Contos : 

«« O irmão mais velho ««

 
O Júnior está deitado ao sol naquela posição que lhe é tão própria, barriga para baixo e membros alongados, porém hoje não está nos seus dias, algo lhe tira a tranquilidade, desde manhã que medita nas consequências que trarão os actos do irmão mais velho.

Sempre considerou o irmão um amigo muito além dos laços de sangue, nem sempre o sangue fala mais alto, sempre que medita nos laços familiares e nas muitas delongas que por vezes esses mesmos laços transportam, chega à conclusão que muitas são as famílias desfeitas por ambição excessiva e sobretudo por excesso de inveja. A dele, apesar de ser uma família ausente na lonjura, sempre que um dos membros está aflito os outros respondem à chamada.

Uma família composta pelos velhos pais, dois irmãos e respectivas famílias, e de muitos tios e tias, uns mais direitos que outros, que a vida levou por trilhos dispersos, para não falar na catrefada de primos e primas, a maioria desconhecidos, no seu todo. Reflexos dos tempos modernos.

A inveja é o abutre que corrói as entranhas do invejoso e do invejado.

A ganância excessiva a pala que oculta o verdadeiro sentido da vida. Com estes pensamentos, júnior percorre com o olhar intranquilo os campos em redor. De visita à casa paterna deu-se conta que afinal o irmão não é bem o que pensava, e que todas as desculpas de que se muniu ao longo dos anos, para assim desculpar a sua inércia e ao mesmo tempo a sua exímia capacidade de julgar os erros alheios, eram fruto de um bom coração lutando com as vicissitudes da vida. Com este olhar ternurento ao longo das décadas, desde o tempo em que eram crianças Júnior desculpou o irmão nas muitas investidas contra a má sorte de que se intitulava soberano.

Não estudou, a culpa era dos pais que tinham sido maus pais, principalmente do pai, os maus casamentos que fez também eram culpa dos pais, o comodismo evidenciado numa vida de aparências transitórias, era culpa dos pais. Até o seu corpo deformado pela gula apressada que não resistia a uma montra de doces, era herança materna. Júnior desculpava com olhar condoído, afinal o irmão era o seu melhor amigo. Porém na noite anterior algo mudara, ao chegar encontrou a mãe e o pai cabisbaixos, indagou a razão de tal pesar e a custo arrancou essas mesmas razões da boca do pai.

O irmão estivera em casa havia poucos dias, em mais um dos constantes rosários de lamentações, vociferou de arremesso à mãe – vocês não são nada, não posso considerar pais quem nada fez por mim, nada me deram, sempre viveram à sombra da pobreza, eu odeio gente pobre.- Juntando esta a outras pontas soltas numa meada de enredos, Júnior questiona a existência do irmão, é verdade que os pais pouco tem ou tiveram, são gente simples e pobre, iguais a tantos outros pobres e simples, mas também é verdade que na casa paterna se um comia o outro também, se um andava calçado, o outro também, se um fora trabalhar de igual modo foram os outros.

Os dois irmãos ao crescerem seguiram a vida que quiseram sem que os pais algum dia pusessem entraves, podiam dar conselhos, mas cada um fez da sua vida o que bem entendeu.

Como podem os pais serem os causadores da sua, dele, famigerada má sorte, casou-se quando quis, descasou-se quando lhe apeteceu, voltou a casar e a descasar, enquanto foi mais novo e liberto entre um e outro casamento, viveu a vida entre um bar e uma discoteca, umas idas à praia e ao cinema, muita vez alimentado e financiado pelos amigos mais chegados, longo foi o período em que fugiu ao trabalho com a desculpa de que não havia trabalho, podia ter aproveitado esses tempo de liberdade para se cultivar e promover, munindo-se de uma educação mais vasta, mas não, sonhou ser modelo fotográfico e perdeu-se entre poses mais ou menos insidiosas que a nada levaram, senão ao encher do ego do presumível fotografo, desvairado entre cliques e fotos a preto e branco. Mas a culpa de uma década de desaire, e acima de tudo de ser um Zé-ninguém aos olhos da sociedade, embora o seu estado actual fosse confortável, era dos pais pois então.

Esta e outras interrogações sempre incomodaram Júnior, mas quando finalmente o irmão encontrou o seu rumo, ingressando num emprego estável, passando por outro casamento de conveniência que se desfez num ápice, respirou fundo, finalmente o irmão encontrara paz e o reflexo disso, foi que passado pouco tempo estava novamente de casamento marcado, desta vez com uma mulher às direitas, bem de vida que lhe poderia dar o nome e as comodidades almejadas. Seguiram-se anos amenos e tranquilos para a família ausente na reaproximação fraterna das necessidades de cada um. Necessidades essas que ajudavam a evidenciar a capacidade do irmão em converter para si, todos os louros das ajudas prestadas, para na primeira oportunidade fazer disso estandarte, Júnior também fechava os olhos a cada constatação de que as ajudas do irmão aos diversos membros da família aconteciam de maneira subtil, fugindo sempre às responsabilidades sempre que o fardo era demasiado pesado, tratava de descartar competências, ajudava sim com alarido como pano de fundo, numa tentativa ridícula de chamar sobre si as atenções globais. E agora a bofetada final - não são meus pais-, melhor - foram maus pais e eu sou a vítima.

Juntando isto ás andanças e companhias duvidosas dos últimos meses com que o irmão voltou a repartir o seu inerte tempo, tiraram Júnior do sério levando-o a questionar aquele que sempre teve por amigo além sangue. Falará com ele, dirá finalmente o que sempre calou, sabe que será fatal para o seu relacionamento, o irmão ferido no seu orgulho jamais admitirá que os erros na sua vida, a partir de determinado momento foram a sua canga, e que esta não foi herança paterna, falará que constantemente desculpou a sua obscura inveja, sempre que alguém das suas relações se evidenciava. E a coisa tomava contornos alarmantes se algum membro da família se atrevia a sobressair, independentemente do acto. Inveja essa que se manifestava subtilmente, minando tudo e todos com afirmações e insinuações descabidas. Falará que para crescer enquanto homens e membros da colectividade, temos que agarrar os cornos da vida de frente e nunca de cernelha, falará que apesar de lhe reconhecer todos estes defeitos, também lhe reconhece as virtudes, que são muitas, é que estes defeitos são a canga com que o ser humano nasce, mas nem todos sabem contornar os empecilhos de que vimos munidos enquanto raça. Estamos tão cientes das nossas verdades que não nos reconhecemos quando nos olhamos ao espelho, vemos sempre sobre a nossa cabeça a auréola angelical com que comodamente nos adornamos. Precisamente por termos preguiça de retirar a canga, e carregamos com ela durante o percurso terrestre num comodismo doentio.

Também lhe dirá que o ama, que recorda o tempo de criança, recorda as roupas fora de moda com que se vestiam, tudo porque os pais eram pobres. Acima de tudo dirá que também errou e muito, mas nem por isso descarregou o peso desses erros nas costas alheias.

Júnior levanta-se, estica os membros e caminha em direcção da velha casa, lá dentro espera-o o vazio, o vazio instalado desde que há vinte anos, quando num acto de renega conversou com o irmão. Amanhã irá novamente deitar-.se ao sol, irá esticar os membros carcomidos pelas atrozes, olhará os campos e neles pressentirá a presença dos velhos pais, mais uma vez agradecerá por lhe terem dado a vida, e quem sabe estes o ajudem a chegar ao coração do irmão mais velho, dele só sabe que está vivo. Por enquanto ainda estão os dois vivos, até quando não sabe.

Amanhã dirá ao irmão o quanto lamenta não ter tido nele o amigo que lhe apontasse os erros, os erros tornam-se mais leves quando alguém que amamos os assinala, respeito e amor é isso mesmo, assinalar de erros e virtudes em pé de igualdade. Júnior aprendeu isso com os velhos pais, com os vizinhos dos velhos pais, com os pobres de pés descalços e alma lavada.

Júnior interroga-se como é possível que dois testos da mesma panela sejam diferenciados pela cor do barro com que revestiram as rachas de uso.


Nessa noite júnior abraçou os velhos pais, agora repousam lado a lado, sobe o peso do barro, no ar que circunda as campas respira uma certeza, muito perto do início existencial que é o universo onde a matéria se reverte em pó, o irmão mais velho compreenderá, que no apontar de defeitos sabendo de antemão que será a estrada para a separação, está o elo vibratório que faz de nós testos de uma mesma panela mas de barro diferenciado. Defeitos e virtudes todos carregam, assim tenhamos a sorte de encontrar quem os identifique, e os valorize se forem virtudes, e nos ajude a melhorar enquanto viventes se forem defeitos.

Só que nesse instante será demasiado tarde para o irmão mais velho.

Antónia Ruivo.


Era tão fácil a poesia evoluir, era deixa-la solta pelas valetas onde os cantoneiros a pudessem podar, sachar, dilacerar, sem que o poeta ficasse susceptibilizado.

Duas caras da mesma moeda:

Poetamaldito e seu apêndice ´´Zulmira´´
Julia_Soares u...

 
Autor
Antónia Ruivo
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 31/05/2012 02:12  Atualizado: 31/05/2012 02:12
 Re: «« O irmão mais velho ««
olha Antónia, tive que ler metade, fui tomar café e vim ler o restante. depois disto não iria sair daqui sem dizer que gostei imenso e dar os parabéns. passa-se por várias fases durante a leitura e falas da terra dos homens...

um abraço