Poemas : 

Uma noite chuvosa

 
 
Uma noite chuvosa


Açucena estava com o balde d’água na cabeça descendo a ladeira em direção à sua casa. Na vila deles não havia sistema de água, apenas um poço comunitário. Pelo menos não precisavam mais caminhar quilômetros para achar um olho d’água, ou uma cacimba. E a água era tratada.

Não sabia que alguém havia chegado em sua casa e seu irmão a esperava para colocar “mais água no feijão”. O vestido de viscose era um pouco curto e estava um pouco molhado. Apesar de ter dezoito anos, ela parecia uma menina, mas era forte, os músculos ficaram bem definidos ao longo do tempo, ela era até um pouco magra.

Quando chegou em casa viu com susto o estranho que se sentava numa das cadeiras de palhinha da sua sala. Ele era um pouco alto e muito vermelho, tinha os cabelos castanhos com tons dourados, os lábios finos e o nariz reto, seu queixo tinha um vinco bem no meio, e tinha o ar de “poucas palavras”, não que ela fosse de muita conversa.
__ Açucena, ainda bem que você chegou, teremos mais um pro almoço. Você nem imagina quem é ele.
Não imaginava mesmo. Algum daqueles atores de filme de bang-bang que passava nas noites de rodeio no telão da praça?
__ Bom dia moço._ falou um pouco tímida.
__ Foi ele que deu socorro pra mamãe, ele que te trouxe ao mundo.

O quê? Ela sentiu um calor subir em suas faces, não conseguia imaginar aquele homem ajudando-a a nascer. Ele parecia já ser maduro. Mas mesmo assim, ela sentiu vergonha.
__ É, você cresceu um bocado. Já é moça feita._ ele falou com a voz arranhando a garganta.
__ O Miguel voltou, não é legal?
__ Ele vai ficar aqui?
__ Claro que sim! Imagine, se vou deixar meu amigo na casa de estranhos!

Miguel sorriu balançando a cabeça. Ribamar era muito brincalhão. Ninguém lhe era estranho em lagoa do Arroz. Vira os mesmos rostos que deixara.
__ Não se preocupe moça, eu nem queria está ainda aqui, mas Riba me obrigou.
__ Não me importo, eu não ligo, quem põe comida na mesa é o meu irmão mesmo, eu não mando em nada.

Ela esgueirou-se para a cozinha carregando o balde. Tinha o nariz arrebitado, orgulhoso. Não gostava de está tão mal vestida e com o cabelo preso em coque. Devia está horrível. Além disso, por que Ribamar não avisou? E o que ele estava fazendo, voltando ali? Todos sabiam por que ele abandonou Lagoa do Arroz há dez anos. Ele tinha um namoro proibido com uma mulher casada, e era o suspeito da morte do marido dela. Ninguém tinha como provar que foi ele, mas ele era a pessoa que tinha mais motivos. E os amigos dele mandaram ele ir embora. O covarde foi. Agora estava de volta. Açucena tinha dez anos, e ainda podia lembrar da poeira que se levantou quando o cavalo dele galopou em direção ao sol. Era verão, nada de chuvas, só o sol escaldante. E ele partiu. Açucena sonhou muitos meses que ele voltava para buscá-la, mas Miguel não voltou. Ele demorou dez anos, e dez anos era muito tempo.

A noite Ribamar acendeu uma fogueira em frente a casa deles. Era uma imensa fogueira, pois não havia lua e o céu estava escuro. Chamou a irmã, que continuava no seu mutismo. Foi até o quarto onde a lamparina estava já acesa, e ela preparava a cama. Usava o vestido de lã com mangas longas,
estavam no inverno, logo viriam as chuvas, por enquanto só o frio incomodava, a temperatura à noite, era muito baixa em relação ao dia.
__ Você não vem, eu trouxe batata doce pra gente assar na fogueira, e o Miguel vai contar as estórias de cordel que ele leu na cidade. Tu vai gostar, é história de fada e princesas.
Ela não sabia o que fazia o irmão pensar que gostaria de histórias de fadas. Não era mais criança! Mas Açucena foi assim mesmo. O calor da fogueira seria reconfortante se não fosse aquela presença indesejada. Sentou-se num tronco de árvore caído que seu irmão deixara ali justamente para servir de assento. Do outro lado da fogueira, estava Miguel, ele tinha uma batata num espeto, mais umas três pessoas da vizinhança, realizavam a mesma tarefa. Ribamar entregou um espeto para a irmã e sentou-se ao seu lado.
Ele contava as estórias com realismo, imitava sorrisos e choros, vozes esganadas e melodiosas... e a noite ia passando, Açucena tinha esquecido o mutismo e vibrava com as estórias, quase chorava com as tristes e sorriam com as engraçadas. Aos poucos os outros iam se retirando. A lenha que foi levada para alimentar o fogo estava acabando. Só ficaram Açucena, Ribamar e Miguel. Ribamar bocejou e disse que se levantaria pra dormir.
__ Tua rede tá armada lá na sala, Miguel, Açucena já deixou o cobertor pra tu. Boa noite, não demora mana, que o fogo tá apagando.

O contador de estórias contava a última da noite. Ele olhava diretamente nos olhos da sua ouvinte. Quando terminou, Açucena levantou , mas ele a chamou.
__ Por que você tá com raiva de mim?
__ Eu?
__ Foi porque eu fui embora?
Ela deu de ombros. Quem se importava com o que já tinha passado?
__ Não tenho raiva das pessoas. Só não gosto dessa vida aqui, sem nada de novo. Eu já tenho dezoito anos e meu irmão e todo mundo diz que eu tenho que arranjar logo marido por que se não eu fico pra titia. Mas, se eu não gosto desses bestas daqui, não vou casar com qualquer um só pra agradar! Não me importo se ficar encalhada! Não me importo se você foi embora, só fico pensando que se um dos parentes daquela finada souber que tu voltou, é capaz de vir aqui e te matar, frente a frente ou na traição.
__ Você tem razão em não ouvir a conversa alheia. Faz o que quiser. Só não fique zangada comigo. Eu sempre achei que tu brincava quando me chamava de meu noivo. Você era só uma menina, bem pequena.
__ Não estou zangada. Boa noite!
Ele se levantou e a acompanhou.
__ Mesmo assim, não precisa ficar com medo. Semana que vem eu to indo embora. Mas, eu não matei o marido da Dalila, e nem tinha caso com ela. Sempre respeitei as pessoas, e não ia namorar mulher casada.
__ Por que diz essas coisas? Não perguntei nada!
__ Porque você tem que esquecer o que foi dito no passado e me ver como seu bom amigo, e do seu irmão. Não gosto de saber que uma bobagem de infância está te prejudicando agora.

Ela parou e sentiu um nó na garganta. Sempre teve Miguel no pensamento. Ele tinha razão, ela era muito pequena, mas sonhava, e alimentou todos aqueles anos. Se era criança, ele também tinha alimentado, dizia que um dia eles se casariam e ele faria uma casinha perto do açude branco, e teria cortinas brancas, como do postal que tinha na carteira e deu à ela. Como poderia saber que era brincadeira? Ninguém lhe disse que as crianças acreditavam, não importava em que, elas acreditavam?

__ Por que não me deixa em paz então?
__ Eu sou doze anos mais velho que tu.
__ E daí?
__ Não é tanto tempo assim. Você não é mais aquela menina.
__ E o que isso tem a ver?
__ Que eu não posso ficar assim, até tarde da noite sozinho contigo. Amanhã é arriscado ter falatório.
__ Foi você que não me deixou partir!
Ela se virou, mais zangada ainda, mas ele ainda lhe segurou o braço.
__ Você ficou muito bonita, como a Princesa Rosa Negra.
Ela soltou-se e entrou. Ele também não era mais o mocinho de sua infância, seu noivo. Ele era muito bonito, como o cavaleiro Roldão.
Deitou-se em sua cama e ouviu ele baixando a rede e deitando-se. Fechou os olhos e imaginou ele montado num cavalo branco, matava um feroz dragão e a chamava. Ela aparecia no torre e ele subia por uma corda, a chamava de Rosa Negra, a sua princesa e a salvava da solidão do cativeiro. Lágrimas rolaram em seu rosto. Sonhava com um conto de fada, sonhava com um devaneio de menina, sonhava com um tempo que não podia acontecer. Que nunca teria seu agora. Porque em breve ele ia embora e na sua lembrança ela ainda sua “noiva de mentirinha”.

Quando na manhã seguinte ele foi ao campo semear a roça, junto com Ribamar, viu os olhares das moças, os risinhos na direção dele. Sentiu ciúmes. Mas não tinha esse direito. Queria que ele fosse embora. Sabia que logo alguém viria procurá-lo. Ele morreria. Quando ele partiu, tinha a esperança, em todo amanhecer, que ele voltaria. Sonhava em sair de Lagoa do Arroz e encontrá-lo por acaso. Mas, se ele morresse, não podia mais sonhar em reencontrá-lo. Preferia que ele estivesse longe, a vê-lo sumir pra sempre. A esperança era sempre um bálsamo.

A noite sempre reunia as pessoas em volta da fogueira. Ele nunca contava a mesma história. Não sabia como ele conseguia lembrar de tantas. Ribamar lhe dissera que Miguel falou-lhe que se tivesse um violão poderia cantar, que era assim que os contadores dos lugares por onde ele andou faziam. Ela achou que a voz dele não era boa pra cantar. Parecia que tinha areia na garganta. Era um som que embalava seus sonhos. Lá, ele era seu Cavaleiro Roldão, lá ela não tinha raiva, era imensamente feliz.

Quando as chuvas chegaram, acabaram-se as noites em torno das fogueiras. Ela ficava ouvindo o som da chuva no telhado e sonhava com todas aquelas princesas, e imaginava se seria possível, acontecer uma mágica, e dela ir para um outro lugar, atravessar a fronteira de poeira e também de lama de Lagoa do Arroz. Talvez, fosse aquele lugar que a deixava assim, tão desejosa daquele homem que sempre a via como uma menina que ficara bonita. Sempre uma criança, mesmo sabendo que ela já estava quase passando da idade de casar.

Numa manhã, Miguel pegou seu cavalo e foi para a fazenda de um amigo dos tempos de menino. Ele ia ajudar o amigo com uma vaca que agonizava para parir. Ele foi, mesmo debaixo de chuva.
Ribamar ficou em casa e Açucena foi com outras moças lavar roupa no Açude Velho, era quase uma légua de distância de sua casa, mas o açude estava cheio, as chuvas o deixaram sangrando e a roupa estava acumulada, tinha que lavá-las. Era bom ir com as vizinhas, elas cantavam e conversavam. Sempre alguém tinha uma história de alguém, de um lugar diferente de Lagoa do Arroz.
A tarde caiu e Açucena foi ficando. Sonhava novamente, a chuva que caía era água que vinha de todas as partes do mundo, de outras épocas. Ela imaginava que eram as águas que banharam a rainha do Egito, as mesmas águas que salvaram Moisés. De alguma forma, sentia que ao banhar-se naquela água que vinha do céu, tinha contato com o mundo que tanto queria conhecer.
Quando se deu conta não havia mais ninguém. Estava escuro, e a chuva estava mais grossa. Mas a noite só estava começando. Podia voltar só. O problema era a lama que não era pouca. Pegou a bacia com a roupa torcida e colocou na cabeça. Saiu andando, o pé afundando aqui, ali. O escuro cada vez mais intenso. Quem mandara ser uma boba sonhadora? Agora ia ficar atolada na lama a noite toda. Para aprender! Caminhou mais um pouco e ficou embaixo de uma grande mangueira com imensas raízes, ficaria ali esperando. Sempre podia passar alguém de carroça, vindo da roça e lhe dar uma ajuda. Tilintava de frio. A chuva parecia ficar mais grossa. Então ouviu, mesmo com o som da chuva, alguém se aproximava.
__ Oi!_Parou e ficou esperando a resposta.
__ Quem tá aí?
__ É Açucena, eu não consegui passar pela lama!
__ Fica falando, eu vou te ajudar!
__ Eu fiquei sonhando acordada e perdi a hora, nem me dei conta que a chuva ia deixar a estrada pior, às vezes esqueço que Arroz só tem poeira e lama, que é o fim de mundo, o lugar em que sonhar é perder tempo, porque aqui os sonhos nunca se realizam, os dias são todos iguais...__ Ela se calou, pois pareceu ouvir o que dizia. Não era certo expor assim seus sentimentos. Quem mandou ler todos aqueles romances? Quem mandou pensar num mundo que lhe era proibido? Antes ser uma ignorante conformada como todos os seus conterrâneos! Mas já era tarde. O estranho aproximou-se e falou com ela.
__ Açucena, quanta amargura!
Era Miguel. Estava muito escuro e ela só sabia que era ele por causa da voz.
__ Pensei que já tinha voltado pra casa.__ ela gritou pra ele ouvir.
__ Foi complicado, a vaca acabou morrendo, mas o bezerro tá vivo.
Era sempre assim. No fundo ela sabia que as coisas sempre eram compensadas, de um jeito ou de outro.
Ele aproximou mais o cavalo, e ela pôde ver sua silhueta. Ele lhe estendeu a mão.
__Vem.
Açucena segurou a mão que ele estendia, ele tirou o pé do estribo e ela se apoiou para subir. Os braços de Miguel abraçaram a cintura dela.
__ Assim vamos ficar resfriados. Vamos logo.
O cavalo não corria, pois sempre havia o risco de atolar. Mas num trecho o animal parou. O sereno afinou e eles puderam ver que havia uma imensa parede bem na frente.
__ Acho que uma barreira desmoronou.__ Ele falou preocupado.
__ Como vamos pra casa agora? O Ribamar me mata!
Ele fez o cavalo voltar e tomou o rumo de uma trilha.
__ Lembra quando eu falava de uma casinha na beira do açude?
Sim, lembrava. Ele dizia que faria uma casinha para eles morarem, na beira do açude, assim, ela poderia ver a lua, todas as noites. Espelhada na água, na lua, tudo podia ser real, ele dizia, se a gente perder a alegria, bastava olhar para a lua e imaginar que muitas pessoas depositavam nela todas as suas esperanças. Miguel foi o culpado por todas as suas utopias. Ele lhe ensinou a ser uma sonhadora. E o que era pior que sonhar? Acordar e ver que o sonho só durou uma noite, que ele se fora, e que não cabia na vida real. A vida toda sonhou e teve certeza, a cada decepção, a cada frustração, que os sonhos só aconteciam nas estórias, que a vida era dura e cruel com as pessoas como ela, ou o irmão. Que sonhar, é para quem tem dinheiro, quem mora na cidade. Sonhar num interior pobre era gostar sofrer. Não valia a pena sonhar. Sonhos eram apenas sonhos.

__ Por que tá perguntando?
__ Ela existe. Mas, não é na beira do açude, ela tá escondida, na floresta. Mas nem se eu tivesse cego eu esqueceria o caminho.
Ele foi guiando o cavalo devagar. A chuva fina, com sua temperatura baixa caindo sobre suas cabeças, gelando seus ossos. Açucena fechou os olhos e sonhou com as imensas fogueiras de noites passadas. Sentiu um calor reconfortante. Era o calor de Miguel. Mas parecia com o calor que vinha das fogueiras.

O cavalo parou. Ele desceu Açucena e em seguida desmontou. Puxou o cavalo para debaixo do teto de madeira. A casa era pequena. Miguel lhe disse que era de um homem que vivia de caçar veados, mas que uma noite, enquanto ele caçava, alguém lhe pediu para ir embora, para ele não caçar naquela noite, mas ele não ouviu disse que só iria quando tivesse o que queria, então esse alguém pulou na garupa do caçador e deu-lhe um abraço, sussurrou-lhe ao ouvido alguma coisa. E depois o caçador sentiu o peso do mundo todo nas costas. O cavalo disparou esperneando e quase o caçador cai. Depois disso, o caçador não quis mais caçar. Via a visagem olhando para ele por trás daquelas árvores e foi embora do Arroz. Nunca mais voltou e Miguel ficou com a casa. Nunca contou pra ninguém. E quando voltou, foi ver como ela tinha ficado depois de tanto tempo. Disse que tinha lamparina lá e um fogão de lenha, pequeno, mas que ele ia acender e eles iam se secar e aquecer.
Ele acendeu a lamparina com os fósforos que deixara, era como se planejasse se mudar para lá. Uma cama sem os pés, apenas com estrado e colchão estava estendida no chão, próxima ao fogão que ele acendeu em poucos minutos. Não havia cobertas. Açucena aproximou-se e se aqueceu. O calor aos poucos penetrando nos seus ossos, banindo o frio que fazia seus dentes baterem uns contra os outros.
___ Amanhã, deixo você na estrada e volto, não quero aparecer junto contigo, as pessoas vão falar.
Elas falariam de qualquer jeito.
__ Por que voltou?
Miguel ficou calado, como se não tivesse ouvido.
__ Por que não responde? Voltou por algum motivo. Você não arriscaria a vida só porque tava com saudade de casa.
Miguel sentou-se na cama e olhou para o fogo, como se estivesse evocando lembranças apagadas em sua memória.
__ Ás vezes, Rosa Negra, as lembranças de casa, são a única coisa que nos alenta quando estamos na estrada. Você se sente inseguro com as coisas que não são familiares. A insegurança é perigosa, é quase como a covardia. E a saudade, se torna uma tortura. Então, a gente se apega à lembrança mais banal. Lembra do cansaço, das colheitas que foram danificadas pela inundação ou pelo ataque de uma praga. Lembra das fofocas, das festas de sanfona, lembra da falta de energia elétrica, do cheiro de terra molhada, das pernas presas na lama misturada com estrume de vaca e cavalo. E percebe que não importa como parece ser o fim do mundo, o seu lar fica enraizado no peito e sempre dói está longe dele.
Ela lembrou que seu maior desejo era partir. Tinha certeza que não sentiria falta daquela vida, daquele lugar.
__ Se um dia sair daqui, não volto mais.
__ Pode não voltar, pode até ser feliz, mas no escuro, quando tiver só, vai lembrar, e seus olhos ficarão umedecidos, a saudade vai bater, de alguma forma não pode se livrar do passado, ele te acompanha sempre, ele não te deixa esquecer.
Açucena imaginou que ele estava falando da Dalila, a amante. Talvez, tenha sido ele mesmo, sem querer, Ribamar dissera que ela o perseguia, descaradamente. Era disso que ele não esquecia.
__ E o que é que você não esquece?
Ele não respondeu, fugiu da pergunta.
__ Olha, vem deitar. Vou ficar de vigia, quando o céu começar a iluminar, eu te chamo e você vai.
__ Por que disse que sou bonita como a princesa Rosa Negra?
__ Por que é verdade.
__ Mais a princesa é adulta.
__ E você não é criança, você já é grande e muito inteligente, fala como as moças da cidade, Ribamar tem orgulho, queria te mandar para estudar na cidade.
Ela sabia, mas era esse um dos sonhos que foram frustrados. O irmão não tinha como sustentá-la na cidade. Além disso, até pouco tempo, ele precisou muito de sua ajuda.
__ Não devia ter voltado.
Ela se afastou e sentou, o corpo tremia de frio, A roupa ainda estava úmida. Não conseguiria dormir. Ficaria a noite toda sonhando. Estava no castelo dos seus sonhos, com seu cavaleiro, e quando o dia amanhecesse, eles veriam o sol e seriam felizes para sempre.
__ Vai passar a noite toda ai, em pé?
Miguel olhava para o fogo. Virou-se para ela e falou, respondeu a pergunta que lhe foi feita antes.
__ O que me fez voltar foi a esperança de que ainda encontraria minha vida, a vida que deixei aqui. A vida que foi dura, mas também foi gentil. Aqui tinha amigos de verdade. A cidade é tão perigosa. Não se sabe se quem te sorri gosta mesmo de ti ou tá ganhando tempo para te dá uma rasteira. Aqui todos se ajudam, ou se amam ou se odeiam, sem falsidade. E eu vim, por tua causa.
Ela sentou e ouviu atenta. Devia ter fechado os olhos sem perceber e já estava sonhando.
__ Voltei porque me foi prometido uma noiva. Seu irmão nunca te contou?
Ela acenou em negativa. Lembrou-se de cenas da infância. Foi ele que disse pela primeira vez que eram noivos.
__ Sua mãe, disse que você veio ao mundo para ser minha, que se não fosse eu você teria morrido. Ela estava morrendo e me fez prometer que cuidaria sempre de você, que quando o Ribamar fizesse a família dele, pra eu te proteger, disse que eu não seria muito velho e que poderia casar contigo, que ela abençoava a gente. Foi por isso que pensei que tava com raiva de mim. Pensei que quando você ficou crescida, teu irmão tinha te contado, antes de ir embora eu disse que ia voltar, que ia cumprir minha promessa.
__ Não quero que cumpra promessa nenhuma! Não quero casar com você, só vou casar quando me apaixonar de verdade.
Se pelo menos fosse por gostar dela, gostar de verdade. Mas para cumprir com a palavra. E ele só tinha doze anos, palavra de criança não podia ser levada a sério. Sentiu-se profundamente triste. Agora sabia que estava acordada. No sonho, ele teria dito que ela era sua alma gêmea. Como nos livros.
__ Eu peço perdão por ter ido embora. Mas eu voltei e vim te buscar. Não queria ir embora daqui?
__ Não assim!
__ Não posso ficar.
__ Então vá logo!
__ Por que não acredita em mim?
__ Acredito.Mas não sou obrigada a aceitar.
__ Por que fica me olhando?
__ Por que não falou nada desde que chegou?
__ Seu irmão sabe, eu só queria que você fosse se acostumando comigo.
Ele não podia entender. Aquela era a vida que sempre repudiou. Por isso Ribamar lhe dissera que tava chegando a hora dela casar. Mas não casaria para agradar ninguém! Mesmo que o noivo fosse o príncipe que sempre esperou!
__ Não!__ Ela gritou, cheia de revolta.__ Não se casa com alguém por está acostumado à ele, mas por está amando. Sabe o que é isso?
__ Sei. Amar é muito mais do que dizer palavras bonitas. As palavras mentem.
__Não me diga!
Ele a fitou e sorriu. Sabia o que ela pensava. Isso era o resultado de todos aqueles livros.
__ Rosa Negra, eu era muito novo, mas cresci com você na cabeça. Eu te olhava e ficava imaginando como seria mulher feita. Eu te amei desde sempre. No começo como se fosse minha filha. Você era só um bebê. Mas quando eu fui embora sonhei que você seria uma moça tão bonita. Em todas as histórias que li, sempre imaginava que eram os teus olhos, o teu cabelo, queria saber qual o som da tua voz. De alguma forma, idealizar é um jeito de amar. E eu te amei, mesmo com um rosto que não era o teu, mesmo com uma voz que não era tua. Você se tornou muito mais que meus sonhos. Eu te esperei todos os anos. E por isso voltei. Por que sabia que você também me esperava. Por que quando se acredita numa coisa, se acredita pra valer. Nós acreditamos que teríamos uma vida, eu já era adulto, mas sonhei junto com a menina que você era. Diga que não acreditou, que se zangou porque eu não estava aqui pra te ver desabrochar!
Ela não disse nada. Não podia acreditar que ele pudesse ter amado uma criança.
__Mas foi melhor assim. Eu sonhei com algo e encontrei muito mais do que esperava. Se tivesse ficado aqui, Você acabaria virando minha irmãzinha, e eu não poderia cumprir minha promessa.
__ Nunca gostou de ninguém?
__ Sim, mas foi tudo rápido, eu gostei, mas amar, só se ama uma vez, só se ama de verdade uma pessoa, um lugar, um objeto.
Por que não a abraçava, se a amava como dizia, ou parecia dizer.
___ Está chovendo muito.
__ A chuva está levando o passado, amanhã com o sol, nós poderemos ir para casa e começar uma nova fase. Eu vou ter que ir embora, e cabe a você decidir se vai comigo.
__ Por que me contou só agora?
__ Por que, como disse o rei Salomão, há tempo pra tudo. Por que você não está feliz?
__ Por que... __ ela se aproximou e segurou a mão dele__ Eu não queria que tivesse voltado por causa de uma promessa.
Ele a abraçou e falou no ouvido dela:
__ Se não tivesse promessa, eu teria ficado com você de qualquer jeito. Rosa Negra, quando ouvi a estória dela pela primeira vez, imaginei ela de um jeito e disse que só casaria com uma moça que fosse como ela, você é. Se não fosse a promessa eu teria te visto e te reconhecido. Eu te amei antes de você nascer.
Açucena o abraçou com força. Não queria que fosse noite. Queria que fosse dia, assim teria certeza que tudo não passava de um sonho. Seu cavaleiro andante tinha vindo resgatá-la. Então iria aproveitar o aconchego daquele abraço, antes que o sol chegasse e lhe mostrasse algo que não sabia se queria ver. Talvez fosse isso que significava dizer que a luz destrói a escuridão. A ilusão de um sonho era como a escuridão, deixava a pessoa se conformar em imaginar e esquecer de realizar. Mas, se o sol aparecesse levando suas ilusões, lembraria daquele sonho, para sempre, porque ele seria o mais perfeito de todos os que já havia sonhado.


Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!

 
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Helayne
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Enviado por Tópico
ângelaLugo
Publicado: 23/07/2009 19:28  Atualizado: 23/07/2009 19:28
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Localidade: São Paulo - Brasil
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 Re: Uma noite chuvosa p/ Helayne
Olá Helayne

Maravilhoso o teu conto
fiquei apaixonada pela personagem
principal...Muito bem escrito...
O destino prova que amor as vezes
existe somente um em uma vida
Parabéns

Beijinhos no coração