Poemas : 

Dez Sonetos da Guerra na Crimeia parte oito

 
 
1. Condução à inglesa


Vinha pela minha direita em contramão
a toda a brida, vinha de frente,
de ordem em riste e ar mui ausente,
era esta a sua indecente condição.

Antevejo, com a maior desilusão,
um choque em cadeia entre a gente;
a colisão com um tanque é diferente,
sem travão.

Vinha pela minha direita, em guerra,
em contramão de frente, direito a mim,
com’um elefante contra um rinoceronte.

Como se se estivesse em Inglaterra
e fosse norma conduzir-se assim,
desastre a desastre neste horizonte.



2. Tata Kepler


O teatro de guerra, do meu sofá,
é visto num camarote de conforto.
Não parecem ter as falas bom porto,
desporto sangrento: que acabe já!

Não sei em que acto vamos; para lá
de meio, no fim, ou ainda no aborto?
Os actores, os autores, tudo morto…
Num palco onde cada cena é má.

O ponto dita, sem nó, um Dá eslavo;
o figurante faz de vento, de bala;
a cortina abre e fecha, …avaria …

Do meu sofá, ao teclado, agravo,
na boca de cena alguém se impala
sem fingir, sem narrador, só agonia.



3. desUnião soviÉtica


Emana, de novo, a velha saudação.
Palma ao vento, seguida de um grito
que diz um insentido por não dito
sob a forma de acto de contrição.

Num futuro próximo é obrigação
vender e comprar este nojo conflito,
moda por vir, na qual não acredito,
d’ares a pólvora e extrema unção.

Hablo com dolor de mi vida entera
J’ai peur de tous et aussi de personne
Io sono uno uomo que fai niente…

Sou, de facto, uma figura de cera
armada de carabina e telefone.
Bandeira sem haste, vento e sem gente.



4. Nem para chão dá


A minha terra, toda ela, ficou seca;
devido à guerra, nela, não há trigo.
Toda a enxada guardou de castigo,
perdeu a voz, armada a hipoteca.

Não berra a menina, é uma boneca;
não há grão de centeio, espigo…
a minha terra, explicar, não consigo,
nem para chão dá, apenas se peca.

No solo não cresce um grão de milho,
nada se bebe, nem sequer a lama;
guardo a secura toda para mim.

Não a deixo d´herança ao meu filho.
Mas, que fazer, se ela me chama?
Essa terra, tão seca, será o meu fim.



5. dia Adia


É cada vez maior a pegada,
pé descalço ao pé de carros de luxo.
O condutor, de iguarias no bucho,
iguais às que noutros há… nada.

Tirar a miséria desta estrada
é outra guerra de que tudo puxo
e repuxo; trago ares de bruxo
sem bruxedo, saco de pancada.

Dia a dia a dia a dia a dia adia,
e cada um passado, nada de novo.
Apenas se alarga o buraco.

A guerra é a mais triste monotonia
a que se sujeita qualquer povo;
o torna menor, pior, mais… fraco.



6. Cabo Semedo


Cabo Semedo, quanto te custa a te dobrar,
o que te verga, faz estugar o passo,
que loucura te traz a ousadia, o aço,
que ação que é pura, te faz andar?

Que medo tens para te encorajar,
que canto obscuro e falta de espaço
que perdura? Qual o fracasso
que não tens receio de fracassar?

Cabo Semedo, às armas, agora!
Por mares de águas paradas, frias,
por ares nunca, antes, olhados.

Há um comando, um grito que t’explora
e um peso grão de que te aproprias,
sangue no chão, doutros comandados.



7. Mon(olig)arquia


Acho que já chega desta tortura…
Prostituo a mulher, vendi a filha;
descanso o carrasco: maravilha.
Acho que já basta (mas perdura).

Fui um furacão feito de feiura,
pilhei a casa, tornei-a uma ilha;
sou eu o que a arrenda, que a pilha,
pareço ébrio, tonto sem tontura.

Sou eu, o que aqui mando e desmando.
Faço, agora esta caridade da paz,
passo o aço, à força dito a lei.

Acho que já chega. É meu comando;
mas a minha vontade é o que se faz…
Nesta casa, ocupada, sou o rei.



8. Nasce o sol em mais um dia


Nasce o sol em mais um dia de morte,
nasce o sol e com ele uma vingança;
outra noite que o eterno alcança,
Aurora que não espera transporte.

Bate o azar à porta em vez da sorte,
cai um tempo duro e sem mudança,
a Justiça perde a balança,
a rosa-dos-ventos perde o Norte.

Por vezes nasce quente, noutras frio,
indiferente às vítimas da batalha,
ao silêncio que intervala o trovão.

Nasce o sol num terreno baldio,
onde só para sobreviver se trabalha
e sem direitos… nem a absolvição.



9. fotografia


O tempo parou algures, está parado;
cheira a pouco, a pântano, mal cheira,
montada sem ratos a ratoeira,
e vazios prosperam em todo o lado.

O silêncio impera, é o nosso fado;
e vive, ou antes, morre à nossa beira.
Apenas a morte chega ligeira,
tudo mais é mais que lento, finado.

Nada envelhece e tudo se repete,
o perfume a novo é maldito e pobre,
o que amadurece é apenas o desgosto.

É isto que toda a guerra promete,
deste estar parado que tudo cobre,
até o sol, em vez de brilhar, sempre posto.



10. Viktoria Roshchina


De ti devo de dizer a derrota,
ou, talvez, de te dares de vencida,
ou vencer ao dares a própria vida
por duma notícia dares nota.

Fugiu-te para a verdade a rota
pra desagrado de gente falida,
a boca, de reais factos, rendida,
gritos que vivem presos sob bota.

De ti digo: tiveste o fim dos duros,
de ti arrancaram tudo à viva força,
sem paz, até a tua morte foi obscura.

Mulher, que sobrepuseste muros,
mostrando que não há o que te torça,
apenas não duraste mais que a tortura.






Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.

Estes dez sonetos não farão parte da nomeação para a "Estação das letras"
 
Autor
Rogério Beça
 
Texto
Data
Leituras
33
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
10 pontos
0
1
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.