seu irmão sol e de outros pedaços de luas e de terras que deambulavam pelo espaço, não seria estar ali, a falar com ele como se fossem dois iguais. E era isso que a lua não entendia, o porquê de proteger esta gente quando o seu futuro era o suicídio... ele não lhe sabia responder, mas aproveitava-se dessas fraquezas.
Como numa incompleta história arrepiante em que nada começou ou terá fim, onde tudo tende a um desenvolvimento chocante, os outros olhavam-no de forma subserviente e todos eles davam o seu aval a tantas loucuras, por sua vez, para ele, todos são heróis sem semblante que, graças a si, não andam perdidos ao sabor do vento. Por entre os jogos de sorte que a vida lhe traz, ele olhava e via-se já longe do séquito daquela máfia de indivíduos facinorosos cuja ocupação financeira era a morte dos despojados pela subserviência demagoga dos seus pensamentos ociosos, algo que não suportava pela mesquinhez quase inumana que lhes era inerente.
Noutros tempos perder-se-ia a tentar interpretar as páginas infindáveis dos velhos compêndios perdidos nas bibliotecas que lhe adornaram a vida, ou numa colecção de censuráveis vilipêndios que, de forma repressiva e desmedida, alastravam por si como se fossem incêndios resultantes de uma colossal força perdida na sua feraz imaginação, uma terra que ia além dos silêncios, de entrada proibida a tantos. A indiferença despiciente com que se apresenta frequentemente, fora dos seus círculos de influência, transforma-o num lobo em pele de cordeiro adulterando tudo na sua presença, como se fosse ele a única razão entre todos os semelhantes. Os restantes não eram mais que imagens de si, espelhos espalhados num terreiro que se multiplicavam na falsa esperança de autopsiar a luz de algo singular e verdadeiro.
A solidão, ou a pseudo-solidão, entrelaçava memórias e reforçava alguns laços até então inexistentes, mas também lhe criava fantasmas, moldava delicadamente o seu pensamento. Algumas dessas memórias ainda ganhavam cor, mesmo aquelas menos boas, que também, por vezes, ainda lhe traziam saudades. Os fantasmas levavam-no a outras memórias, de outros tempos que muitos não chegariam a viver, descreviam a forma como os outrora fracos eram tratados e isso tentava-o a repetir esses mesmos erros.
Com o passar do tempo a sua voz voltou a cantar e a gritar. Porém, se a sua vida estagnasse ali, naquele momento, esse tempo tenderia a extinguir-se e a dar lugar a novos conceitos de sociedade, torná-la mais sectarista, mais elitista, mais belicosa e menos humana. Os fracos são sempre vistos como mais fracos, mas, na sua ideia, unidos seriam sempre mais perigosos, e os fortes são sempre vistos como mais fortes, mas também se tornariam mais egoístas, previsíveis, frágeis. Tudo é um ciclo vicioso... ou um vício cíclico, depende do ponto de vista de cada um.
Os seus pares, numa sociedade consumida pelas regras ditadas para definir a diferença entre as classes, a opinião volátil da Igreja e a própria família, exorcizaram-no e deixaram-lhe como herança a loucura que agora lhe é reconhecida.
A sua pele já não sentia uma única ruga, como se os anos se esquecessem de o importunar com as agruras da idade e ele abusava desse magnífico atributo, sabia usar o charme falso que tinha trazido da vida anterior, sabia ser sedutor, até, por vezes, cavalheiro, mas tudo isso seriam estratégias que usava para contornar quaisquer problemas que pudessem surgir, a vida é feita de surpresas e essas não calham apenas aos outros. És uma obra de Lúcifer, dissera-lhe certo dia um padre ortodoxo que se ocupava dos menos afortunados, nem gente nem bicho, chamara-lhe Baʿal Berith.
A única coisa que o acalmava, nos momentos de solidão que aproveitava da noite, era recordar a menina que o acompanhara durante a infância e com quem esteve perto de casar, de olhos claros, cinzentos, e cabelo negro como a própria noite. Uma ténue luz de esperança lhe que permaneceu no corpo.
Todos as noites, insuspeito, passava junto do portão da mansão onde nascera e sozinho praguejava como no dia em que fora forçado a sair, já tinham passado cinco anos sobre esse fatídico dia. O ódio era o mesmo e um certo desejo de vingança ocupava-lhe boa parte dos pensamentos naqueles momentos em que se agarrava às grades altas que limitavam o jardim, como se as quisesse arrancar à força de braços. Numa dessas noites pareceu-lhe ver o irmão do seu pai e os seus irmãos a degustar finos charutos e a gargalhar, a raiva fê-lo chorar, não conseguira evitar aquele momento de fraqueza.
Quando se aproximava da vedação, afastado do portão principal, havia dois schnauzer que insistiam em ir inspeccioná-lo, em silêncio, apenas por curiosidade, como se sentissem a presença do seu companheiro de brincadeira de outros tempos. Estranhamente não lhes afectava o cheiro quase nauseabundo que emanava das suas vestes, ficavam ali, deitados com o focinho na relva já mal cuidada e ouviam-no falar baixinho, hipnotizados, quase que a chorar pedindo-lhe para voltar. Um terceiro mirava-os a distância e ladrava num chamamento que chegava a ser aflitivo. Estava velho e já mal andava, entristecia-o. Invadia-o a tentação de lhes esticar a mão para os acariciar, para os sentir. No entanto ele sabia que aquela afinidade poderia trazer problemas, se o ladrar do terceiro cão chamasse a atenção dos criados ou dos patrões, teria de fugir ou esconder-se, era ainda muito cedo para se mostrar. Mas sentir aquela quase lealdade dava-lhe força. Era um primeiro passo, ser aceite por quem os outros menos contavam, por aqueles que os outros tomavam como elos improváveis.
A distância que o separava de outras realidades era interminável, porém o tempo demorava-se na sua azáfama diária, como se quisesse que cumprisse todas as tarefas que se predispunha executar. Entre as palestras matinais que dava aos que que com ele partilhavam uma vida flagiciosa e os obscenos pensamentos que o martirizavam dia e noite, mostrava-se o seu lado negro e humano, um contraste memorável, único. Cada um desses momentos eram dias esquecidos nos sentimentos da sua cara metade, naquele mais do que certo e vil amor, inviável aos olhos daqueles a quem se destinava a sua vingança. Fazia, todos os dias como se fosse uma oração, juramentos sobre a vida sem destino e instável que, desde o início da purga social, o assolava, vivia na corda bamba como um errante viajante, em sonhos abstractos de infinitos firmamentos. O desejo de continuar o romance que se perdeu entre as palavras e as milhentas desaprovações daqueles que não são mais que amigos fingidos, aparecia e desaparecia consoante situações que experienciava, vivia num desgosto apenas seu, era um homem ofendido que outros viam velho e cansado perante as constantes humilhações a que procuravam submetê-lo, e ele via-os como demónios e vermes que o perseguiam e procuravam alimentar-se do seu corpo, tudo isso cavava um espaço cada vez maior entre os dois corações, dizia o seu lado humano.
Toda a figura que mostrava àqueles de quem se afastara era repugnante. De face escanzelada e olhar vesgo, uma acentuada corcunda que contradizia o estômago inchado, unhas compridas e de um amarelo a roçar o castanho e as pernas longas e arcadas que lhe davam um aspecto quase inumano, teatral.
As metamorfoses a que se habituou permitiam-lhe passar incógnito por entre o povo nas afãs matinais, por vezes nem os seus o reconheciam. Era, apesar de tudo o que caracterizava, um artista que conseguia vestir a pele de qualquer um ao ponto de se infiltrar em alguns bailes com o intuito de estudar os destinatários das suas pretensas represálias.
Subitamente, o escândalo. Os investimentos da família tinham caído em desgraça mercê de uma aventura transfronteiriça no novo mundo, o seu equilíbrio nos espaços que se haviam habituado pisar tremia agora e previa uma escassez de deslocações à corte, os restantes barões da finança afastavam-se aos poucos e aos poucos lhes fechavam as portas. Também as soluções escasseavam. A sua vingança, no entanto, via-se adiada porque queria ser ele o obreiro de toda esta espiral recessiva, mas ainda assim via com bons olhos esta precoce queda social, principalmente do seu tio-padrasto e irmãos, uma lufada de ar fresco pensar que tal poderia estar para breve.
Bem feitas as contas, esta poderia ser uma qualquer reedição de muitas histórias que ele tinha ouvido e lido na sua adolescência, altura em que tinha a possibilidade, rara na altura, de aceder aos livros de Alexandre Dumas, por exemplo, ou de outros gigantes da literatura. Perguntar-se-ia, talvez, no seu íntimo, se deveria usar a sua enferma astúcia para ser ele a fazer o caminho contrário ao da sua ex-família, o que por certo seria uma fatalidade para alguns. Teria de arranjar um plano para não perder esta oportunidade de ser maior que todos os outros.
A cada dia que passava roubava... sim, roubar será o termo correcto, roubava o pasquim diário do quiosque junto ao jardim para se inteirar dos desenvolvimentos sobre a alta sociedade, lá saberia quais as opiniões sobre o futuro daquela corja que desejava ver arrastar-se no esgoto.
O facto de se ter tornado um criminoso indesejável aos olhos de muitos granjeou-lhe muitos inimigos, mas os seus serviços - ou melhor, os serviços que lhe encomendavam, porque ele não os executava, limitava-se a organizar os prestadores de serviços e a providenciá-los de modo a que nada falhasse - garantiram-lhe três coisas: respeito por medo, favores e dinheiro.
Tinha dias em que já não sentia aquela força que o fazia parecer gigante perante o mundo secundário que o envolvia, voltavam as miragens, de noite os pesadelos onde se via enclausurado entre o fumo de incêndios irreais acometidos dos excessos do velho entardecer daquela cidade suja cuja morte jamais lhe chegaria, mercê da sua centenária sede de viver. Esses dias guardava-os para si. Porém, cada vez mais, sempre cada vez mais, apoderavam-se dele indomáveis caminhos do saber que o tornavam naturalmente superior aos demais, de uma tal forma que alguns desses poetas miseráveis que viviam nas ruas iam escrevendo as suas travessas façanhas, imortalizando-o, tornando-o ainda mais temível do que era na realidade.
O seu charme junto das prostitutas tornava-se sedutor, mas era tudo negócio. Não obstante esse pequeno detalhe comercial, quando batiam as doze badaladas lá do alto da torre da catedral, esgueirava-se pelas sombras cumprindo o ritual de visitar todas as suas donzelas, uma por noite, sete noites por semana. Ficava no quarto durante o tempo de uma vela que cumpria o papel de uma ampulheta, já abotoava o último botão da polaina esquerda quando o pavio se extinguia, um clássico. Não as amava, por vezes nem o seu nome sabia, mas mantinha-lhes uma rédea de tal forma curta que sabia exactamente quanto lucrava com o corpo de cada uma, não as deixava engordar e permitia-lhes a visita de um médico todas as semanas. Os clientes era ele quem os escolhia, tinha de haver algum critério, dizia.
A sua figura quase altiva, agora, agigantava-se dentro do seu mundo e, vistas as coisas, do mundo dos outros, qual Fénix renascida, era este o novo Frankenstein costurado com os medos de cada um e com os erros de todos.
Conseguira, entretanto, alguns documentos, falsos, que o davam como elegível investidor de propriedades e, sem querer, tinha-se cruzado com o testamento perdido do seu pai no arquivo de um escritório dos asquerosos funcionários da lei que tinham auxiliado o seu tio-padrasto a afastá-lo dos seus bens. Uma casualidade que o obrigara a usar alguns dos seus contactos, daqueles ociosos administrativos que ainda lhe deviam avultados favores, coisas que sempre calhavam bem.
Nada era segredo, nem mesmo os passos e as imagens mais íntimas de cada um. A rede que tinha desenvolvido no seu próprio submundo obscuro funcionava melhor que qualquer sistema de informação do Estado, era complexa, mas funcionava e garantia informadores fiéis à sua causa, claro que a traição era tratada com alguns requintes de malvadez, prazer também, mas muita acima de tudo malvadez. Poucos ousavam desafiar a loucura maquiavélica que se lhe instalara no corpo, a vida, por pobre e avessa que fosse, valia mais que isso.
O estratagema que adoptara permitiu-lhe andar sempre várias jogadas adiante do seu adversário que, nessa altura, era o cinismo e a avareza do seu tio-padrasto ou o desdenho e o snobismo dos seus irmãos. Conhecia os seus podres e os seus pontos fracos, sabia onde atacar, onde infligir dor, agora só faltava saber quando.
O sol já ia alto e a visão que tinha daquela mansão a degradar-se por falta de cuidados, basicamente por falta de verbas para que tivesse cuidados, feria-lhe o orgulho e arrancava-lhe as melhores memórias, distorcendo-as. O que um dia tinha sido seu por direito, haveria de voltar a ser seu por vingança, sem olhar a meios... a decisão estava tomada. Começou a reconstruir os passos que tinha de dar daí em diante com alicerces bastante sólidos, começou pelos pilares mais esquecidos da sociedade que, juntos, lhe proporcionariam uma estabilidade impressionante e um escudo protector quase impenetrável.
Um advogado, que trabalhava numa rua anexa ao Banco e que tinha preciosos conhecimentos nos meios sociais da altura, que tinha acesso a arquivos e a altos dirigentes régios foi indigitado para resolver os imbróglios legais relativos àquele testamento. Foi bastante cooperante mediante as circunstâncias com que fora confrontado, obviamente que não desejava perder a influência ou a possibilidade de exercer o seu ofício.
O favor devido por este advogado incluía um rol de crimes impressionante, que ele não tinha cometido, é certo, mas dos quais era autor moral, alguns hediondos, desde extorsão à corrupção, passando mesmo pelo assassinato e tudo isto se envolvia numa teia de malha fina, um labirinto confuso e letal. Em resumo, a própria vida do advogado e de outros que o rodeavam, estava em perigo.
Por vezes também sonhava. Prostrava-se sob um banco de jardim isolado da amálgama de gente que ali se acumulava, envolto no nevoeiro matinal ou debaixo das nuvens cinza que enclausuravam o céu azul, fechava os olhos como que em meditação e fabricava sonhos. A introspecção levava-o a mundos distantes e abstractos, a monólogos com a mente, num silêncio quase funesto. Compreendeu, em alguns desses momentos, a importância e o medo da solidão. A importância, por seu lado, permitia-lhe antecipar alguns futuros, fazer um jogo de xadrez com adversários fictícios, onde ponderava meticulosamente o passo seguinte e os meios que tinha ou que teria de arranjar, para que tudo corresse como esperava, não poucas vezes recorria ao próprio erro numa tentativa de criar jogadas fantasmas para ludibriar o adversário. O medo, no entanto, crescia-lhe no corpo à medida que, a cada dia, se aproximava o dia de amanhã, ficava sempre menos novo, menos audaz em relação às mulheres.
É certo que a idade ainda lhe perdoava as agruras que se incrustavam nos corpos velhos e decadentes daqueles barões e duques sedentários que ele abominava, mas era ponto assente… não poderia ficar só o resto da vida, tinha de a reconquistar.
Outras vezes sentia falta da vida, de ver a sua cara, de se partilhar com alguém, sentir alguém tocar-lhe. Sentia falta de voltar a ser gente agora que se via como um mero espectro. Sobrava-lhe a memória, sem saber se mesmo essa ainda era real, tal o desnorte. Lembrava-se de quando era miúdo e ouvia seus pais a conversar sobre tantas coisas, por vezes discutiam, talvez por desacordo ou porque era assim que devia ser um casal, sabia lá, nunca tivera esse papel e pelo caminho que lhe levava a vida já duvidava que tal pudesse acontecer, temia nunca mais conseguir sair dali. Esta persistente contradição da vida confundia-o, fazendo com que o pensamento deambulasse por temas que nunca julgara serem possíveis de existir, coisas enigmáticas como a própria vida e o que as pessoas achariam dela depois de mortas e enterradas.
Afinal o que seria isso de ser gente? Quais os requisitos para se ser considerado gente entre gente? Sempre lhe haviam ensinado que deveria ser moderadamente moralista e, de preferência, deliberadamente pouco ético se quisesse chegar longe na vida, se quisesse pertencer à verdadeira elite dos que são verdadeiramente gente. Ensinamentos que sempre tentara pôr em prática – a maioria sem sucesso. Deveria ter-se tornado num daqueles snobes empertigados, como os seus irmãos, que papagueavam as palavras dos senhores doutores importantes mesmo sem os conhecer, advogados do diabo, matreiros, astutos, mas inconvenientes e maldosos sempre que a oportunidade o justificasse.
Numa confissão disse em tempos que nos dias que se seguiram à sua excomunhão social e familiar nem consigo chorar, verter uma lágrima só que seja, nem consigo sequer borrar-me de medo no meio deste nada. Achava-se o único a conseguir pensar, e a formatar as ideias. Nada da vida lhe era mais que simples interrogações, perguntas sem resposta.
Apesar de estar fora do seu meio reconhecia que tinha sido ouvido, estava de volta a uma realidade que já conhecera do outro lado, que já vivenciara como observador, mas que de repente se tornara estranha, difícil de entranhar no corpo e na mente, acabara de experienciar o maior e mais duro período de reflexão do seu caminho. A acalmia e o silêncio daquelas horas de cativeiro interior deram lugar à azáfama diária das novas cores, dos novos sons, de ambos os lados da lua e de todo o esplendor do sol, sentia-se um estranho no seu próprio chão.
O conhecimento assaltava-o e, de repente, apercebeu-se de que sabia mais que muitos, mas também que o uso da ignorância seria um bem a preservar, por dar lugar à aprendizagem e ao querer ser, à capacidade de reconhecer o valor do não e de conseguir negar-se a si próprio, saber concordar na negativa para espicaçar a dúvida e crescer. Ele era de novo gente.
Tinha dias em que se esgueirava pelas veredas mal cuidadas em direcção às ruínas de um velho castelo abandonado pela memória de quase todos, aí sentava-se e contemplava o azul infinito que se prostrava à sua frente, sublinhava as nuvens e escrevia com os olhos a sua história, era uma espécie de diário que apenas ele sabia e podia ler. Não eram poucas as vezes que voltava a esse recôndito lugar secreto e revia os seus textos, por vezes corrigia-os, decorando-os logo de seguida. Ali aproveitava-se tudo, desde o silêncio que decorava as pedras da velha calçada até ao sabor do ar que, ao contrário do jardim e da cidade, era respirável. Chegou a desenhar as imagens que só ele entendia, principalmente a forma como o vento se enrolava em si, nas árvores e nos muros já gastos e tristes.
O silêncio trazia-lhe a sombra das noites enfeitada com o nevoeiro que antecedia os temporais e, por vezes, as chuvas lacrimosas do verão, essas quentes saunas, era perfeito para ultimar os últimos preparativos para a sua tão desejada vindicta. Os dados estavam lançados, a queda vertiginosa do império financeiro do seu tio-padrasto e dos seus bastardos, chamava-lhes ele, irmãos era agora aparada pela mão dos favores e do produto financeiro que houvera angariado ao longo de tanto tempo. Saindo desta batalha incólume, sentia-se então como o nobre guardião eterno das bases imorais da justiça, qual Lúcifer em seu éden.
A mudança do tempo era, para ele, um evidente acto sexual que existia entre as estações, um espasmo de alegria que se soltava entre um turbilhão de gente, com a voz natural dos elementos a tocar afinada devagar, ao início, e depois como se fosse iniciar a revolta, louca e de contornos definidos, libertava de forma brutal e repentina o som dos instrumentos graves em uníssono.
As pedras soltas da sua história carregava-as com dor e paixão, perdia-as no esquecimento da memória e via-as soterradas por anos de solidão. O seu livro era feito dos relatos intermináveis sobre batalhas que levava a cabo, escritos pelo sangue derramado pela pátria privada. Era um conquistador de mares e vontades, das velhas muralhas que se desmoronavam em redor de outros impérios. Para ele todos os outros eram parte do passado. Os alfarrábios que antes leu ensinaram-lhe as lendas de gloriosos e valorosos guerreiros cuja morte fora homenageada com honras às mortais contendas, monumentos e medalhas, proclamando as liberdades e libertando prisioneiros. Ele não queria nada disso, queria muito mais. A sua vingança seria uma lição, um marco na história.
O seu tio-padrasto desleixara-se com o futuro e deixara-o consumir-se nas chamas de um fogo que nunca veria apagado antes da sua morte. Esse futuro, quando chegasse, já viria demasiado tarde e as chamas seriam sempre avivadas por um único herói que lhes relembraria sempre o passado nos dias mais frios, vê-los-ia apenas, como ele já estivera, com a roupa do corpo.
A revolta superara-lhe todo o medo, brandia as armas toscas que retirava da sua palavra para que se ouvisse bem longe dizer que a culpa não morria cedo, deixando aos seus alocutários não mais que um testamento de palavras ocas.
O decrépito discurso daqueles que se diziam sucessores de um passado glorioso da nação e que, destruindo todo o percurso dos pais, se fizeram opressores, levou o engano e a mentira a cavalgar juntos, os seus irmãos e o seu tio-padrasto não eram inocentes nesse quadro de luxúria e declínio, afirmava ele num dos muitos diálogos que mantinha com o seu íntimo, para


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma

 
Autor
Alemtagus
Autor
 
Texto
Data
Leituras
102
Favoritos
2
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
20 pontos
2
1
2
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 27/03/2024 03:21  Atualizado: 27/03/2024 03:21
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 17966
 Re: O Mundo é o Palco dos Tolos...
Não queria ler a realidade, quando a realidade não se intromete. Vou deixar um pensamento para o mundo: “Não é a corrupção que vai corromper o mundo é a mediocridade que vai corromper tudo”. Jazz não sei chorar, ainda consigo abismar. Meus aplausos ficam aqui.