A POETA
Poeta é aquela que entende
uma história por contar;
E vê na coisa acabada,
mil coisas a começar.
Constrói o mundo, de nada
quando se quer entregar.
Poeta é aquela que rende
tributo à causa perdida;
É outro sonho, outra vida;
É outra forma de estar.
E nem sequer se arrepende
do espanto que anda a causar!
SILÊNCIOS
Quando no olhar da gente, a gente sente
que vislumbra a eternidade num segundo
é que a gente se dá conta, de repente,
dos assombrosos silêncios deste mundo
E quando, no silêncio, um som estridente
e atroz, que tergiversa sim o não rotundo,
Melhor fora que desejasse estar ausente,
ou num buraco negro, bem profundo.
Fora só a voz da pele, a que pressente
que o instante é um ventre infindo e fundo...!
Fora só sereno e longo, e toda a gente
calaria a voz própria, pois mais fecundo
é o pulsar mudo do grito, na mão-semente
que o rasgar fácil da terra, no roubo imundo.
Sterea/sfich
Cai o Carmo e aTrindade
Pergunto ao povo que passa
como passa o meu país...
Passa triste e quando passa
passa calando a desgraça
e Alegre, nada me diz
De voz grave e colocada
passa em revista o país
Não percebi quase nada!...
E a vós, o que é que ele diz?
- Cai o Carmo, a Trindade,
o cravo e a baioneta;
Já caiu a liberdade
por não haver igualdade
no socialismo da treta -
Mas há sempre uma luzinha
no túnel (quanto a mim)
e uma esperança teimosinha
e nem sequer levezinha...
Há sempre alguém que diz sim
sfich
fragmentos de Pessoa
A gente lê Pessoa
e pensa em descrevê-lo:
pegar na meada e no novelo
e, se não encontra pontas, retorcê-lo;
ousar até pensar esquecê-lo
ou desfazê-lo em pedaços por Lisboa…
mas não resulta coisa boa
por se tratar de Pessoa.
A gente, por ser pessoa,
nunca pensa em como sê-lo,
julga sempre percebê-lo,
por papel, destino e selo:
mas quer eu, tu ou Pessoa,
quer no Porto ou em Lisboa...
somos só
as pontinhas do novelo.
tripeiras e alfacinhas
bem atadinhas com zelo
vai de juntar as pontinhas
para enredar mais o novelo
Sterea/Sfich
Rio Douro
À FLOR DAS ÁGUAS
Já fui rabelo sem leme
nas águas à flor do Tejo,
agora nau que não teme
o naufrágio de um desejo
Navego no Douro
que esconde o tesouro
da coisa sentida!...
em socalcos-vinhedos
que suportam segredos
em esteios de vida
Nas amendoeiras
das flores primeiras
apesar do frio
se sente o zumbido
do néctar colhido
e o silêncio do rio.
Aí se pressente
quem segue a corrente
pelo tom de voz;
Se no olhar da gente
há caudal bastante:
É nascente e foz
sfich
O Larápio
Aquele que diz ter comprado
o que adquiriu roubando
adora parecer honrado
para iludir o desgraçado
mas já foi chefe de bando
Anda de dorso curvado
a roubar o sol ao chão
num gesto há muito estudado
para esconder o mau olhado
dos seus olhos de ladrão
-Tu não sabes mas eu digo-
Diz ele, com seu ar matreiro...
Aleivoso, trapaceiro,
mais sinistro do que o perigo,
sempre a fazer-se de amigo,
no seu jeito traiçoeiro.
Quando for a enterrar
irá de algibeira lisa;
Os sinos a repicar
é que nos irão dizer
que o gusano não precisa
de ser pago p'ra comer
Carta de Lisboa
Chegou carta muito bela
que me fala de Lisboa
e traz impressos em tela
uma flor de Florbela
e um girassol de Pessoa
De flor vermelha ao peito
a ternura de quem sente
que há sempre um verso perfeito
num sorriso atraente
Anda cá poeta Ary
anda, anda lá daí
que a tua voz ainda ecoa
navegando por Abril,
nas tertúlias, com O'Neill
e Carlos do Carmo em canoa
Anda cá poeta Ary
vem de cravo na lapela
volta, passa por aqui,
canta de novo Lisboa
sorri outra vez p'ra ela
que Lisboa em verso e prosa
ou numa tela qualquer
tem o «candor duma rosa»
e o encanto de mulher!
Poetisa lusa
Tem na voz o travo de poeta...
Que não levanta o tom para se ouvir;
Ajusta quase sempre a frase certa
À frequência certa e pura do sentir;
Às vezes, vence a inacção e fica alerta
Descobrindo na textura que há-de vir,
O âmago que a impele à descoberta...
Se é Cristal, vislumbra-o em parte incerta, sem partir
«amiga maior que o pensamento»
No espaço, na interferência
infinitamente fraquinha,
sinto a minha consciência;
que apenas sei que ela é minha
se mexe nos corações...
Mas digo-o com alegria
porque sei quem a elegia
a melhor das dimensões!...
Espaço-Tempo
Predicados meus para quem os lê
Como convém em dois segundos
Lá porque não gosto de gerúndios
Imperfeitos não é coisa que se dê
Imperativo oferecer a toda a hora
Presentes pró futuro por que não
Se o pretérito esquece ou se ignora
Infinito é espaço-tempo e condição
Aqui se insinua uma síncope fingida
Ali vem a hipérbole sempre exagerada
Ocupando lugar da síntese prometida
Naquela frase quase toda rasurada
Pontuação p'ra quê se a coisa lida
Se esfumou na semântica ignorada