A aposta
A aposta
Já eram 23 horas. O dono do boteco, o Sr. Cazuza, era um velho barrigudo, de olhos injetados, metido a valentão. O boteco, Porta Aberta, famoso por se manter aberto nas 24 horas do dia, era parede e meia com o muro do único cemitério da cidade e ponto de encontro predileto dos coveiros, dos zeladores e por que não dizer, até do padre, exclusivo encomendador de almas, que vez por outra, ancorava seu corpanzil balofo no fedorento quiosque para dar umas beiçadas, “matar o bicho”.
Joaquim, o coveiro mais velho, há mais de 20 anos que sepultava cadáveres, encostado no balcão encardido pelo sebo dos tira-gostos, puxa conversa:
- Eu entro nessa porcaria aí, apontando para o portão do cemitério, na hora que eu quiser. Aliás, eu nem sei para que muro em cemitério, pois quem está morto não pode sair, e quem está vivo não quer entrar...
- Já estás bêbado Joaquim, respeita o campo santo, deixa de falar heresias, responde Totonho, o outro coveiro.
- Deixa de ser besta, campo santo, que nada. Aí dentro, só tem o que não presta. Ladrão, criminoso, viado, corno, puta... Isso aí é uma podridão, um baú de ossos malditos, replica Joaquim.
- O que é isso, Joaquim, não tens medo de ir para o inferno, falando essas besteiras, intervém Jacinto, outro coveiro, já meio alcoolizado.
- Que inferno que nada. Não existe inferno, cara, responde Joaquim, se enfezando.
- Estás é valente hoje, hein Joaquim, retruca Totonho.
- Me diz, tens coragem de ir à cova do Apolinário, provoca Totonho.
- Vou, e ainda cago em cima da tumba dele, responde Joaquim, com os olhos injetados de sangue.
- Te esconjuro Joaquim, tu estás endemoninhado, te esconjuro, repete Totonho, fazendo o sinal da cruz.
Apolinário era um criminoso conhecido, famoso nas redondezas. Matava por crueldade. Mais de vinte mortes nas costas. Por último, tinha matado o pai e a mãe na sexta-feira da paixão, por conta de 33 reais.
Linchado pela população no mesmo dia, foi enterrado como um bicho bruto. Joaquim foi quem jogou a última pá de terra naquela massa de carne ensangüentada, não sem antes de dar uma pazada na cabeça do defunto.
Um vulto alto, envolto numa capa negra, aproxima-se do balcão do quiosque do Cazuza. Chama o dono pelo nome.
- Senhor Cazuza, põe uma cachaça para mim. Pode encher o copo. O velho Cazuza levanta os olhos procurando ver o rosto do estranho, mas a vista já é não tão boa e a luz não ajuda. Serve ao homem de negro, que vira o copo de uma talagada só.
Totonho pergunta ao Joaquim, de chofre:
- Joaquim, tu tens coragem de ir à cova do Apolinário, agora?
Joaquim se engasga com a farofa de torresmo. Tossindo brabo e angustiado com a falta de ar, responde sofregamente, soltando golfadas de farofa no rosto dos amigos.
- Vou sim, não tenho medo de alma, nem da morte.
O homem de negro aproxima-se. De capa aberta, mostrando em sua cintura o cabo reluzente de um facão, com uma voz gutural, entra na conversa...
- Eu dou 500 reais, e apontando para a sua cintura, para quem enfiar este facão na tumba de Apolinário. Os três coveiros se entreolham.
- O senhor dá 500 reais, para quem..., pergunta Joaquim.
- Dou e ainda empresto a minha capa para quem for, para se proteger do frio. Joaquim não se fez de rogado.
- Eu vou. Passa o facão e a capa.
O homem de negro despojou-se das peças, entregando-as a Joaquim.
Como em um cortejo fúnebre, silenciosos, os homens seguem Joaquim já vestido na capa, com facão em punho, como se fosse uma vela de cromo. Ao chegarem ao portão do cemitério, Joaquim se volta e sentencia:
- Aguardem-me aqui, volto já.
O relógio do dono do boteco emite um assovio fino. Meia-noite. Um frio percorre a espinha dorsal daquelas figuras negras, postadas na frente do ossuário. O homem de negro ri baixinho, sinistramente.
Joaquim ultrapassa o portão de ferro, sendo engolido pela escuridão que envolve a cidade dos mortos. Longos cinco minutos se passam. De repente, um grito ecoa dentro da terra santa. Um grito seco, rápido.
- Aaaaaaaaah...
Todos correm, atabalhoadamente, à procura de suas casas. Com passos calmos, precisos, o homem de negro sai à procura da tumba de Apolinário. Estendido no chão sebento, todo escavacado, jaz morto Joaquim com as botas esfoladas, de peitos para cima, olhos esbugalhados, boca escancarada, como se ainda tivesse algo a dizer. O homem de negro o emborca com a ponta da bota. Abaixa-se e retira, calmamente, o facão que está cravado na tumba de Apolinário, prendendo a capa e a vida do coveiro.