Roteiros Andaluzes - I - Córdoba
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chegaste já no final do entardecer, quando
o sol queimava a ponte romana sobre o Guadalquivir
(sempre turvo), e atravessaste as ruelas
junto à mesquita-catedral – na magistral gonzalez frances,
onde a sombra te aliviou por um momento
a fé;
pelo bairro judeu caminhas às avessas,
tens todo o tempo para perder no Sepharad antigo
e o tetramorfo bíblico de Ezequiel arde-te
no estômago com um Cava Freixenet Extra perigosíssimo:
Marcos, o Leão
Mateus, o Cordeiro
João, a Águia
Lucas, o Touro
tu viste-o na mesquita, adivinhaste-o depois junto da
estátua de maimónides, onde a sabedoria se une ao caminhante
pela magia simpática de um simples toque;
agora anoitece,
os luzeiros descem no horizonte e inflamam de escarlate
as fachadas tão antigas como o sonho visigótico;
tudo o que foste até chegares a esta cidade dos califas
é tão etéreo como um bilhete esquecido
e agora podes interromper o fluxo das galáxias que se expandem
junto a este Guadalquivir (sempre turvo)
e sabes o segredo
porque é o segredo o instante
é onde tudo é panta rei do tempo curvo;
e tu agora sabes o segredo
não se deve, jamais, olhar atrás
ou o tetramorfo fará de ti mulher de Lot;
castigada impura,
petrificada em estátua de sal.
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[Considerações sobre a minha obra]
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A minha obra é linda.
A minha obra, no fundo, não presta.
A minha obra quero emigrá-la longe porque me pesa imenso.
A minha obra devia já ter sido publicada na Albânia e na Nicarágua.
A minha obra é um alfinete e uma aranha a massacrarem o espantalho-pop.
A minha obra dizem que tem referências a mais e ninguém a entende direito.
A minha obra nunca está a par de mim: ou vai à frente ou atrás como um cão.
A minha obra é assim tipo Cesariny-Leminski-Frost - só que muito melhor.
A minha obra só tem um leitor, que sou eu próprio, e perco a paciência com ela com frequência.]
A minha obra nenhum dos meus amores gostou dela.
A minha obra, por sua vez, não gosta de mim.
A minha obra não tem nada por acaso, é esotérica benemérita e planetérica.
A minha obra, se eu a lesse sem saber o que era, vomitava de asco.
A minha obra tem as minhas mãos, que envelheceram desde os vinte anos.
A minha obra, na versão sua sintética, é o pim-pão-pum.
A minha obra é tão adulta que obriga-me a uma infantilidade completa.
A minha obra só existe porque sou fumador.
A minha obra define à partida quem escrever uma só palavra sobre ela.
A minha obra tem profunda weltanschauung, mas apenas às quintas-feiras depois das onze.]
A minha obra é e não é (lembrar o grego).
A minha obra chegou ao ponto de não ter vaidade alguma em ser uma obra.
A minha obra tem colarinhos finos e toma rapé.
Deixou o resto a uma bailarina por amor.
E na conversa, algures, citou Diógenes e Séneca
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Qualquer Coisa Sobre Rita
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Qualquer Coisa Sobre Rita
Seria de Modo a Limitá-la ao Espaço
Onde o Ângulo Que Vai do Lábio ao Braço
De Quem Olha Não se Evita.
Esses Dois Mil Rapazes Confusamente Idênticos
Esse Jeito Certo de Queda Livre Ostentada Em Série
Qualquer Coisa Sobre Rita
Me Ficou Nesse Banco de Jardim na Madrugada
Fornicação e Romance Dupla Parada
De Sentinela Na Minha Escrita.
Para Que Só Tu Passes Quando Eu Sem Vírgula
Rita
Rita
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Maja Vestida
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teu suave passo vermelho & negro (Stendhal), o perfume
que o ar absorve lento (em francês, Hans Castorp
no monólogo a Clavdia Chauchat) e o dorso e a anca
movimento calculado para a cadeira busca (Proust
e outros) quando as pernas se cruzam e a saia
sobe três centímetros (Bataille?) as mãos
pousam na mesa (as mãos são suas) e o olhar
vago pelo espaço se detém (Joyce e o «Ulisses»,
no fim, yes yes yes) em mim (Mário Osório,
poeta do século, tarde au café).
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Roteiros do Início da Europa (II)
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quando chegares a cork city deixa-te levar
pela alegria do velho irlandês que entoa o «get on bord!»
ao partir do ballygarvan enquanto tu
o cruzas ainda confuso pelo antigo gaélico segredo;
esta viagem deves fazer sozinho;
atravessarás a winthrop street até a contornares e entrares
na contemporânea phonehouse - não deves esquecer os teus
amigos, longe na solarenga Mostar ainda;
no Ryan’s pub junto das docas, uma fresca guiness de espuma tão leve,]
que o rapaz encherá três vezes, esperando um minuto e meio
entre cada gesto, far-te-á compreender como o mundo
não é mais do que aquilo que tu trazes contigo;
e tu não trazes nada, tu és o começo de tudo,
neste aroma céltico.
um texano hippie, de longa cabeleira, notará como trazes
a aliança do anarquismo no fio do teu pescoço; e quando ele
te perguntar «you’re one?», dir-lhe-ás simplesmente
«I just pretend so», porque queres conhecer;
tu queres desaprender tudo o que europa de te ensinou tão mal
sobre si própria, afinal
na outra margem, deves passear ao longo do river lee;
tu sabes bem como te poderias perder nele para sempre
naquelas águas tão escarpadas e miúdas ao mesmo tempo
onde duendes e gnomos banhavam
os seus arcanos mistérios
nem deste por isso, mas entraste já no countryside
onde tudo é tão verde
tão verde e tão espontâneo, que só o lee
te acompanha agora, à tua direita
sente o sangue a circular pelo teu corpo
consegues escutá-lo, correndo;
agora entendes tudo pela tua pele e não pelo pensamento
que é como se deve saber das coisas com amor
a noite começa e acaba cedo aqui,
com belas raparigas tão loiras e de sorriso tão perfeito;
também aqui a europa em copos de plástico pelo centro da
cidade, que morre pelas onze horas logo e
estranhamente
mas tens ainda tempo
e trazes Mostar ainda no coração, sorris orgulhoso,
porque o amor nos torna orgulhosos
e quando pela noite encontrares o ritual celta nos lábios
saberás que tudo fará sentido daqui a muitos anos, que a juventude]
é essa meia consciência;
mas não agora
não agora, em cork city
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linda girl
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à elsa
linda girl,
linda girl,
fica comigo, nesse vestido blue
teus olhos carvões,
linda girl
tua pólvora d amor,
fica comigo, fica comigo
fica comigo,
nesse vestido blue
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[Poema]
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que o poeta não morreu, apenas vive
____disfarçado;
ao que a época obriga e, digamos, uma assinalável
_______________________falta de dinheiro.
às duas por três, seu olhar cintilante de quiosque,
já não chega para o tabaco; que isto de escrever muito
amo-te__________amo-te__________amo-te
não beneficia o avançado estado de coisas; ou essa imediata,
__________precisa__________obscena
noção de que já foi tudo dito, há muito, há tanto,
_que o café do poeta traz punhais
_______e alçapões na chávena morna
ou, em Resumo - muitos anos depois (tendência biógrafa de
_______donas de casa da Literatura)
apenas estava triste; e ei-lo labareda e vagão direito à Cintura-Abaixo,
_________________por simples falta de Tânia.
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Meu tio inglês
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meu tio inglês morreu a semana passada
- dizem que era velho como a Invencível Armada –
e na conversa citava Diógenes e Séneca.
três fortunas gastou nos clubs e dancings londrinos
- dizem que tomava rapé e usava colarinhos finos –
e na conversa citava Diógenes e Séneca.
privou com a rainha (a única mulher a quem obedeceu)
- dizem que a única família de quem gostava era eu –
e na conversa citava Diógenes e Séneca.
deixou-me uma caixa de charutos e um humidificador
- dizem que o resto deixou a uma bailarina por amor –
e na conversa citava Diógenes e Séneca.
meu tio inglês morreu a semana passada
privou com a rainha (a única mulher a quem obedeceu)
era velho como a Invencível Armada
a única família de quem gostava era eu
três fortunas gastou nos clubs e dancings londrinos
deixou-me uma caixa de charutos e um humidificador
tomava rapé e usava colarinhos finos
deixou o resto a uma bailarina por amor
e na conversa citava Diógenes e Séneca.
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O Mário Cesariny Era
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O Mário Cesariny Era
O Melhor Poeta Dos Que Não Esteve No Orpheu.
Aproveitou A Alguém? Aproveitei-O Eu.
De Rompante Pelo Vício E Na Quimera. O Mário Era
Um Heterónimo Meu.
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[Si quelqu'un demande après moi]
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Si quelqu'un demande après moi,
Sophie, tu lui diras,
Que je suis à la Nouvelle Orléans, pour écouter du Jazz.
Dit lui que je suis fatigué de n'être rien,
D'écrire sur les serviettes en papier.
D'oublier toujours mes hier,
Et de n'avoir d'avenir, que demain.
Et si personne ne me demande,
Sophie, ne trouve pas étrange un tel fait.
Car moi je sais,
Ne vivre que pour ma clarinette.
À la Nouvelle Orléans, où tout est fête,
Je peux être moi:
Jazz-être.
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