CONTRACAPA
Jaz inerte
em forçado sono
a mão calada
rasgada
no abandono dos dedos
tão vazios dos teus.
Doem-lhe os segredos
das linhas vincadas
quebradas
que contam da maciez do teu rosto
do teu corpo fogo posto
longe de mim por um adeus.
É livro truncado,
fragmento isolado,
história que só continua
quando cada palavra minha
encontrar a sua linha
na contracapa da tua.
LÁGRIMA
Goteja a lembrança
na face rosada
seus ternos segredos;
em fios, avança
e, calada, amansa
a dor e os medos,
irmãos sombrios
da saudade aguada
que hoje rodopiam
nos sulcos vazios
onde ontem corriam
os teus dedos.
RECOBRO
Na vigília da noite,
na dormência do dia,
deixo-me passar
na igualdade do tempo.
Melancolia.
De tanto te querer,
nada apetece.
Só o silêncio sacia
a vontade de te dizer.
Só adormecida
no teu peito,
minha guarida, meu leito,
acordarei deste sono
de saudade,
que me entorpece,
me esmorece,
me faz metade.
NÃO DUVIDES
Não duvides do dia que se levanta,
da luz que te oferece e que é tanta
mesmo se ameaça chover.
Não duvides que é para ti esta aurora,
mesmo se uma nuvem te desencanta,
ainda que a nortada que se levanta
te arrefeça e faça doer.
Até no Verão o vento demora,
o céu de vez em quando também chora
e o sol sempre sangra ao anoitecer.
FOGO DE ARTIFÍCIO
Troam as estrelas amantes dos teus olhos
em ledas explosões de cor,
acordam a noite teus risos sonantes
em estrondos rasgados de vivo fulgor,
e serpenteiam teus dedos flamejantes
num arco-íris nocturno,
tintas secretas do nosso amor.
Mas breve é a hora que te traz,
logo o breu retoma seu turno:
a cor fugaz cai e desvanece
e de novo cala e adormece
o céu vazio, soturno.
SALA DE ESPERA
Regresso
ao meu lugar cativo.
Arquivo
o pensamento
e adormeço
o olhar lento
nas mesmas paredes frias,
nas mesmas lajes sombrias,
na mesma massa ingente
de gente
em movimento.
Dormente,
sofro as mesmas horas
sem paliativo
e revivo
o eco disforme
dos mesmos dós
até ouvir a tua voz
chamar de novo
o meu nome.
CASCATA
A cascata dá-se, copiosa,
borbulhante, generosa,
ao leito do rio sedento.
Sabe que a água caída não volta,
que corre para o mar, fluida, solta,
mas um só é seu alento:
ver o rio transbordante
ondear sorrisos ao vento.
SINA
Farol apagado,
que o vento fustiga,
calado, abriga
a memória da luz,
o segredo pungente
de outras marés.
Hoje só está:
rochedo morto,
de corpo presente,
rebentam-lhe aos pés
gotas de outros luares,
sonhos de outros mares
que nunca iluminará.
MONTANHA
No cume estamos nós,
e subimos devagar
ao nosso encontro.
Não levamos bastão
nem cordas à cintura:
temos as mãos.
Cresce a altura
do que deixámos
até ao regresso,
e ondeia a verdura funda
do arvoredo espesso.
Aceitemos a vertigem
que nos mura:
o amor também é
resina chorada,
erosão calada,
rosa despida,
frias rajadas de outra vida
que, tenazes, ameaçam
mas não perpassam
as nossas mãos entrelaçadas.
CAMINHO
Foi dura
a estrada ignota,
espessa a bruma,
cortantes os passos
na erosão dos pés.
Mas que importa,
se hoje a dor se esfuma
nas curvas dos laços,
nos trilhos dos braços,
onde te sou
e me és?