Poemas, frases e mensagens de Julio Saraiva

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Julio Saraiva

Livros publicados: A Mímica do Vento (Edigrax, São Paulo, 1990) e Liturgia dos Náufragos (RG Editores, São Paulo, 2002)

PRENÚNCIO DE UMA ELEGIA

 
"Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho"
- Carlos Drummond de Andrade -

não te farei uma prece
porque deus fugiu de mim faz tempo
não repares
:não posso suplicar às estrelas
porque tenho os olhos míopes
e sem os óculos enxergo nada
- ou quase
vejo-te com teus dedos exaustos
batendo batendo na porta do fim
fim? mas que fim é este?
o fim não existe
vem um padre que gostavas
ele sim diz uma prece
com seu livro de rezas na mão
como não podes mais receber a hóstia
faço tuas vezes embora não creia
mas eu já fazia isto no nosso velho casarão
- lembras-te?
eu era só o menino levado que falava a língua dos cães
e rabiscava frases que não faziam sentido
até que um dia descobri
que a vida não faz o menor sentido
por isso numa noite de julho resolvi me matar
e acordei numa casa de loucos
e pensei que a enfermeira que me pedia calma
com seu par de olhos azuis fosse um anjo
depois eu tinha a bola nos pés
depois eu tinha o mundo nas mãos
e percebi que todo gol que eu fazia era inútil
me perdoa
não tive culpa quando a poesia veio ter comigo
não sabia que isto fosse acabar em dor
mas não tive como recusá-la
me perdoa
teu menino envelheceu
criou barba conheceu mulheres chorou amores perdidos
escreveu canções nas mesas dos bares
não foi culpa minha
a poesia me seduziu criminosamente
(tenho a alma suja de sangue)
mas eu não podia dizer não
me perdoa
o ato de existir também me agride
agora
quando os teus dedos frágeis mãe batem
na porta do fim

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júlio. 5-01-10

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PRENÚNCIO DE UMA ELEGIA

3 POEMAS SOBRE O MESMO TEMA

 
1.

eu fabricava sonhos
desde pequeno eu fabricava sonhos
cresci e continuei a fabricar sonhos
um dia - por não saber nadar - morri
afogado nos meus sonhos
desde então nunca fabriquei sonhos
tornei-me um pesadelo à deriva

2.

a noiva que habitava os meus sonhos
hoje é uma sombra condenada a mofar
na solidão de um porto estrangeiro

3.

teu beijo de areia
ficou arquivado
na memória do porto

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júlio
 
3 POEMAS SOBRE O MESMO TEMA

DEUS BRASILEIRO (republicação)

 
Três epígrafes:

"Dê-me um cigarro/Diz a gramática/Do professor e do aluno/E do mulato sabido/Mas o bom negro e o bom branco/Da Nação Brasileira/Dizem todos os dias/Deixa disso camarada/Me dá um cigarro" - Oswald de Andrade, Poesias Escolhidas

"Pronomes? Escrevo brasileiro. Si uso ortografia portuguesa é porque não alterando o resultado, dá-me uma ortografia. (...) O passado é lição para se meditar, não para reproduzir." (Mário de Andrade, Prefácio Interessantíssimo, Paulicéia Desvairada)

"Chega de morrer na escravidão/Zumbi gritou/Liberdade, meu irmão!" (Vinícius de Moraes,com melodia de Edu Lobo, Zambi)

o meu deus é brasileiro
não chegou em caravela
veio num navio negreiro
de luanda de benguela

o meu deus é brasileiro
fala nagô fala tupi
pois que tupã mais olorum
por bem uniram-se num só
contra o mal do cativeiro
a mesma dor nenhuma dó

o meu deus é capoeira
e de arco e flecha também é
não é deus de brincadeira
o que alimenta a minha fé
este meu deus não é de amém
este meu deus é deus de axé

me deu sangue de floresta
e uma alma boa de tambor
fez do sofrimento festa
sem esquecer nunca do horror
do tronco do pelourinho
e do safado do feitor

o meu deus vem do quilombo
tá no chão não nos altares
não se entrega a qualquer tombo
manda tudo pelos ares
nesta terra de palmeiras
fez a história de palmares

o meu deus é deus de ginga
o meu deus é deus de jongo
foge pra lá diogo cão
mais respeito ao rei do congo

o meu deus é brasileiro
e vai do oiapoque ao chuí
é o deus de macunaíma
deus de ceci deus de peri
o meu deus é o de dandara
o meu deus é o de zumbi

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DEUS BRASILEIRO (republicação)

CANTIGA DO FUNDO DO POÇO

 
Procuro pela moeda
perdida no fundo do poço.
Não demora amanhece
e os desejos vão todos dormir exaustos.

Amigo, amiga:
- Procuro pela moeda,
mas vejo apenas meu rosto
no fundo do fundo do poço,
banhado de luas antigas,
vinte anos mais moço.

Procuro pela moeda,
Amigo, amiga...
E lá se vão vinte anos
no rastro de tantas mortes,
no fundo desta cantiga.

Procuro pela moeda
já gasta de tantos desejos:
vasculho pedra por pedra
e nem sinal da moeda
entre os escombros que vejo.

Amigo, amiga:
- Vinte anos mais moço
procuro pela moeda
no fundo desta cantiga
(cantiga dos afogados
que dormem no fundo do poço).

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júlio

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CANTIGA DO FUNDO DO POÇO

CANTO DE AMOR AO RIO DE JANEIRO, SEDE DOS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016

 
(Os Estados Unidos curvaram-se ao Brasil. O Japão curvou-se ao Brasil. "A Europa curvou-se ao Brasil." O mundo curvou-se ao Brasil. Como é bom ser brasileiro!)

a maior declaração de amor que tiveste
saiu da pena de um pernambucano
o gordo antônio maria - jornalista
cronista e compositor
que certa madrugada caiu fulminado por um enfarto
numa calçada em frente a um restaurante em copacabana
na flor dos seus 43 anos
resultado dos incontáveis croquetes e empadas
regados a generosas doses de uísque
prazerosos venenos que podem fazer mal ao corpo
mas fazem um bem danado à alma

"Rio de Janeiro, gosto de você
Gosto de quem gosta
deste sol, deste mar, desta gente feliz..." - rezam os versos do bom Maria em Valsa de uma Cidade

rio quanto não bebi do teu mar
rio amado rio
paulista que sou deixa-me chamar-te meu rio
não importa que me caia a maldição
da garoa da terra onde nasci

rio meu rio
quantos vezes meus olhos namoraram
teu cristo redentor à distância
teu cristo enormes braços abertos
convidado-nos a todos para um abraço de paz
meu pavor por altura impediu-me amar-te de perto
nunca andei no bondinho do pão de açúcar
mas conforta-me saber que o pai sempre perdoa
e abençoa o filho mesmo pródigo

lembro-me dos filés no lama's que não existe mais
amarelinho veloso antonio's
tudo é passado mas tão presente dentro de mim
o chope honesto
o luxo da vieira souto
a pobreza da favela
a beleza cheia de graça das tuas garotas de ipanema
hoje não tão garotas assim
méier arpoador barra leblon
tijuca jardim botânico
as casinhas humildes de olaria
quase todas iguais
os arcos da lapa -berço da malandragem que não conheci
o milésimo gol de pelé
saído de uma penalidade contra o vasco da gama
só podia acontecer mesmo no maracanã o maior do mundo

amo-te meu rio amo-te
amo-te mais do que o meu amor supõe
por isso rogo a são sebastião
em cujo dia consagrado comemoras tua fundação
que te guarde sempre das flechas da desigualdade
saravá são sebastião! okê odé!
por isso rogo a são jorge
teu padroeiro de fato
que te defenda do dragão da maldade
saravá são jorge! ogunhê!
por isso rogo a todos os santos e orixás
proteção a ti meu rio
saravá minha portela! águia guerreira
copacabana me engana
copacabana eterna princesinha do mar
amo-te meu rio!

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júlio
 
CANTO DE AMOR AO RIO DE JANEIRO, SEDE DOS JOGOS OLÍMPICOS DE 2016

PARA ALEXANDRE O'NEILL

 
"Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse..."

- Alexandre O'Neill, Auto-Retrato -

também bebo demais e rio-me
das penas deste purgatório - não o de torga -
que construí para mim mesmo
tenho sonhos terríveis talvez em decorrência do álcool
sonho sonhos de necrotério
ainda ontem alexandre vi meu corpo nu
deitado na morgue
acordei suando frio
fui até à janela e olhei para o céu
havia uma gorda lua cheia debochando de mim
pela manhã tive a certeza de que ainda estava vivo
olhei meu rosto no espelho
e reparei que os meus olhos estavam mais tristes
do que de costume
a puta da minha vida tem disso
as mulheres me roubam a consciência de homem
nessas horas queria ser o poodle branco da minha vizinha
come bebe ignora o tempo e ainda vive cercado de mimos
esta vida do caralho vive a nos dar bananas
agora dei de beber pela manhã
gosto do desprezo com que me olham no bar
o sofrimento pra mim é um vício que não vou largar nunca
escrevo meia dúzia de poemas e me dou por satisfeito
tenho a capacidade de morrer quando quero
mas o porteiro do prédio onde moro não sabe disso
e vive dizendo aos outros que eu sou louco
de vez em quando até sou
sempre quando converso comigo acabo em discussão
desculpe se este poema é ruim
qualquer dia lhe faço outro
com cinco doses na cabeça é impossível fazer melhor
até breve
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júlio, 8-09-09
 
PARA ALEXANDRE O'NEILL

ANÚNCIO DE PARTIDA PARA A ALBÂNIA

 
meu amor
Devo embarcar amanhã ou depois para Tirana
Não me tenhas raiva
Penso que uma temporada entre montanhas e cabras
me fará bem

não conheço a língua local
E o pouco que sei de lá
Aprendi nos romances de Ismail Kadaré

meu amor
Albânia em Albanês em se shquipërise diz
mas ignoro uma pronúncia
dizem que é um país isolado do mundo
e isto é o que mais me agrada
Não tenho a menor noção da comida de lá
nem do que se bebe por lá
Mas sei que não morrerei a fome
e nem me faltará o álcool
estou certo: alguma alma piedosa
Fome minha compreenderá
meu vício
e terá compaixão de mim
Faminto o idioma dos olhos e fala do cansaço
Mais Alto
estou sempre a pedir perdão de alguma coisa
Que não fiz

meu amor
lugares nos pequenos uma Necessidade
torna os sentimentos maiores
quero respirar o perfume
que exala das mantilhas negras
e das burcas das Viúvas Miseráveis
com elas e dividir
as lágrimas que não chorei esses anos todos

meu amor
Quero voar sobre o monte korab
dizer os poemas que nunca imaginei
com uma águia negra de duas cabeças
não te aflijas
Nenhum mal te acontecerá
Guarda este meu coração Cuidado com brasileiro
de preferência num cofre
Quando eu voltar vou precisar dele

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Júlio,
in Poemas Escolhidos
 
ANÚNCIO DE PARTIDA PARA A ALBÂNIA

A FUGITIVA

 
apresentei a ela alguns poetas
muitos já estavam mortos mas respiravam
nas páginas dos livros que escreveram
mostrei a ela como é fácil
ter uma estrela de estimação por perto
e uma lua sempre à mão
para acendê-la nas noites escuras

dividi com ela o ar
e mais ainda: levei-a até ao cais secreto
onde dormem os navios perdidos
mas não me culpo por nada disso

um dia ela foi sozinha ao cais
(conhecia o caminho e também as marés)
embarcou num desses navios perdidos
e nunca mais deu notícia

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júlio

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A FUGITIVA

UM POEMA PARA CONCEIÇÃO BERNARDINO QUE EU NÂO SOUBE ESCREVER

 
maninha eu queria te escrever um poema
um poema que não fosse triste
e que te contasse alguma memória
bobagem da infância
mas eu desaprendi como se escreve
uma bobagem da infância

eu queria só aprender a escrever...

eu queria saber contar as sílabas do teu nome
e assim te seria breve
como um soneto numa noite de natal
mas os sonetos maninha me vieram exaustos
e as noites de natal - me perdoa - não me vieram mais

meus olhos choram exaustos de mim
e eu não te quero dar as minhas lágrimas maninha
um sol poente talvez resolva o nosso caso
toma lá é teu
coloca-o na calça jeans rasgada
sai no meio da rua maninha em chinelos
ouve os sinos da igreja
pensa que eu morri

e se tiveres um tempo maninha
antes da primeira missa
reza um pouco por mim
eu faço de conta
que deus existe pelo menos em nós
anda maninha
anda reza qualquer prece por mim
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júlio

03/03/10
 
UM POEMA PARA CONCEIÇÃO BERNARDINO QUE EU NÂO SOUBE ESCREVER

DOS COMENTÁRIOS NOS SITES OU É DANDO QUE SE RECEBE

 
Confesso, é a minha preguiça o principal motivo que me leva ainda a escrever em sites literários. Não fosse ela, exceto a obrigação profissional, que às vezes obriga-me a escrever o que não gosto, eu jamais meteria uma só linha nesses espaços eletrônicos.
Antes do computador, era o papel. Papel aceitava -e ainda continua - aceitando tudo. Computador também. Pobre escrita, impiedosamente assassinada nesses sites. Não é só no Brasil, não é só em Portugal, não é só no raio-o-parta. Há que se respeitar o direito de todos. E eu respeito muito os que não têm medo do ridículo e publicam seus textos e poemas pressupondo que atingiram à perfeição de um Drummond, de um Bandeira, de um O'Neil, de uma Sophia Breyner e de outros tantos notáveis. E o pior: são alimentados por comentários insossos que não dizem absolutamente nada, terminados quase sempre com beijinhos.
Existe um site no Brasil, chamado Garganta da Serpente, onde colaboro vez em quando, que adota uma política que acho a mais correta. O autor envia seus textos via e-mail. A publicação nunca é imediata, Às vezes leva até alguns meses. Os textos, num limite de dez para cada autor, quando publicado, não recebe comentários abertos. Se algum leitor se interessar, entra em contato com a administração e esta com o autor. Caso o autor se interesse, autoriza à administração a fornecer seu endereço eletrônico ao leitor. Pronto. Se vai acabar em beijinhos ou não, a coisa não fica pública.
Estou dizendo isso porque penso que um site que se propõe a fazer e divulgar trabalhos literários não é um lugar obrigatoriamente de relacionamentos pessoais.Não que isso não possa vir a acontecer. Mas acho que ao comentar um texto deve-se comentar o texto, não o autor, que é o que menos interessa: "O autor não vale a sua obra", falou certa vez o contista brasileiro Dalton Trevisan. Explico: Ezra Pound, grande poeta, assim como o romancista Knut Hansun, era simpatizante do nazismo. Mas sua obra foi impecável. Se não compactuo com a ideologia política do escritor, isso não quer dizer que devo jogar sua obra no lixo. Pura ignorância. Borges tinha lá seus repentes fascistas. Mas foi um gênio.
Aqui neste Luso já recebi várias mensagens particulares pedindo-me comentários. Isso é grotesco. É tão humilhante quanto pedir uma esmola. Recebi da administradora de um site do qual fui expulso uma mensagem dizendo que não me comentava porque eu não a comentava. Que coisa terrível, meu Deus!
Não sei até que ponto os comentários feitos nos sites são, de fato, sinceros. Aqui no Luso, por exemplo, onde escrevo com mais frequência, sei que vigora a lei do é-dando-que-se-recebe. Tem gente que comenta até bula de remédio, esperando ser comentada na volta. Que pobreza!
Há comentários onde o nível desce abaixo do chão. Um sujeito daqui perguntou a uma autora se ela não queria ser sua amante. Pasmem!, foi verdade. Isto só pode ter partido de um doente mental. Onde está a literatura nisso? Cadê a seriedade? Outros comentários são respondidos com poemas, muitas vezes piores do que o que foi comentado.
Que me tomem por antipático ou arrogante. Que me dêem o desprezo, pouco estou me lixando.Mas prefiro pecar por ato do que por omissão. Isto ainda sem falar naqueles que vivem sempre enviando cartas abertas de despedida, mas retornam sempre no dia seguinte, atendendo a insistentes apelos de "não vá, você vai fazer falta." Quanta hipocrisia!
Gosto sempre de repetir uma coisa - estou na idade de repetir: quantidade não quer dizer qualidade. Cachaça Oncinha vende mais do que champanhe francês. E cachaça Oncinha eu já tomei. E é intragável. Queria que os comentários fossem feitos com mais critério. Mas sei que aqui isso é pedir muito.
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júlio
 
DOS COMENTÁRIOS NOS SITES OU É DANDO QUE SE RECEBE

AMANHÃ, QUANDO EU NÃO MAIS RESTAR...

 
amanhã
quando eu não mais restar
guarda o que sobrou de mim
no teu sorriso mais bonito
pensa que eu adormeci no colo
daquelas nossas manhãs azuis
quando mesmo no inverno
tudo era primavera

amanhã
quando eu não mais restar
escreve um poema de amor
sai sem dor na consciência
põe a tua melhor roupa
(de preferência aquele vestido verde
comprado para o natal)
e vai beber alguma coisa
pensando que tudo até valeu a pena
apesar dos meus muitos vícios
e poucas virtudes

amanhã
quando eu não mais restar
passeia os teus olhos nas estantes
conforma-te
sabendo que em cada livro há o toque
das minhas mãos
mesmo naqueles que eu nunca li
olha os santos de madeira
e descobre em cada um deles
o milagre que eu nunca acreditei

amanhã
quando eu não mais restar...

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júlio, 13-01-10
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AMANHÃ, QUANDO EU NÃO MAIS RESTAR...

OS POEMAS DE AMOR MORRERAM

 
os poemas de amor morreram
de falência múltipla das palavras
flores & coroas
- principalmente as de sonetos -
não devem ser enviadas

no princípio era a miopia
mas não ligaram importância
:bastava um par de óculos - não resolveu
depois veio a cegueira total & irreversível
causada pelo diabetes
:excesso de açúcar nas palavras
volta não teve mais

os poemas de amor morreram todos para o bem da poesia & dos poetas que não nasceram ainda
não foi falta de aviso
:rilke já havia alertado ao jovem kapuz
nas suas famosas cartas
a não escrever poemas de amor

os poemas de amor morreram todos
lágrimas são inúteis
os poemas de amor morreram
na mais cruel indigência
nenhum poeta apareceu para custear o enterro
nenhum sino dobrou
a quarentona desesperada não cortou os pulsos
com a lâmina de barbear do amante
que fugiu pra moscou com a engolidora de fogo de um circo-fantasma
ninguém se atirou de um viaduto qualquer
ou da sacada de um prédio de repartição pública
nenhuma adolescente se entupiu de barbitúricos com uísque ordinário

os poemas amor morreram todos
: - "In Paredísium dedúcant vos Angeli
Requiéscant in pace."(*)
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(*) Ao Paraíso vos conduzam os Anjos,
Descansem em paz." (Da antiga liturgia dos mortos, hoje em desuso)

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júlio

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OS POEMAS DE AMOR MORRERAM

ELEGIA A NÓS DOIS

 
não há ossos partidos
não há cinzas
só o frio das palavras expulsas da boca
um solo de adeus que constrange
um olhar escondido em nuvens
chuvas que machucam a memória dos livros
páginas que não lemos

não há ossos partidos
não há cinzas
só restos de alegorias sobras de carnavais
& medos
velhos pierrôs exibindo sorrisos estrangulados
olhares antigos anunciando a cegueira

sei que as malas já estavam prontas
mesmo quando a ideia de partir não havia
urubus rondavam a casa
voos incertos além muito além das asas
coelhos fugiam da cartola
para desespero do mágico

não há ossos partidos
não há cinzas
também não há remorsos presos na gaveta
a escrivaninha de cedro guarda segredos azuis
de canetas que não escrevem mais
as folhas de papel em branco
o silêncio das coisas que ficaram por dizer

não há ossos partidos
não há cinzas
não há nada
além do retrato feito a carvão
de um capitão bêbado
o cachimbo no canto da boca
o olhar sujo de quem não dorme há anos
querendo dizer que o atlântico é bem maior
do que qualquer adeus

o capitão está certo
do mar nunca se sabe
- navegar é impreciso

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júlio
 
ELEGIA A NÓS DOIS

TODA ESTA CASA...

 
toda esta casa
toda esta alma
cabem na palma
cabem na asa

todo este drama
todo este espanto
cabem num canto
qualquer da cama

o olhar ferido
do espelho corre
(quem o socorre?)

já sem sentido
só um gemido
da boca escorre

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júlio

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TODA ESTA CASA...

A CANÇÃO DO FIM (republicação)

 
há um cheiro de adeus em tua voz
há um gosto de dor em teu olhar
há uma lágrima perdida em tuas mãos
há uma distância sem fim do corpo teu
há um gesto perdido em teu silêncio
há um luto no azul desta manhã
há um ponto final sangrando em mim

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júlio
 
A CANÇÃO DO FIM (republicação)

ORAÇÃO EM FORMA DE SONETO À NOSSA SENHORA DOS INSONES

 
ó nossa senhora mãe dos insones
velai por minhas noites em claro
dai-me o sagrado som dos rolling stones
que nessas horas me serve de amparo

livrai-me da farsa do psiquiatra
o diazepan me põe transtornado
minha cabeça vai até sumatra
eu por aqui permaneço acordado

de certas leituras poupai-me também
são bem piores que qualquer remédio
porque na verdade o sono até vem

mas de tão agitado não me faz bem
é sono ruim é sono de tédio
afastai-o de mim para sempre - Amém!

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júlio, in Se eu morrer ontem ou Que se dane a festa
 
ORAÇÃO EM FORMA DE SONETO À NOSSA SENHORA DOS INSONES

DA INTERPRETAÇÃO DE POEMAS

 
"Quando se pergunta a um autor
o que ele quis dizer, um dos dois
é burro."
(Mario Quintana)

Não há nada mais pretensioso e sem sal do que interpretar um poema. Acho uma invasão ao universo do poeta. Uma tremenda falta de educação. Ora, um poema é bom ou é ruim - mais nada. Assim como a pintura, a poesia, dita a mãe das artes, é a única forma de expressão que não tolera desaforo. E isto basta.
Quando alguém, ao ler um poema meu, ousa comentar que eu quis dizer isso ou aquilo, posso até concorar, por educação. Mas por dentro me rio todo. Porque, na maioria das vezes, não quis dizer absolutamente nada. Apenas gostei dos versos ou de uma imagem que me veio - e escrevi, sem me importar com o seu conteúdo. Posso escrever um poema tristíssimo estando alegre.
Claro, em alguns poemas o sentimento está expresso nitidamente. Não é preciso interpretá-lo. Está dito. E pronto.
De minha parte, dispenso as análises acadêmicas - são chatíssimas e presunçosas. Pior ainda são aqueles que comentam por metáforas, achando genial o besteirol que acabaram de dizer ou escrever. O tal papo-cabeça. Que saco!
Vou lembrar aqui um episódio ocorrido com Carlos Drummond de Andrade, que o próprio fez questão de levar aos leitores do extinto Jornal do Brasil, do Rio Janeiro, onde mantinha uma coluna.
Alunos do curso de Letras da PUC-RJ acharam por bem enviar ao poeta um estudo sobre alguns de seus poemas. Dissecaram os versos de Drummond como um legista disseca um cadáver. Enviaram a ele um ensaio cheio de figuras de linguagem. Inavdiram o universo do autor de E Agora, José?
Drummond conta que ao acordar pela manhã levou um susto imenso. Hipérboles. Anacolutos. Metonímias. E uma pá de baboseiras mais.
"Senti-me o pior dos monstros" - escreveu o poeta, em sua crônica. "Meus pobres poeminhas. Nunca pensei em nada dessas coisas que escreveram sobre eles. Apenas achei as imagens bonitas e quis escrevê-las."
Acho que me fiz compreender. Drummond quando escreveu "no meio do caminho tinha pedra", contrariando, propositalmente, a forma dita culta, que pediria havia uma pedra, quis apenas dizer que tinha uma pedra no meio do caminho. Mais nada. Mas críticos e "comentadores" - principalmente os de sites, cujo comenhecimento de teoria literária é pra lá de precário - adoram buscar chifres em cabeça de cavalo. Como papel e tela de computador aceitam tudo, paciência.
Também não creio em inspiração. Não vou ao extremo de João Cabral de Melo Neto, que separava a poesia da emoção. João Cabral, poeta estupendo, era um neurótico inconteste. A emoção é importante, sim. Mas bem dosada, como açúcar. Em excesso, há o risco do poema sair enjoativo. Mas tenho restrições àqueles que dizem escrever o que sentem. Quem só escreve o que sente, eu sinto muito. Poesia não é divã de analista. Como disse Mallarmé, "um poema se faz com ideias, não com sentimentos." Mas dizer aqui, neste espaço, é malhar em ferro frio. Então agradeço aos beijinhos que me enviam. E sigo em frente.

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júlio
 
DA INTERPRETAÇÃO DE POEMAS

MEU VERSO...

 
"Meu verso é minha cachaça."
- Carlos Drummond de Andrade -

meu verso é capim seco
não há chuva que o console
meu verso brota do esterco
eu o bebo de um só gole

meu verso é feito de urânio
meu verso é feito de urina
meu verso é feito de esperma
meu verso é porrada no crânio
nunca sei onde começa
nunca sei onde termina

meu verso é de pouco riso
meu verso é melancólico
às vezes pode ser lírico
mas quase sempre etílico
tem alto teor alcoólico

meu verso é alma penada
a vagar pelo cemitério
cantiga desafinada
caso pra lá de sério

meu verso só não é mentira
e calmo registra em vídeo
queira ou não queira a lira
imagens do meu suicídio

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júlio,
22-01-10
 
MEU VERSO...

MINHA POESIA (republicação, com alterações)

 
minha poesia não foi educada
na escola de bilac
e nunca será convidada para o chá
dos imortais da academia brasileira de letras

minha poesia caminha descalça pelas ruas
do centro velho de são paulo
nenhum tradutor francês perderá seu tempo
debruçado sobre ela
nem será lembrada nos saraus familiares
nos dias de festas cívicas depois que a
bandeira nacional onde se lê Ordem e Progresso
for hasteada por uma menina loura

minha poesia sai de casa
todos os dias muito cedo - da favela heliópolis
pega ônibus lotado
desce pela porta da frente sem pagar passagem
e vai vender balas no cruzamento da brasil com a rebouças

minha poesia é aquela mulher despudorada
que se oferece a qualquer um sem cerimônia
se bobear assalta e é capaz até de matar
minha poesia se alimenta do lixo das palavras
podres proibidas que não cabem na boca
das pessoas de bem e por isso deve ser execrada
de todas as antologias e condenada a trinta anos de silêncio

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júlio
 
MINHA POESIA (republicação, com alterações)

O PLÁGIO DE SARAMAGO...OU NÃO

 
Não sei nem como enquadraria este texto. Seria como uma resenha de quem durante quinze anos viveu da crítica literária, só deixando de fazê-la por uma questão de ética. Não seria justo comentar alguém que exerce o mesmo ofício que eu. Mas alertei leitores, aqui no Brasil, que José Saramago, por coincidência ou não, escreveu em seu romance, Levantado do Chão, a mesma história que seu compatriota português, Manuel da Fonseca, escreveu anteriormente em Seara dos Ventos. Reparem que ambos os livros foram publicados, em Portugal, pela mesma editora Caminhos. Nada tenho contra Saramago, que inclusive tive a honra de entrevistá-lo aqui no Brasil, como repórter da revista Manchete. Como uma autora, aqui do Luso, que, aliás, respeito por ter tido a coragem de denunciar um vergonhoso caso de plágio, questiono: quem denunciaria Saramago? Quem ousaria a dizer que, ao menos para mim, a obra de Lobo Antunes, tardiamente chegada ao Brasil, é bem melhor do que a dele? Lobo Antunes é tímido, evita entrevistas, não tem o marcketing do seu par de ofício, o que não condeno. Só aproveitei a situação para levantar esta questão. Acho que poetas que preservam a boa poesia deveriam, com todo respeito, procurar ver que a obra, pelo menos em versos, de Saramago é muito ruim. E depois de Memorial do Covento -romance primoroso-, exceto Ensaio Sobre a Cegueira, nada mais ele escreveu de produtivo. A exemplo de Machado de Assis nunca devia ter escrito poesia. Seu romance Jangada de Pedra é um lixo, ele próprio me reconhceu isto na entrevista em que me deu. Alguém se levantará para dizer o contrário? Prêmio Nobel nada diz. Nem sempre é honesto, como o Oscar, no cinema.

Júlio
 
O PLÁGIO DE SARAMAGO...OU NÃO

Júlio Saraiva