Textos : 

O Mundo é o Palco dos Tolos

 
Caía mais uma noite estrelada no frio Janeiro de 1975. Simplício é um homem calmo, simples como o próprio nome o tratava, de barba, desmanchada a cada três dias – a pele da cara não aguentava mais que isso –, e, de hora em hora, um cigarrinho de enrolar em papel de arroz, ao canto da boca, mas sempre bem vestido. De jaqué preto, acetinado nas costas, e plastrão de seda a combinar com os suspensórios que lhe prendiam as calças de fazenda castanho-escuro, sempre vincadas. Estudava o céu. Como uma criança, chegado a casa à noite, jantava qualquer coisita que houvesse e sentava-se no alpendre da porta a contar as estrelas e a traçar caminhos entre elas, nunca repetia uma, nem os seus sessenta e sete anos lhe permitiam tal descuido. Ao longe, quando por breves instantes desviava o olhar, vislumbravam-se as poucas luzes da pequena aldeia forrada de lajes de xisto que se encontrava no vale, já pouco povoada, uma paz. De entre essas mínguas luzinhas, qual enciclopédia, dizia saber à casa de quem pertencia cada uma. Simplício era um homem organizado que tinha dito sim ao casamento com a vida sedentária do campo.
- Aquela ali, à esquerda, é da casa do Manuel dos Anjos, o da frutaria! É a luz do candeeiro a petróleo do seu quarto… e as estas horas – dizia com um sorriso breve e malandro de mirone – está a tratar do servicinho com a Dona Antónia.
A vida, essa, era macaca – como gostava de lhe chamar -, mas quase nunca o deixara ficar mal, uma pequena chatice aqui, outra ali, mas nada de mais. Teve três filhos, entre os quais uma princesa que hoje já não reconheceria, a Marta Sofia, miúda dos seus trinta e nove anos de vida e talvez catorze de casamento, pobre rapariga. Netos? Talvez, não sabia. Julgavam-no morto e enterrado numa qualquer cova sem direito a inscrição da saudade que ninguém teria dele.
As pernas que o levavam e que o ajudavam a pedalar até à aldeia e por vezes à cidade mais próxima, quando lá ia, já não eram as mesmas de há cerca de quarenta anos, altura em que decidiu conhecer mundo e em que resolveu esquecer todos quantos deixou para trás.
- Fui um cabrão para muita gente – ia reconhecendo com eloquência –, mas nada devo a ninguém. Só à minha Marta… e à Vitória que já por lá está!
Marta Sofia era a sua espinha atravessada na garganta, o cancro que o desfazia por dentro e por fora há tantos anos. Foi sabendo uma e outra notícia dela e de sua mãe através de um bom amigo de quem não perdera o contacto e a quem fez jurar que nunca contaria a ninguém do seu paradeiro. O velho Mateus.
- O pobre passou-se para o outro lado, faz agora dois anos no próximo Natal – disse-o de lágrimas envergonhadas –, e era o único homem a quem podia confiar o bem-estar da minha Vitória.
A casa de Simplício, pese embora a sua simplicidade, era um museu do mundo, desde colecções de moedas de países por onde tinha passado e dos poucos que lhe faltaram, notas e até fotografias tiradas ao lado de alguns Chefes de Estado, lembranças de quando se esgueirava por entre a confusão dos jornalistas e se colocava em distinta pose para um qualquer fotógrafo lhe bater a chapa, chapa que, por vezes, comprava ao preço da chuva, de outras vezes levava--a “emprestada”. Memoráveis esses tempos. Por escassos segundos conseguira esquecer-se de Marta e Vitória.
Embarcou em 1936, alguns meses após o nascimento da filha, ainda antes da 2ª Grande Guerra, num navio mercante que aportara em Lisboa, parecia ele que estava a adivinhar o que iria ser deste país, e do mundo. Tinha, à sua cabeceira dez relógios, lindas obras de arte, que marcavam, cada um, as horas de dez países diferentes, o tempo era-lhe inútil. A maior parte dos artefactos que tinha eram oferecidos por desconhecidos que se foram tornando grandes amigos, gentes que por muitas vezes lhe saciaram a fome e lhe trataram as feridas da vida a troco de amizade ou de uma qualquer ajuda que aqueles estrangeiro lhes pudesse dar. Ainda hoje lhe mandam algumas coisas pelo correio – por vezes quem o faz são os filhos desses seus amigos, que também eram como filhos para si. Simplício ensinava-lhes Português, Matemática, História, como resultado dos seus estudos em Portugal, que só não aprofundou com o ingresso na Universidade da capital por mera carolice, e Inglês que fora aprendendo pelo mundo.
A sua vida era boa nessas alturas, o seu pai tinha beneficiado de favores de alguns membros da Monarquia, antes e depois da sua queda, tinha inclusive conhecido a família real como alfaiate da corte. Também Simplício era um monárquico fervoroso, mas a história da sua vida fazia-se das suas viagens e do desgosto de não conhecer Marta Sofia. Como lhe tinha dito o velho Mateus, Marta era a cara da mãe, um hino à beleza.
Junto a todas as bugigangas, na sua cabeceira, estavam centenas de páginas escritas com caligrafia de Senhor Doutor. Eram cartas escritas a Marta Sofia e a Vitória que Simplício nunca tinha enviado, mas que guardava religiosamente, as confissões do seu mais horrendo crime… o de fugir. Uma despertou-me a atenção pela forma extensa e chorosa como se penitenciava e, por vezes, pedia inadvertidamente desculpa a si próprio, era para a sua amada Vitória. Simplício era um quase poeta.
- A Vitória nasceu na Serra, para os lados de Viseu, era a mulher mais bonita que alguma vez tinha pisado esta terra – sublinhava Simplício orgulhoso vaticinando que mais ninguém lhe teria tocado senão ele –, seus olhos, de um azul precioso, falavam tanto que ela não precisava de proferir qualquer palavra. Os seus longos cabelos semi-loiros dançavam com ela ao sabor do seu andar provocador e sensual, de silhueta esbelta e refinada, nem alta, nem baixa… uma verdadeira Rainha que derretia em invejas qualquer casa real.
Agora Simplício apenas a via uma vez por ano, no seu aniversário a 2 de Maio, no Cemitério dos Prazeres em Lisboa.
Lisboa era uma cidade rica na altura e Simplício, que tinha nascido em Sintra, onde vivia com os pais, ia para lá sempre que podia, cumpriu lá o seu tempo militar – dois anos, até aos 19 –, em Cavalaria, e corria os botequins todos, onde se discutia de tudo, principalmente os momentos conturbados da política da época, e onde, pela primeira vez, cruzou olhares com Vitória, filha de gente pobre e que, como todas as moças de 16 anos, procurava a sua sorte nos braços de um príncipe encantado – vivia com uns tios. Embora os seus pais nunca tivessem permitido que ele casasse com Vitória, ele deu-lhe três filhos, os dois rapazes ainda os viu até aos seus 7 e 9 anos (Martim e Herculano, respectivamente), depois morreram os dois… ainda os lembra com saudade. Ele embarcou no medo de ver também a filha morrer, Quando Vitória lhe disse que estava grávida de Marta Sofia tinham acabado de perder os dois filhos. A vida era dura e Simplício, apesar de seu pai ter algum dinheiro, não conseguia ajudar tanto quanto desejava, estava desempregado e dependente do velho alfaiate Hermínio de Almeida e Costa e dos conselhos maternos de Dona Ermelinda de Almeida e Costa.
O que Simplício ainda não sabia era que eu tinha conseguido descobrir a sua Marta Sofia e que conhecia bem a beleza que ele ia descrevendo ao acaso. Ela era ainda mais bela nas suas palavras. Era, de certa forma como o pai, tinha um passado translúcido que partilhava despreocupadamente, sem reservas, os bons e os maus momentos. Senti que os conhecia há anos largos, desde a minha infância. Muitas vezes penso por que razão me lancei nesta demanda de querer conhecer o passado de um desconhecido… aventuras, loucas aventuras.
As palavras de Marta Sofia eram como seda, parecia que existia em sua boca uma roca que não parava de fiar tão maravilhoso tecido, tão doces.
Enquanto tratava dos seus afazeres falava de sua mãe de modo carinhoso:
- Era uma Senhora, todos a respeitavam e acarinhavam – dizia calmamente, mas de jeito sentido –, mas tinha muitos homens a babarem-se pela rua a cada seu passo.
Marta tinha esse dom, apresentava um corpo trintão, jovial e um espírito ímpar, figura extraída de um quadro, dos mais belos já vistos, um autêntico poema.
Falara-me com tristeza dos dois irmãos e do pai que não tivera tempo para conhecer e da alegria da vida depois de completar os vinte cinco anos, vida que até aí lhe tinha trazido algumas agruras próprias da chegada de uma menina provinciana à cidade grande.
- Histórias como há muitas – dizia ela enquanto tentava esconder uma lágrima há muito esquecida. Não era difícil perceber o que se tinha passado ou pelo menos parte.
Quando Simplício embarcou, Vitória voltou à aldeia serrana que a vira nascer, mesmo sabendo que já por lá não encontraria seus pais ou qualquer família. Era melhor assim, pois não haveria muitas conversas sobre a sua passagem por Lisboa ou pelo facto da criança que levava nos braços não ter pai. Apenas o velho Mateus, que tinha ido morar para Viseu sabia da história e esse não a contaria a ninguém. Vitória sabia que Mateus e Simplício eram grandes e bons amigos, mas, embora desconfiasse que ele sabia, nunca ousou perguntar-lhe sobre o paradeiro do pai de seus filhos. Havia muita raiva, muito ódio no seu bondoso coração. O que Simplício fizera não era humano e não encaixava no pensar de Vitória.
O desejo que ele tinha de conhecer o mundo era quase do tamanho do amor que nutria por Vitória, fazia parte dele repartir essas duas paixões, mas de modo desigual, se pudesse tinha-a trazido com ele e tantas foram as vezes que teve para a vir buscar, mas foi egoísta e quis o mundo e os seus males só para si, claro que também não partilhou as virtudes, mas isso fazia parte do seu tormento.
Marta Sofia, mesmo sem saber bem porquê, via-se a confessar-me os problemas que a vida lhe tinha destinado, culpava muito o facto de Simplício não estar presente quando devia, para a proteger dos Gárgulas que se alimentavam da sua inocência. Nos primeiros dois anos que esteve em Lisboa não conseguiu arranjar trabalho decente, pelo que se viu obrigada a aceitar os convites insistentes de um grupo organizado que corria os recônditos cantos dos bairros lisboetas dos anos 50, ela tinha apenas 18 anos, era linda como ainda é, e pouco sabia da vida, a sua instrução escolar resumia-se ao ensino primário.
Lisboa era uma cidade internacional, o mundo, desde os tempos da Guerra, concentrava-se ali, todos os segredos de Estado eram debatidos em voz baixa por espiões aliados e Nazis – por vezes surgia alguém a boiar no Tejo com um tiro na cabeça –, a Europa estava em reconstrução, existia muita desconfiança por existirem ideais políticos díspares e por existirem dois países que se ameaçavam mutuamente por vias diplomáticas e não só – Estados Unidos e União Soviética –, os mesmos de hoje em dia.
Na época safava-se quem fosse mais esperto que a PIDE ou quem desse luvas e borlas a esses camafeus, passaram muitos pela cama de Marta Sofia, ela aprendeu nesses dois anos a agradar aos homens com a arte do sexo e da sedução, também conseguiu amealhar um bom pé-de-meia, mas, obviamente, não lhe agradava tal vida e procurava sair dela o quanto antes, o que não era fácil por a considerarem a galinha dos ovos de oiro, todos os que se dirigiam ao Zé Braz – o seu chulo – perguntavam por ela e pagavam bem, só senhores Doutores entravam naquele quarto e cada um deles com as suas manias, mas esses pormenores eram para esquecer. Entre tantos que Marta Sofia conheceu, houve alguém que lhe chamou à atenção e que era sempre simpático e atencioso… o engraxate que subia e descia a rua vinte ou trinta vezes por dia, João Manuel...


A Poesia é o Bálsamo Harmonioso da Alma



12º Concurso Luso-Poemas
 
Autor
Alemtagus
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1437
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 24/09/2008 22:52  Atualizado: 24/09/2008 22:53
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7071
 Re: O Mundo é o Palco dos Tolos
è um excelente texto, que nos conta a vida das pesoas dessa época, mas hoje ainda não andamos muito longe de viver estes mesmos destinos.
Creio que tem continuação, será?

Abraço amigo
a. da fonseca