Poemas, frases e mensagens de fotograma

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de fotograma

descartável

aquarela

 
busco aquela qualidade indefinida
que se encontra nas melhores aquarelas
onde arde a luz solar e te convidas
a viagem matinal por barco a vela

e transporta além do espaço onde se abriga
solo fértil para manchas e procelas
em torrentes derramando-se aguerridas
à mão firme que pincela sobre a tela

não está no enquadramento ou nas cores
nem tampouco em seu traçado ou naquela
paisagem sempre em mente aonde fores

é a cria dos teus óleos em m'ia pena
a tornar uma moldura uma janela
onde enfim tu me encontras e me acenas

11 sílabas, tônicas 3-7-11, primos :)
 
aquarela

a vida é um porre homérico

 
todos querem mais da vida
mais um pouco
e mais e mais
do tanto já vivido

nunca é menos
mesmo que transbordando
ou já derramado

eu quero menos
já estou de porre
 
a vida é um porre homérico

nirvana

 
sinto o cheiro da fêmea no ambiente
e atordoado, trôpego, caminho
em direção ao ventre. flor no cio
despetalo, notívago, entre os dentes

em s'a carne macia sou um crente
que de louvores cobre-lhe baixinho
e, comungando, bebe desse vinho
que, à alma avivando, sobe quente

é um torpor que estimula uma batalha
entre lençóis, suores e o que valha
pelo reino dos céus dos bem contentes

e feridos e alegres caminhamos
de mãos dadas, por glórias e por ramos
rumo ao nirvana, nosso, lá à frente
 
nirvana

olho defunto

 
olho defunto
bóia na superfície
corpo no fundo
 
olho defunto

mil contos no ar

 
a porta se entreabriu
pela fresta, aqueceu o sol
brevemente, uma parte do carpete
do entediado escritório

a ponta do lápis
traçava planos no bloquinho
o telefone cochichava ao ouvido
quando um copo se destacou do porta-copos
e a porta se fechou

a ponta do lápis
gesticulou e o copo repleto d'água
aproximou-se sem jeito
posicionando-se sobre a mesa

a cadeira se mexeu desconfortável
enquanto uma mala achegava-se a seus pés

bateu no gancho o telefone
tão abrupto que, rolando pela mesa
teria caído o lápis, sua ponta desgastada
não fosse o providencial amparo do copo

a cadeira deu um passo à frente
e a mesa abriu espaço para a maleta
era visível a tensão no ar
descrevendo espirais esfumaçadas

algumas persianas próximas
velando o movimento de passos e rodas
fecharam-se por precaução
como sempre convinha

o copo foi esvaziado
e jogado no cesto mais próximo
e também um cigarro nas últimas
apegou-se ao fundo do cinzeiro

a tranca da porta girou
acompanhada pela trinca da maleta
em cúmplice sincronia

a cadeira permitiu-se um ranger
e o telefone saiu do gancho
do cinzeiro, uma pálida luz
ainda emitia, fraca

havia concordância nas notas
como nos rabiscos no bloco
mas não na gaveta que, sonolenta
se abria ao rigor da pistola

ela mirou o espaço adiante
a maleta se fechou bruscamente
e a cadeira deslizou para trás
desejando com suas rodinhas voar
para longe dali

mas era tarde demais
foi furada e o carpete e as persianas
respingados

a maleta nunca mais foi vista
 
mil contos no ar

mesmo sem querer

 
mesmo sem querer
tenho o mundo ao meu alcance
na distância de 1 click
fosse meu desejo
porém, abraçá-lo
não bastam mil braçadas
e o desejo naufraga
descanse
e fique
 
mesmo sem querer

dia do excretor

 
deixo aqui meus tapinhas nas costas de todos por suas últimas sobras-primas

e que tão bem se ocupam do nobre orifício em adubar flores
 
dia do excretor

sede deserto

 
trago a trégua
de improváveis fontes
fonte de renda
fonte da juventude
fonte Arial
nenhuma me sacia
o que quero é água!
às trevas a trégua!
vago divago
pelo deserto
sem paz
quero e sou água
que por léguas
e léguas
se desfaz
 
sede deserto

na nudez do falo

 
na nudez do falo
lês nas estrelinhas
vesga de regalo
e a mudez definha
 
na nudez do falo

pastoureiro

 
homens são gado
vesgos e vagos
vagam no pasto
boca na grama
fé no pastor

acolhe dor
pensa na grana
povo tão vasto
pecam e pagam
pesca pagã

idolatrado
verde este vale
vede-me casto
boca na grana
pé dólar lavra

safra d'amor
colhe aos goles
galhos já gastos
gosto que vale
cédula irmã
 
pastoureiro

exclusão

 
quis tudo nada tive
era o excluído de toda lista
um pária invisível à margem do todo
não era ninguém

e assim comecei
catando qualquer coisa à mão
bituca de cigarro e tiras de jornal
tampinha de garrafa e velho vinil
barbante e retalhos de pano
papelão e pente sem dente
radinho de pilha pifado
bobs com cabelo de mulher e tudo
um tanto de parafusos ou menos
tudo que ninguém mais quer
tudo meu só meu
tinha tudo nada me faltava

dizem que caí doente
mas doente era toda essa gente
invejosos de tudo que juntei
me atiraram em cima dum caminhão
e no hospital inventaram uma tal
de intervenção cirúrgica

um a um
tudo que juntei do nada
num passe de mágica
sumiu

removeram tudo nada sobrou
e em meio a tudo nada de mim
em lugar nenhum
 
exclusão

tao

 
todas as portas são abertas
todas as curvas são retas
todos os obstáculos
meros oráculos
ao homem que sozinho
conhece o caminho

inspirado pelo belo soneto de Francisco Zebral:

http://www.recantodasletras.com.br/sonetos/3945343

e pelo Tao te Ching dos chineses
Tao significa caminho
 
 tao

vinho em copo de cachaça

 
vinho em copo de cachaça
trago suave, e os brindo
o que contém, não a taça
é o que traz à alma abrigo
 
vinho em copo de cachaça

clamor

 
o que queima em minhas entranhas
é fulgor descontrolado
que me fere, me arranha
se derrama a todo lado

sou culpado sendo vítima
desse mal que nos assola
é uma pena, pena mínima
deveria ser degola

nos deixamos abater
como gado que nós somos
pelos pastos, por lazer
uma bala e já fomos

pelos campos rio rubro
marcha quente, indecente
é um massacre e me cubro
lavo as mãos por essa gente
 
clamor

limbo

 
lá fora, sem um prazo, azul celeste...
cá dentro, pura urgência e talvez
lembrando que num dia foi-se um mês
lamento pelo adeus que vem do oeste

areia cobre os campos e mi'as vestes
sufoco mas não morro, ao invés
sou tronco desfolhado e meus pés
raízes do passado que me deste

o tempo, inclemente, passa rápido
roçando por meus galhos seu queixume
penoso, vai embora sem seu rapto

assim como a areia pelos dedos
também meu verde pasto é como lume:
acendo quando quero longe o medo
 
limbo

arapuca

 
atraído por migalhas -
foi meu fim.
hoje canto dissabores,
deus me valha!

ontem livre, qual um canto
sobre amores
por encanto vi-me preso
com mortalha

se no peso dos rancores
duma gralha
eu detive, receoso,
alguns temores

a promessa de sabores
foi-me falha
e traído na batalha
fui enfim

precisando de alimento
pros meus sonhos
tão à frente de meus olhos,
tão à frente

não importa nada mais
que tal presente
nem me acerco dessa cerca
em que me ponho

tenho sede, tenho água...
não entendes?
tenho tudo exceto o canto
ao qual te rendes
 
arapuca

Bebendo sozinho sob a Lua

 
em meio às flores, um jarro de vinho
bebo sozinho, ninguém por perto
a taça elevo, convido a lua
vejo minha sombra, e já somos três

pena não saber beber a lua
e minha sombra só ficar na sua
mas serão elas minhas companheiras
de bebedeira na primavera

eu canto e a lua se abrilhanta
danço - tremula a sombra, se parte
enquanto sóbrio, fomos felizes
quando bêbado, cada um parte

possa eu rumar livre de saudade
até nos vermos na Via Láctea

Li Bo, "Bebendo sozinho sob a Lua", circa 740
adaptação minha, a partir de algumas traduções para o inglês
 
Bebendo sozinho sob a Lua

torcicolo

 
torcicolo
esse pequeno mal foi o responsável pela decadência humana
pelo estado em que nos encontramos hoje
com lama até o pescoço

sim, pois
em determinado momento na história
estávamos em plena marcha pelo progresso
admirados com os altares altíssimos
que construímos para nossa glória eterna
admirados com as mil filigranas
de irrelevâncias cosméticas
a decorar seus imensos murais
e de tanto olhar para cima, crec!
aquela dor no pescoço
aquela imobilidade

não, nunca mais
não é para nós

passamos então a olhar para baixo
para nosso próprio umbigo
para nossos próprios passos
para nossos pés imundos
para minhocas e vermes
para a pequenez que o cotidiano nos oferece
sem jamais novamente olhar para cima
ou para frente

antes fosse diabetes e deixássemos doces de lado
 
torcicolo

platéia

 
vida, lúdica vida
ora teatro, ora um jogo
onde tudo vale, tudo é engodo
importa vencer e domar a platéia
ganhar aplausos e marcar ponto
ninguém pergunta o porquê
para quê tanto drama e disputa
para agradar alguém que não se vê
 
platéia

desilusão

 
dizem-me que ando desiludido
olham-me compadecidos, cabisbaixos
murmuram-me afagos como quem amamenta
calado os observo de soslaio
pois é um mundo de ilusões
e quem não mais as tem, planta ou acolhe
vive em estrita dieta de ex-iludido
e é feliz na magreza dos dias
 
desilusão