Poemas, frases e mensagens de fcsguimaraes

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de fcsguimaraes

BALADA DE UM TEMPO TRISTE

 
Era um lindo lugar
Entre o ventre a calma do dia
Assegurava um sol de verão - harmonia
E chegavam aos olhos a meiguice dos folhos
Sobre a carne …carne macia
Vão luzir as estrelas e à noite vou vê-las
Fantasias…fantasia.

É tão certo eu estar aqui
Bem me lembro que vivi
Dou ao traço a freguesia
Com uma tinta carregada
De mudança consumada
Sem estação
Nem maneiras…

Aguento bem cada balanço
Nunca espero o que alcanço (e o que não)
E por isso saí da minha vida
Como nódoa um tanto enraivecida
Estão chizatos e navalhas
Que ainda vão cortar-me ao calhas
Pela tua MÃO!
 
BALADA DE UM TEMPO TRISTE

Á toa ninguém deve falar

 
Aproveitar essa mulher que se perdeu
Esse gozo da palavra prometida
Que trazia as viagens sonhadas!
Inacabada... assim te vi debruçada
Escrevias com a fronte em consonância
Um sincero poema de falésias.

Como não amar esse folículo verde
De verdade prometida e esperada
Nunca esqueci jamais tal fronteira!
O interior de mim agora existe
Porque os teus bordos me guardam
Com massa pastosa consistente!

Amei-te daí para cá...
Mesmo que os meus poemas fossem prás moscas!
Não pude contar mais os dias nem fazer projetos
Porque a tua imagem não se desvanece!
Esquece-a! disse-me a voz plural da amizade
E eu achei que à toa ninguém deve falar!

Disseram que morreste na tua casa junto à Sé
Espraiada à tarde na varanda branca
Que a tua família de tempos a tempos restaura.
Choraram-se lágrimas muito sentidas
Debalde te disseram bonita e boa
E eu achei que à toa ninguém deve falar...
 
Á toa ninguém deve falar

Amo-te

 
Quero que saibas
Que o mundo não é sincero
E os poemas sobre rios e fontes sendo lindos
Não atingem as praias destes dias.

Quero que saibas
Que o teu coração é óptimo
E que é próprio deste mundo
Zombar dele em algumas tardes de sol

Quero que saibas
Que se afasta de ti o vento que passa
No teu rosto de pobre animal
Levando o teu cheiro pelos mirtos

Quero que saibas
Nem sempre é doce o teu sabor
Nem sempre é amistoso o gesto
Que faz de ti uma verdade.
 
Amo-te

Fiz uma cruz

 
Quando julguei que cabia uma cruz, comecei por invadir aquele espaço com um singelo e débil ponto final. Existia tinta na minha esferográfica, isso era um dado muito importante para avançar. Ousei meter aquela mão hábil no bolso – é claro que antes postara a caneta por sobre a mesa – e, obstinadamente, iniciei um tamborilar de dedos que mais tarde (vim a saber) se revelaria um tanto ou quanto desafortunado. Logo que libertei a mão da algibeira notei que os meus níveis de confiança estavam altíssimos, fenómeno que não pode deixar indiferente todo aquele que está habilitado a adivinhar os indícios de uma depressão. Contudo, como o ar estava sereníssimo e a luz da manhã arremetia violentamente com todo o seu potencial era bastante desculpável que eu tivesse pensado que…
Retomei a caneta, visei o papel, agora com uma surpreendente tranquilidade e sem qualquer tipo de escrúpulos avancei para o quadrilátero que se postara à direita da letra L… e também abaixo da letra T… julgo recordar-me que havia ainda por sobre a quadrícula uma ilustração onde arvorava, é quase certo, um rapazinho moreno a fugir de um cão… incrivelmente branco!
E foi nestas circunstâncias que arremeti contra o papel timbrado, risquei uma linha oblíqua, depois arrisquei uma outra que lhe era perpendicular e nesse instante senti que, uma vez que os quatro vértices do quadrilátero haviam sido tocados, uma vez que os dois traços contínuos estavam já lá e ainda por cima se cruzavam no centro imaginário do coiso… e os dois com a mesma cor…
Estava feito o negócio ou qualquer outra coisa que com ele eu o confundi. Guardei a caneta (era minha) no bolso (que ainda era meu) e resvalei para um átrio bem próximo onde duas pessoas conversavam sobre o aumento das despesas com a electricidade. A luz do dia estava cada vez mais forte e só naquele momento repararei que trazia no punho direito o relógio que afortunadamente a minha mãe me oferecera um pouco antes da hipoteca… Ato contínuo olhei para o pulso esquerdo como que antecipando o movimento que se seguiria, ao mesmo tempo que com essa mesma mão já programara a retirada do relógio do pulso errado. O que aconteceu a seguir, falta-me agora aquela caneta para o relatar, mas escrevo-o com os dedos que ao dia de hoje me sobraram. Ao mesmo tempo que divisei o relógio no meu pulso habitual tacteei, no pulso direito, uma enorme protuberância quistosa na parte dorsal do braço por debaixo da manga branca daquela amaldiçoada camisa. O que me parecera um relógio veio a revelar-se um repugnante e assustadiço inchaço amarelo, de grande relevo, muito parecido com um botão colorido de flor ou então com aqueles típicos chapéuzinhos de palha daquelas meninas do campo que…
Era um tumor muito atípico, pois à medida que nele remexia, ele tinha a faculdade de se amoldar a todos os movimentos dos dedos (independentemente da força de compressão aplicada). E não doía nada, o magano! Como que se infiltrasse por debaixo de todos os outros tecidos biológicos, ou então deixo aqui a hipótese de que o mesmo tinha a possibilidade de permear por entre todas as células e ossos. Certo é que se espalhava como às vezes se espalham as cócegas… quando são bem feitas!
Ri porquanto ao mesmo tempo observava e experimentava com avidez a natureza daquela esquisita tumefacção. As pessoas da electricidade olharam-me, não sem um certo choque inicial e logo lançaram o olhar por todo o átrio, desconfiadas à brava, como o fazem todas as pessoas sérias que são surpreendidas por um acontecimento totalmente inesperado. Aproximei-me dessas duas pessoas e elas mesmas como não mirassem nenhum olhar cúmplice ou algum trejeito consolador, resolveram transferir a sua cismada conversa tarifária para um qualquer local bem longe de mim. Talvez me tenham tomado por uma daquelas andrajosas criaturas que exibem falsas chagas nas sombras dos edifícios públicos e que em dias de muito sol se atrevem mesmo a importunar os outros cidadãos em certos locais respeitáveis mas de fácil acesso. Nem tive tempo de ripostar, pois uma já prolongada série de risadas sufocadas atravessou-se-me pelas cordas vocais e todo aquele meu espanto não foi freio capaz de travar tal involuntária algazarra.
- Por que se ri senhor? – Inquiriu, solícita, a voz acriançada de uma velhota carregada de cartões. – Não quer aproveitar a sua boa disposição e contribuir para… - não acabou a sua frase e saiu afastando-se de mim com um perplexo nojo.
- Espere…eu…- ia dizer-lhe que tinha duas moedas de vinte cêntimos e talvez, se a causa fosse… poderia contribuir de bom grado…
Abri os braços procurando mostrar veemência e ao fazê-lo cessou-se-me a tirania das cócegas e pude por fim entabular uma questão (que já me sufocava a garganta) ao primeiro funcionário que apareceu. Este olhou-me, indiferente, como o fazem a maioria dos burocratas nas suas entrevistas com o público, e cuspiu-me um muito desagradável e monocórdico: - Que lhe aconteceu? – Ia eu a responder e já ele se afastava ritmado dizendo: - Xiiiii… o que lhe aconteceu…
-O secretário? – gritei. – Não viu o secretário?
Quem, caros leitores, encontrar na sua vida uma qualquer situação com grande verosimilhança com esta minha… deverá, uf… não, não digo já! O vilão, crápula desta vida, apressou depois o passo num solilóquio monocórdico e chiante e por um momento apeteceu-me levar a mão ao bolso da caneta e…
Efectuei, diligentemente, com a serenidade possível, uma busca exaustiva pelos corredores e compartimentos acessíveis, na esperança vã de encontrar o tal secretário que me…Mas quê? Nunca ele. Misérias, apenas e só misérias: “não o vi”, “acabou de sair”, “ainda estive com ele ontem ao telefone”, “mas sabe, talvez possa encontra-lo na…”, “passe por aqui mais logo”. Comecei a sentir cócegas muito mal feitas na zona pulso (tinha entretanto apertado de novo o punho da manga da camisa). Era certo que o tumor havia crescido e se lançava imberbemente de encontro à manga já húmida.
-Estão agora a chegar umas coisas importantes. O senhor não pode estar aqui! – ouvi estas palavras repetirem-se por duas ou três vezes e só depois verifiquei que tinha o meus rosto colado a uma janela envidraçada de onde se avistavam, num amplo compartimento, largas pessoas em desalinhado burburinho. Eram tantos os papéis; inúmeras as canetas - essas espalhavam-se pelas mesas atoladas ou então apresentavam-se eriçadas no interior de objectos cilíndricos dispostos por sobre as mesas. E adivinhavam-se tantos bolsos! Tinha a cabeça em tal frenesi que já não me lembrava das palavras com que nomeavam as coisas. Nada fazia sentido. “Se também tu tivesses guardado assim a tua caneta…Agora num bolso!… Aprende pois!” A minha modorra continuou. Vieram uns sujeitos com uniformes de oleado florescente, se a memória não mente. Disseram-me: -Não pode estar nesta zona exclusiva! Venha connosco! Já! - Afastaram-me tranquilamente e eu só pude sentir um orgulho amplo de não ser como eles. O tumor, a caneta, os papéis, a camisa húmida, o relógio verdadeiro, aquela cruz bem intencionada, até a tinta… “Onde foi que falhei! Não, não é possível. Eu fiz tudo bem” foi isso que pensei. E recomecei a sorrir sem interrupção alguma (ALGUMA repito) até ao dia de hoje.
Neste momento escrevo, por isso, a sorrir, frente ao computador que ainda me resta com os poucos dedos que… ainda me sobram…
Nu, descalço, sem bolsos, sem caneta, sem camisa, relógio parado na casa hipotecada sem móveis e sem mãe (que Deus a guarde – sobretudo nestes primeiros dias). Hoje vêm cortar a electricidade cá de casa. Bem tinham razão aqueles dois interlocutores – como ela está cara! Antes que isso, porém, aconteça, vou acabar este conto no meu computador. Desculpem mas não o vou guardar em nenhuma pasta. Para quê?!
Aquele quadrilátero branco… as referências do L, do M, do cão branco… Já não existem…Interrompendo a parede o mesmo quadrilátero na minha parede…Não um ponto de experimentação, mas dois, e muito bem definidos. Hoje os homens vêm desligar a electricidade. Vêm desocupar aqueles pontos para mim.
Retiro o cabo do computador da ficha. O texto word perde-se no escuro do ecrã e portanto, para vocês, a minha história acaba aqui.
A mim, apresentam-se, inéditos, dois buracos surpreendentemente belos e simétricos – dois pontos finais nada titubeantes nem experimentais e de um alinhamento tão conveniente... Uma afirmação plena de um quadrilátero cheio de vida. Com dois olhos!
Diviso em meu membro direito canceroso apenas dois dedos. Eis o secretário, finalmente o secretário com seus dois olhinhos bem escuros e melíferos. É com esta mesma mão que te vou foder o focinho!
 
Fiz uma cruz

Agulha no palheiro

 
Acabaram-se as ideias feitas sobre o amor
Os aromas vastos das flores misturam-se mal
Suas cores temem os velhos sentidos

Termina hoje a liberdade geral do gosto
Os paladares agonizam com terra nas bocas
E o chapéu de um velho passa perto e assobia

As ideias da imaginação fincam pé na greve
Associam-se à toa e logo se perdem tão vagas
Como os tremoços e as cervejas à tarde

Há milhares de horas que já temem a pobreza
Indigentes relógios marcham em direcção à oficina
Onde mãos truncadas arremetem um pobre restauro

Tempo escrito e digital, ideias fiscais
Matéria binária, reclamo formal
Que fizestes vós das aparas da vida?

As marcas prosperam nas vitrinas frontais
Suas madeixas refulgem nos olhos enganados
Como um vício novo com suas promessas

E neste cortejo o meu amor por ti prospera
Respirando palavras, recitando a brisa, entontecido
Eu te encontro, de pé, na multidão em sangue.
 
Agulha no palheiro

No olhar da minha sobrinha

 
No olhar da minha sobrinha eu vi
O primeiro livro aberto do dia
Não trazia nenhuma propaganda
Nem afastava uma esperança que fosse.
Era um poema assim tão forte e lúcido
Um resgate sublime de um sonho querido
Mas tão isento e íntegro que afinal
Me fez acreditar que posso acabar bem
Esta cumplicidade estranha que extravaso.

E tudo isto minha sobrinha me ensinou
Não foi preciso pedir nem insinuar nada
Bastou-me ficar ali a olhar para ela
Sem ter medo dos horários e das tarefas
Que governam os homens como eu.
Quando os seus olhos choraram eu percebi
Que os bons momentos de uma vida
Começam e acabam sempre no olhar sincero
Com que se despe às vezes a alma humana.
 
No olhar da minha sobrinha

Sem abrigo

 
Que se cumpra sempre o acordar
Pelo monólogo cacarejo da alvorada
E que de mais um nado vivo ao chorar
Ecoe a vida para esquecer o nada

Por muito que a madrugada anoiteça
E que no seu colo acolha o pano azul do dia
Sabe-se que há sempre alguém que adormeça
No relento esquecido de uma noite fria

Os jornais já lidos e abandonados
Com histórias vadias roubadas ao chão
São panos de seda bem bordados
Enrolados no corpo de um antigo chorão
 
Sem abrigo

Eusébio da Silva Ferreira

 
Pelados de Mafalala para corridas rápidas
Triunfo alvo reluzindo no atraso dos jornais
Pela causa redonda do couro impermeável
Mas vermelha era a carne e o teu destino
Que se antecipou à guerra em contramão
E isso bastou para que partisses.

Receberam-te triunfadores do balneário
Sr. Águas e Sr. Coluna, essa espécie de padrinho
E a ilusão com sua grossa voz nomeou-te.
Os golos consagrados já cantavam em lusitana voz
Eusébio! Depois Eusébió! Ainda Euseibiu!
E defronte “La Saeta Rubia” e o “Major Galopante”.

Eram eles que ali estavam no teu balançar das redes
Tua força a arremeter em divinas portas
Vitória! A Europa branca a teus negros pés!
“Pantera negra” gritou-se na origem dos jornais.
E no fulgor da glória que perdeu muitos homens
Um gesto instintivo de memória pelo ídolo já igual.

Benfica! Portugal! Palavras então tão badaladas
Na “pop culture” cerrada dos anos sessenta
Catadupa de finais, bola e botas de ouro,
Todo um símbolo de um Portugal triste e em guerra,
Que te acreditava como a um king magnânimo
Que não esqueceu nenhum sorriso português.

Com as quinas ao peito foste o magriço eleito
Para desfazer em prol dos nossos heróis
O equilíbrio de contendas bem difíceis.
Pela honra de casas que só dispunham de sardinhas
Desagravados de Coreias e lágrimas, vinham as alegrias
Que o tempo das velocidades não pode esquecer

Pudesse um homem parar todas as guerras
Diminuir o esplendor vaidoso dos impérios
Adocicar o fragor competitivo em olimpismo puro
Então esse humano serias tu, um deus do “fair play”
Os relatos dos teus jogos adiavam os combates
Nos olhos dos soldados a esperança de voltar a ver-te.
 
Eusébio da Silva Ferreira

Não sei o que dizer

 
Terei sido eu que perdi quando me disseste adeus?
Na gula da praia pisavas já o vómito das marés
E ao longe endossavas bocados de pão aos míseros dos peixes
Quando uma ave migrante acudiu até à duna morta
Dizendo sim às palavras que são mais do que a areia

Essa ave louca parecia-se no olhar àqueles velhos profetas
Que assustavam os animais dos montes com gestos veementes
Porém suas orações instalaram em mim uma cordial compaixão
Abri os braços e tentei comunicar mas logo ela se sumiu
Na direção daquela que entretinha o passo no bulimento

E então a ave e a mulher fizeram-se unha e carne
O sorriso de uma transmutou-se numa cadenciada compreensão
A ave lançou-se num tributo picado, fez nascer um riso estridente
O lodo castanho foi mais que o azul do mar
Nenhum peixe escapou, seus bocados semi-digeridos eram já dedos

Os teus dedos, as minhas penas, a nossa praia
O sol leitoso unindo a distância, uma mensagem
Ainda me amas secreta sereia? Não falo eu já tarde?
Subimos de mais, a costa é grande, amor
Vê como demorou o vento, vê como foi longa a espera...
 
Não sei o que dizer

É menos difícil ser flor

 
Até toda a flor velha que o tempo despreza
Poderá um dia resgatar do jarro a sua beleza
E com o arrastado fulgor do viscosa floema,
Selará no seu caminho um espantoso tema.

Por aqui julgo eu com desditoso desdém
Abominar os meus passos por sabê-los aquém
E nem por isso encontro um mais certo prumo
Que faça de mim homem, arte, graça e rumo.

Mas a sujeira do ar que à força de ser poeira
Tão bem recobre as ajudas de complacente cegueira.
Entranha-se o engano no pavilhão do meu ouvido
Com o faustoso diploma de um curso sem sentido.

Atravessei sempre às cegas os caminhos importantes
E as minhas convenções, por certo, beligerantes
Atascaram na desorientação, em esperança pecaminosa,
Os belos dias daqueles que aceitaram minha rosa.

Porém a mim próprio também eu feri certeiro
Como o inocente animal que se coça em cativeiro
E adiantei à dor um espantoso grito
Que aqui assim cantado não parece tão aflito.

Num transe inconsciente, em espontânea sessão
Caiu de borco, desamparada, a minha certa razão.
Uma tenaz vontade feriu minha carne passageira
E logo algum purpuro sangue foi libado à minha beira.

Estava agora em densa selva, sem vestígios de metais
Vários cacos de cerâmica ali se faziam reais
Vivaz máscara assimétrica ao meu rosto prometia
Fazer jorrar todo o sangue que ainda em mim corria.

Até um chefe tribal eu podia então tolerar
Uma língua morta a falar, uma voz gutural a cantar,
Então um grito, vagido bem animal, despertou logo os sentidos
E vi uma árvore rara e seus frutos não comidos.

Maravilhado em tão espantosa exceção, derivei,
Enleado por uma nova promessa, como se fosse rei
Imaginei um altar no sol intermitente desta peça
E num batismo de mil seivas, meu coração andou depressa.

Porém, pouco depois, o crepúsculo já se anichara
No velho mundo do conceito e da tola ideia avara
As exigências da noite próxima faziam já seu murmúrio
Escudadas em tradições dos que escrevem todo o augúrio.

Por sorte adormeço bem, assim em suave levada
Mas logo assoma um barco aflito em sua capital jornada
É pesadelo agitado que eleva as vagas aos argonautas
Já então estes gritam palavras roucas de incautas.

Línguas de Babel pois só seus olhares entende o peito
Lançam chispas obstinadas num cirandar contrafeito
Surge a espuma enluarada como rosto acusatório
Canta os Fados do destino, com acordes de velório.

A embarcação já vencida, singra bem longe da gente
Clamores e braços traduzem um medo forte e presente
Tanto que a solitária agonia e a luz vertical que a secunda
Iluminam e aquecem a parte da alma mais funda.

Cada homem sente-se só, com absoluta indiferença
Pelos náufragos vizinhos dessa boca de inclemência
Meu corpo partilha, ele próprio, de tão caloroso festival
E a rúbrica definitiva, descobre o meu código postal

Tal tormento terminou quando me dei em pensar
Nos meus que cá ficariam sem meu corpo para velar
Assim a dor física deixou-me, mas ao mesmo tempo agora,
São amargos os lamentos que se servem nesta hora.

Mas o que vem a ser isto?! Tal enredo é falaz!
Sem pais, irmãos, nem mulher, não tenho rapariga ou rapaz
O pai do sonho era outro, um refugiado qualquer
Que pela tarifa do barco, pagou um eterno aluguer

Convém lembrar afinal que estou em espiritual retiro
Em selva com gente diferente e muito dada ao suspiro
São um povo primitivo, que não dissimula no banho
Quando muito pela caça, fazem seus truques de antanho.

Serei também refugiado, um dos que marcha, clandestino,
Na rota mais tormentosa do esquecimento vespertino
Cenários tão moribundos em dias certos e fecundos
Fazem-me pagão completo, mas psicólogo dos segundos.

Penso e sofro a civilização, as ideias hipócritas, a água salgada…
Como um néscio, que acredita no acordar de todos de enfiada
A um tempo só renego e recomendo os suplicantes
Sofro a razão do batuque, pátria eterna dos semblantes

Relembro os campos de trigo e seus corvos em altas notas
Uma nostalgia serena sai do olhar das minhas botas
Lamento não ter o talento desse tal ruivo holandês
Falta-me ainda coragem para fazer o que ele fez.
 
É menos difícil ser flor

Um deus não pode crer

 
Quadrado frio, gosto austero do traço
Foi bem possível reduzir o júbilo a quatro segmentos
Mediante a força directa da abstracção

Estamos assim perante um arquitecto criador
Finalmente aliviado de seus cartapácios
Com um braço eterno para o deleite

Fez necessário uma máquina temporal
Um carrossel divino com deidades suspensas
Para seu profundo prazer, o geómetra do raio

Um Jove que cavalga, brinca, agita e fulmina
Amontoadas, as criaturas mínimas são-lhe alvas
Seu olhar sobranceiro não as individualiza

Dentro do grande quadrilátero, só o uso
De um mestre único e de sua eterna ficha
Que crê fortemente em suas linhas firmes

E então um novo deus destrona a sua posse
 
Um deus não pode crer

Medo Afastado

 
Agora que deixei os tigres lá longe
Com todos os mantos de neve daquele lugar
Poderei pedir então ao medo que se afaste
E que cuide de avisar quando de mim se lembrar

Já posso pontapear as pedras brilhantes ao sol
Revirá-las e expor suas partes húmidas
Onde bichos capazes fazem sua própria vida
Nas mil sombras escondidas desta clareira

Hei-de ditar ao burlão das horas mais felizes
Gritar-lhe mil vezes um grande aborrecimento
Para que ele não se esqueça que me bati
Também por um sonho igual aos dele

Secas, chuvas fortes, torrentes ou rios gelados
Movimento, quietude, imagem e palavra
Ideias bem contrárias mas todas em verbo
De sonoras raízes que me apegam à vida

Fui eu seu velho louco quem sorriu e chorou
Fui eu que em criança rasgou as calças nos joelhos
Quando jogava à bola e voltava a medo para casa
Ao outro dia ajudava a prima com o colar das flores

Por isso agora escreve tudo isto para mim
Obedece aos meus adultos e respeitáveis modos
“Minha vida é cinzenta, eu sou cinzento”
Escreve isso porque ainda não ouvi o medo…
 
Medo Afastado

Um abandono

 
Diz-se que fugiste
E alisaste a seca superfície turva da areia
Decompondo montículos agradecidos (adivinha-se).

A torneira que pingou as suas gotas últimas
Só então se disse fechada
Como te custou a ti perceber tudo isso!

Alinhavaste depois tantos semáforos verticais
Uma tolerância de cores em todas essas mãos
Tua vida não será nunca mais um pára-arranca!

És porventura agora algum deus de mil olhos
De tentaculares e multiplicados embaraços
Para o bom suporte dessa causa?

Quem és tu afinal? Renegado!
Um autodidacta positivo? (Só isso te poderá valer)
Ou uma intuição sem medo? Um abandono!
 
Um abandono

A H. H.

 
Morreu um poeta
Terra, mar, animais
Em sua própria casa
Dia, noite, demais
Era um homem
Fogo,água, sais
Tinha uma família
Viagens, regressos, mais
Conquistou amigos
Perto, longe, iguais
Construiu sua experiência
Próprio, adverso, reais
E escreveu o que era
Palavra, mistério, maternais.
 
A H. H.

Reflexo contrito

 
A força de certas canções
Está no beijo que se dá
Ao ar que tudo promete
Na frescura da manhã

Ontem eu ia à escola
Num trevo de quatro iludido
Hoje esqueci tanto amigo
Sedução que coisa má

Adiantei-me ao inferno
Fiz glória de promessas
Despejadas às avessas
De um grande e único terno

E contudo não tenho já frio
Nem durmo com cobertores
Carne é carne e eu não rio
Espelhos torpes - dissabores!

Canções
Prometem
Frescas
Manhãs

Beijei
Um trevo de quatro folhas
Adiantado
Ao inverno

Na escola
Os amigos
Seduzem
Com glória

Corpo
É carne
Vida é
Ar.
 
Reflexo contrito

Vero poema

 
À boca que despeja o verso
Na etérea razão do encanto
Saibas que a alegria é pranto
Rompendo um ardor imerso

O que às mãos dá tutoria
E gestos tacanhos misantropos
É o vento irado aos sopros
Que se atira à companhia

O que cai, não cai afinal
E o que manda à toa obedece
Na praia de um temporal

Que no ouvido se amortece
Traçado como um sinal
Com cor que o sangue merece
 
Vero poema

Pó que a alma limpa e o corpo absorve

 
Retira-me o pó
Nos embalos desta vida
Em tuas suculentas mãos
Onde o sujo se enamora por panos enrolados
Rejuvenesce este meu corpo apto para esquecer

Não há-de nunca sobrar demasiado amor
E quem sabe se o lustrado suor recente
Desaparecerá nas brasas que a puberdade ascendeu
Pois agora qualquer cega emoção faz-se esquecida
Enquanto um dos pés escorrega no lençol

Assim é o jogo da vida e dos sentidos
Onde cada acordar adormecerá na volúpia
E se no aparato do sono houver mais alegria
Então é de carne viva esta salva intuitiva (sonho materializado)
E estaremos fugindo da morte e da contenção do desencanto

Mas o amanhã, sempre ele, já nos reclama!
Ou porque é trabalho ou domingo missal
A planície repousante é de novo vertical condição
E o atrito da pele condena de novo este bípede vulto
A mover-se vadio pela poeira suja
 
Pó que a alma limpa e o corpo absorve

Divagação

 
É pelos livros que eu venho
Embarcado em liteira antiga
Invocando uma neve pura
Que consolide as palavras que trago
Mas que não me emudeça.

Existiu o medo ainda agora
Lá fora o frio, que mentira
Lá fora, ainda lá fora
A clara evidência das misérias humanas
Onde fica Condeixa? Conheces Alpendurada?

Mas basta já de histórias capazes
Audições gastas: perdurai aí!
E eu saio como sou, para
Os alfarrábios compostos, as vitrinas
Já vou. Já aí estou.

“A breve história do mel”
Tomo um e tomo dois
Mentira. Não é breve! Ao lado
A lombada verde, uma outra vermelha
O velho amigo sorrindo as suas barbas

“Já há algum tempo que não aparece”
Preâmbulo familiar, estranha paz
“O que procura ao certo?”
Ao certo, ao certo, ao certo
Ao segundo, ao minuto, ao mais…

Quero o infinito que não te larga
A tua essência de livreiro tão real
Que me questiona e adula
Certa, assimétrica e atemporal
Como um hieróglifo desbotado.

Quero a liberdade dos sábios
A jurisdição do imperador
E que esta tarde fale de mim
Em todas as cores através das eras
Sem que importe onde estou.
 
Divagação

Conheci um poeta melhor que eu

 
Conheci um poeta melhor que eu
Li suas palavras lindas e comecei a repeti-las
“Sopro, estranha, surto, norte”
Vida fácil de tudo o que importa
Linha que não sei escrever e desejo viver

Harmonia como podes ser tão cruel
Dançaste com sublime certeza em outras mãos
Que já nadaram por certo nas grandes paixões
E afinal se esconderam elas próprias secas
De pensamentos rasos e mortais

Beleza pura, senhora do tempo que em teu bolso
Denunciou o dia de quem o fez
Essência do conteúdo certo que em pontaria
Cupido nenhum jamais venceria
Faz de mim teu mais eleito por uma vez

Alcançar o ideal que Antero buscou
Esse mil vezes mais grande do que eu
Que muito achou em Português
Como pode uma potência tão fraca assim ousar
Que todos os sonhos se podem igualar?

Como pode? E o sonho diz-me: tenta!
Só eu vejo a probabilidade no espelho
E então escrevo linhas erradas e gosto
Releio, emendo e gosto mais
Pudesse ao menos não gostar...
 
Conheci um poeta melhor que eu

Tríptico: o fim da razão

 
I
Crimes de sangue traçaram esta fronteira
Que todos os mapas do mundo atestam
E contudo nesta margem de rio
Que aqui divide dois países já de si divididos
Não vislumbro mais que o rico sol refletido
Dos oblíquos raios chapados de junho
Existem barcaças vogando, outros apetrechos com motor
Atacam as águas lentas e isentas num ódio juvenil
A espuma aparece, as pessoas olham das duas margens
Murmuram na sua língua uma circunstancial inveja mal disfarçada
O branco leitoso dissolve-se no azul que o céu corrobora
Toda a mudança se esvai nesta natureza perturbada
Contudo se abrires o mapa a fronteira ainda lá está…

II
Aquela pintura é mais que uma fotografia
Matizes pessoais fazem uma espetacular diferença
E o rosto que nos diz que já viu muito
Permanece ainda fiel aos seus sonhos e mistério.
Há harmonia no mundo se quiseres
Assim assinou o poeta pintor – com coragem diga-se
E um qualquer abstrato olhar pode ser aí caçado
No intervalo das suas perseguições à carne.

III
Quero atravessar um rio de giz
Onde possa esquecer e olhar
Como escorrem as letras na natureza
Assim já o fazem as pedras do lugar.
 
Tríptico: o fim da razão