AMANHÃ, QUANDO EU NÃO MAIS RESTAR...
amanhã
quando eu não mais restar
guarda o que sobrou de mim
no teu sorriso mais bonito
pensa que eu adormeci no colo
daquelas nossas manhãs azuis
quando mesmo no inverno
tudo era primavera
amanhã
quando eu não mais restar
escreve um poema de amor
sai sem dor na consciência
põe a tua melhor roupa
(de preferência aquele vestido verde
comprado para o natal)
e vai beber alguma coisa
pensando que tudo até valeu a pena
apesar dos meus muitos vícios
e poucas virtudes
amanhã
quando eu não mais restar
passeia os teus olhos nas estantes
conforma-te
sabendo que em cada livro há o toque
das minhas mãos
mesmo naqueles que eu nunca li
olha os santos de madeira
e descobre em cada um deles
o milagre que eu nunca acreditei
amanhã
quando eu não mais restar...
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júlio, 13-01-10
http://currupiao.blogspot.com/
3 POEMAS SOBRE O MESMO TEMA
1.
eu fabricava sonhos
desde pequeno eu fabricava sonhos
cresci e continuei a fabricar sonhos
um dia - por não saber nadar - morri
afogado nos meus sonhos
desde então nunca fabriquei sonhos
tornei-me um pesadelo à deriva
2.
a noiva que habitava os meus sonhos
hoje é uma sombra condenada a mofar
na solidão de um porto estrangeiro
3.
teu beijo de areia
ficou arquivado
na memória do porto
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júlio
ELEGIA A NÓS DOIS
não há ossos partidos
não há cinzas
só o frio das palavras expulsas da boca
um solo de adeus que constrange
um olhar escondido em nuvens
chuvas que machucam a memória dos livros
páginas que não lemos
não há ossos partidos
não há cinzas
só restos de alegorias sobras de carnavais
& medos
velhos pierrôs exibindo sorrisos estrangulados
olhares antigos anunciando a cegueira
sei que as malas já estavam prontas
mesmo quando a ideia de partir não havia
urubus rondavam a casa
voos incertos além muito além das asas
coelhos fugiam da cartola
para desespero do mágico
não há ossos partidos
não há cinzas
também não há remorsos presos na gaveta
a escrivaninha de cedro guarda segredos azuis
de canetas que não escrevem mais
as folhas de papel em branco
o silêncio das coisas que ficaram por dizer
não há ossos partidos
não há cinzas
não há nada
além do retrato feito a carvão
de um capitão bêbado
o cachimbo no canto da boca
o olhar sujo de quem não dorme há anos
querendo dizer que o atlântico é bem maior
do que qualquer adeus
o capitão está certo
do mar nunca se sabe
- navegar é impreciso
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júlio
TODA ESTA CASA...
toda esta casa
toda esta alma
cabem na palma
cabem na asa
todo este drama
todo este espanto
cabem num canto
qualquer da cama
o olhar ferido
do espelho corre
(quem o socorre?)
já sem sentido
só um gemido
da boca escorre
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júlio
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A CANÇÃO DO FIM (republicação)
há um cheiro de adeus em tua voz
há um gosto de dor em teu olhar
há uma lágrima perdida em tuas mãos
há uma distância sem fim do corpo teu
há um gesto perdido em teu silêncio
há um luto no azul desta manhã
há um ponto final sangrando em mim
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júlio
ORAÇÃO EM FORMA DE SONETO À NOSSA SENHORA DOS INSONES
ó nossa senhora mãe dos insones
velai por minhas noites em claro
dai-me o sagrado som dos rolling stones
que nessas horas me serve de amparo
livrai-me da farsa do psiquiatra
o diazepan me põe transtornado
minha cabeça vai até sumatra
eu por aqui permaneço acordado
de certas leituras poupai-me também
são bem piores que qualquer remédio
porque na verdade o sono até vem
mas de tão agitado não me faz bem
é sono ruim é sono de tédio
afastai-o de mim para sempre - Amém!
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júlio, in Se eu morrer ontem ou Que se dane a festa
A FUGITIVA
apresentei a ela alguns poetas
muitos já estavam mortos mas respiravam
nas páginas dos livros que escreveram
mostrei a ela como é fácil
ter uma estrela de estimação por perto
e uma lua sempre à mão
para acendê-la nas noites escuras
dividi com ela o ar
e mais ainda: levei-a até ao cais secreto
onde dormem os navios perdidos
mas não me culpo por nada disso
um dia ela foi sozinha ao cais
(conhecia o caminho e também as marés)
embarcou num desses navios perdidos
e nunca mais deu notícia
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júlio
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UM POEMA PARA CONCEIÇÃO BERNARDINO QUE EU NÂO SOUBE ESCREVER
maninha eu queria te escrever um poema
um poema que não fosse triste
e que te contasse alguma memória
bobagem da infância
mas eu desaprendi como se escreve
uma bobagem da infância
eu queria só aprender a escrever...
eu queria saber contar as sílabas do teu nome
e assim te seria breve
como um soneto numa noite de natal
mas os sonetos maninha me vieram exaustos
e as noites de natal - me perdoa - não me vieram mais
meus olhos choram exaustos de mim
e eu não te quero dar as minhas lágrimas maninha
um sol poente talvez resolva o nosso caso
toma lá é teu
coloca-o na calça jeans rasgada
sai no meio da rua maninha em chinelos
ouve os sinos da igreja
pensa que eu morri
e se tiveres um tempo maninha
antes da primeira missa
reza um pouco por mim
eu faço de conta
que deus existe pelo menos em nós
anda maninha
anda reza qualquer prece por mim
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júlio
03/03/10
DOS COMENTÁRIOS NOS SITES OU É DANDO QUE SE RECEBE
Confesso, é a minha preguiça o principal motivo que me leva ainda a escrever em sites literários. Não fosse ela, exceto a obrigação profissional, que às vezes obriga-me a escrever o que não gosto, eu jamais meteria uma só linha nesses espaços eletrônicos.
Antes do computador, era o papel. Papel aceitava -e ainda continua - aceitando tudo. Computador também. Pobre escrita, impiedosamente assassinada nesses sites. Não é só no Brasil, não é só em Portugal, não é só no raio-o-parta. Há que se respeitar o direito de todos. E eu respeito muito os que não têm medo do ridículo e publicam seus textos e poemas pressupondo que atingiram à perfeição de um Drummond, de um Bandeira, de um O'Neil, de uma Sophia Breyner e de outros tantos notáveis. E o pior: são alimentados por comentários insossos que não dizem absolutamente nada, terminados quase sempre com beijinhos.
Existe um site no Brasil, chamado Garganta da Serpente, onde colaboro vez em quando, que adota uma política que acho a mais correta. O autor envia seus textos via e-mail. A publicação nunca é imediata, Às vezes leva até alguns meses. Os textos, num limite de dez para cada autor, quando publicado, não recebe comentários abertos. Se algum leitor se interessar, entra em contato com a administração e esta com o autor. Caso o autor se interesse, autoriza à administração a fornecer seu endereço eletrônico ao leitor. Pronto. Se vai acabar em beijinhos ou não, a coisa não fica pública.
Estou dizendo isso porque penso que um site que se propõe a fazer e divulgar trabalhos literários não é um lugar obrigatoriamente de relacionamentos pessoais.Não que isso não possa vir a acontecer. Mas acho que ao comentar um texto deve-se comentar o texto, não o autor, que é o que menos interessa: "O autor não vale a sua obra", falou certa vez o contista brasileiro Dalton Trevisan. Explico: Ezra Pound, grande poeta, assim como o romancista Knut Hansun, era simpatizante do nazismo. Mas sua obra foi impecável. Se não compactuo com a ideologia política do escritor, isso não quer dizer que devo jogar sua obra no lixo. Pura ignorância. Borges tinha lá seus repentes fascistas. Mas foi um gênio.
Aqui neste Luso já recebi várias mensagens particulares pedindo-me comentários. Isso é grotesco. É tão humilhante quanto pedir uma esmola. Recebi da administradora de um site do qual fui expulso uma mensagem dizendo que não me comentava porque eu não a comentava. Que coisa terrível, meu Deus!
Não sei até que ponto os comentários feitos nos sites são, de fato, sinceros. Aqui no Luso, por exemplo, onde escrevo com mais frequência, sei que vigora a lei do é-dando-que-se-recebe. Tem gente que comenta até bula de remédio, esperando ser comentada na volta. Que pobreza!
Há comentários onde o nível desce abaixo do chão. Um sujeito daqui perguntou a uma autora se ela não queria ser sua amante. Pasmem!, foi verdade. Isto só pode ter partido de um doente mental. Onde está a literatura nisso? Cadê a seriedade? Outros comentários são respondidos com poemas, muitas vezes piores do que o que foi comentado.
Que me tomem por antipático ou arrogante. Que me dêem o desprezo, pouco estou me lixando.Mas prefiro pecar por ato do que por omissão. Isto ainda sem falar naqueles que vivem sempre enviando cartas abertas de despedida, mas retornam sempre no dia seguinte, atendendo a insistentes apelos de "não vá, você vai fazer falta." Quanta hipocrisia!
Gosto sempre de repetir uma coisa - estou na idade de repetir: quantidade não quer dizer qualidade. Cachaça Oncinha vende mais do que champanhe francês. E cachaça Oncinha eu já tomei. E é intragável. Queria que os comentários fossem feitos com mais critério. Mas sei que aqui isso é pedir muito.
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júlio
ELEGIA OU UM CANTO DESAFINADO
para os meus amigos xavier zarco, josé félix, domingos da mota e eduardo roseira, dedico. para fabrícia muniz, consagro, acima de tudo, pela fidelidade de sempre.
esta manhã que me tinge os olhos
não é uma manhã comum
não é uma manhã qualquer
há uma lâmina na minha garganta
como querendo calar a um grito
não sei se um vômito
sim - vomitaria numa madrugada qualquer
como se eu fosse um bêbado escroto de rua
não faria os sonetos que fiz
e cagaria na calçada da rua onde moro
pouca importância dou nesta hora ao polícia
que me venha prender por ato obsceno
nasci obsceno
nesta madrugada eu calaria as luas todas que colhi
e apagaria todos os sonetos inclusive os que não fiz
faz frio em meu país
faz gelo em minha liberdade
(o ato de criar pouco importa aos outros
ainda mais quando nos cortam a voz como se a censura valesse alguma coisa ou merecesse respeito)
:na escuridão do quarto um poeta resiste e canta
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júlio