Poemas, frases e mensagens de Sant'Ana

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Sant'Ana

Clones

 
Gostar é bom. É natural, humano e também racional e denúncia de carácter.
Copiar é preguiçoso, ambíguo, mal-amado, bastardo.
Roubar é feio, vil e purulento.
Por isso roubar o que é de outros é o mesmo que tentar levar no sono dos justos o pedaço de cérebro que fabrica os sonhos. O que dá bónus de vidas à vida corriqueira e alinhada, é fazer do comezinho a vida de outros e tentar decalcar na própria vida a que não se tem arte para ter.
Quero eu com isto dizer que plágio de letras é o mesmo que amputar-me. Que até podem clonar-se de mim, mas nunca terão aquilo que só eu vejo e tenho capacidade de revelar.

*Desabafo de quem voltou a ser plagiada.
 
Clones

Hera

 
Antes de ir encho-me de todas as coisas que me fazem vida.
O teu cheiro, a tua voz, os teus passos no corredor quando chegas tarde na noite e eu finjo dormir só para te dar o prazer de me despertares como uma princesa. Preguiçosa, que só ao segundo beijo o teu hálito morno parece ser a dose certa para me fazer abrir os olhos e ver-te, ver-te sempre de forma renovada nas rugas que marcam os nossos caminhos.
Antes de ir saboreio-te nas gargalhadas, soltas, ecoadas, coladas a estas paredes que de nelas me encostar sinto o teu abraço à volta da minha cintura, os segredos na orelha desta casa.
Por isso pintei uma hera.
Envolvi-me nela e abraçei esta coluna como se dela me fizesse estátua.
Antes de ir vou estar: seja estátua de olhar, coluna de suster ou hera de agarrar.
E se me tentares colher saberás que na hera há o poder de te envolver, apertar, germinar rápido e trepar, atando-me a ti para todo o sempre. Como o fazes quando me beijas tarde da noite.
 
Hera

Cartas Capitais-Vinte

 
Capital, Abril de 10

A culpa é tua!
Toda tua! Até a Primavera se foi e arrastou as flores da macieira e as letras do nosso livro misturaram-se todas!
Fazes isto num propósito, que eu bem sei! Castigas-me, obrigas-me a lembrar-te sempre, a não descansar deste cansaço que me acalenta na volta do dia seguinte, a nova flor a despontar, os versos organizados na tua vontade, que queres tu?

Grita!
Queres que eu grite? Acaso não te chega a minha voz em vinte cartas que te enviei e do nada te recebi?!

Não te sei, não me quero.
Só te quero a ti... só te quero a ti.
Não podes fazer-me isto. Vais-te e ainda levas a Primavera e os poemas contigo...
 
Cartas Capitais-Vinte

Manhã sem tempo

 
Acordou com os joelhos frios, os pés quentes, a mão agarrada à coberta que teimosamente presa não aconchegava o pescoço.
Uma leve luz filtrada pelos cortinados e às bolinhas pelos furos da persiana semi-corrida, piscou-lhe nos olhos. Fechou-os de novo, suave, aquela sensação boa do lençol macio de anos de uso, a almofada feita ao jeito da face, tudo silencioso, o gato aninhado entre ela e o homem que dorme a seu lado.
Olhou para o relógio: 6,30 da manhã.
E fica-lhe aquele numero a martelar, como se de alguma coisa importante se tratasse, que 6,30 da manhã é tão só uma hora como outra qualquer e agora e aqui deitada está-se tão bem, tudo tão sereno, em paz consigo.
Já passam mais de 40 minutos desde que o despertador cumpriu a sua função, mas só nos outros dias, que hoje ela amordaçou-o ou deu-lhe ela o tempo para ser somente um marcador de numeros, não um avisador de levantar os outros da cama, onde se está tão bem, tão bem.
O homem solta um suspiro, quase um silvo, os dedos vêm para fora da dobra do lençol macio a coçarem a barba que cresce desde véspera. A mão forte puxa a coberta de esticão e ela ficou agora mais destapada, os joelhos mais descobertos, o gato cravou as unhas para manter o seu território fofo e quente entre o homem e a mulher.
Ela quer voltar a adormecer mas o corpo não deixa, demasiado viciado na preocupação do levantar ao toque do zunido do despertador, anos demais a erguer-se porque tem de ser, é a vida...Ficar assim, a saborear este pequeno fruto, verde pela novidade e cobiçado porque só desejado, faz da simplicidade o gosto pela descoberta do tesouro.
A mão toca o ombro do homem, de costas para si: ela quer saber o que ele está a sentir, se igual a ela, tocá-lo e achar que o calor do corpo dele provém desta serenidade, talvez quem sabe, enroscar-se nele, deixar-se beijar, de novo adormecer, de novo acordar, repetidamente achar-se unica no mundo confinado àquele quarto de luz filtrada.
O homem dorme.
Ela recolhe a mão e abraça os joelhos frios junto ao peito.
Pensa que a felicidade é momento solitário.
O hábito obriga-a a olhar o relógio: se se tivesse levantado, onde estaría agora? Ouve no silêncio do quarto a buzina dos carros, a conversa dos anónimos. Abre os olhos. Não ouve nada, talvez um som fundo, difuso, o ronronar do gato, o ressono marulhado do homem.
Hoje a mulher não se levanta nem corre.
Ficou ali a ouvir-se, a sentir a claridade às bolinhas no recorte do ombro do homem que tem a barba a crescer, agarrada às pernas presas para que estas não lhe fujam ao comando e num impulso, agarrar o telefone e ofegante dizer "estou atrasada, já vou a caminho".
 
Manhã sem tempo

Cartas Capitais-Oito

 
Capital, Março de 21

Perdoa-me, perdoa-me por tudo o que te disse, por toda a mentira que disse, todas as palavras torcidas que queríam dizer o contrário, toda a amargura que me são saudades de ti e me rasgam em não te saber, não te ouvir, não te ter na minha mão quando nas noites a cama é grande e o soluço das lágrimas ecoa por dentro de mim a chamar o teu nome.
Não vês tu que ainda te quero?
Depois de tanto tempo ainda te quero e minto porque me escora na falsa palavra a sustentabilidade para me fazer viva até tu voltares.

Volta, volta e nada te pergunto, apenas quero que voltes para mim.

Tua no nosso beijo
 
Cartas Capitais-Oito

Cartas Capitais-Vinte e Sete

 
Capital, Abril de 21

Dias, muitas horas a resistir como um alcoolico, como um tóxico a atirar-me sobre as linhas que me dilaceram como o combóio que separa duas metades: tu e eu.
Ou só eu...
Só eu te escrevo, só eu reservo no peito apertadas as frases devolvidas da mão do carteiro.
(-Olha!Mais uma! Ninguém a lê!)
É assim que o carteiro me sabe a morada. Aquela que recebe mais cartas devolvidas do que o cheiro das novas.
Por isso devo ser eu, apenas eu que me amputo em duas metades pela ida e volta da carta que te envio.
Resisti, quanto? Um nada de tudo. Como o bêbado regresso à garrafa, este de tinta que molha a pena das penas em que te tenho.

Um beijo.
Um beijo.
Já o disse? é apenas para te mandar um beijo...
 
Cartas Capitais-Vinte e Sete

Conversas ao Espelho-Chorar Azul (1)

 
Mais uma ruga. Não, duas pequeninas. Mas quando será que o creme vai fazer efeito? Ontem não tinha estas rugas...ontem tinha os olhos para cima, puxados como os dos gatos...talvez tenha sido de não dormir...e de chorar...
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(Não percebo onde errei! Não estávamos felizes? Que aconteceu? Pensei que gostavas de mim...fica ao menos esta noite, amanhã de manhã eu faço umas torradas com mel, como tu gostas e falamos sobre tudo isto! Vais ver, ainda te vais rir desta tua precipitação, essa pressa em fechar a mala, encafuares tudo a monte num saco de fim de semana! ...Não dizes nada, nem sequer olhas para mim... Olha para mim quando falo contigo! Olha para mim!!! Larga! Larga a porcaria da mala, dá-me a tua mão, vê, põe aqui no meu peito, não sentes como tenho o coração?! Hã? Afastas-me? Quando me tocavas não te parecía tão repulsiva! Queres ir? Vai!!! Vai e não voltes! Sabes que se fores agora é para sempre, sabes disso não é?! Queres ajuda para fechar a mala? Eu até te fecho a mala...se pensas que vou ficar para aqui, moída, a remoer... Olha que há quem me queira! E muito! E bem!)
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Tenho os olhos inchados...não se devíam notar este vincos, aqui no cantinho dos olhos...Malvado! Foi ele que me fez estas rugas! Ele há-de voltar...tenho que pôr o creme mais vezes, não quero que ele me veja com estas rugas. Não quero que perceba que sinto a falta dele, a mão dele a passar na minha cara... ele tem umas mãos lindas, sábias. Sabía sempre alisar-me estas rugas da testa, dos olhos, bastava olhar para mim e sorrir-me, dar-me a mão...
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(Vais mesmo, então...não vás, peço-te, não acredito que tenha acabado! Eu sei que tu me queres! As noites de amor que tivémos e quando me olhavas, não podíam ser uma mentira que ninguém finge assim... Que queres? Que te implore? Eu ajoelho-me se tu quiseres! Não vás que eu amo-te! Não me voltes as costas quando te falo!)
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A cama está tão grande. A noite foi tão grande. A dor que sinto é tão grande. Como é que vou viver agora depois que ele se foi?
Uma cama de casal para uma mulher só. Uma noite tão azul para uma mulher sem amor. Uma dor tão grande para um amor tão pequenino.
Não vejo rugas... está tudo turvo, só água a desfazer a máscara que componho.

Olá, voltei!!!
 
Conversas ao Espelho-Chorar Azul (1)

Conversas ao espelho - Por fora tudo na mesma(4)

 
Não sinto nada, nada de diferente. Continuo a ser a mesma. Olho-me e vejo a mesma de sempre. Talvez este espelho devesse ser mágico e dar-me respostas.
-Oh espelho! Eu ainda sou a mesma?
Mas o espelho não responde, talvez esteja zangado comigo por eu já não ser a mesma. Por fora sou. Mas só por fora, para ti espelho teimoso e mudo que não me respondes… Cá dentro de mim há mares, entendes? Grandes vagas que me levaram até ele e mesmo que eu lutasse contra o rumo traçado pelas marés as minhas mãos tinham escrito que teria que ali aportar. Tu não entendes espelho porque nunca amaste, só te enfeitiças por instantes de quem de ti se aproxima mas amor, assim como o meu, cravado, tu não sabes, tu não agarras ninguém!
Não sinto nada por fora, nem o saber-me falsária de outro amor. Não o fiz de intenção, apaixonei-me… como tu espelho traidor que agora me atiras uma mesma que já não sou.
 
Conversas ao espelho - Por fora tudo na mesma(4)

Se um dia...

 
Diz-me que te lembrarás de mim depois de eu ir, mesmo que seja só na partida da separação de nós dois, diz-me que pensarás em mim de vez em quando mesmo que o faças só porque a melodia que toca no rádio era a que eu cantarolava, diz-me que te lembrarás de mim quando escutares alguém chamar um nome igual ao meu e até procurarás saber se serei mesmo eu, diz-me que te lembrarás de mim no cheiro da hortelã-pimenta, era esse o meu hálito lembras? Ou então não digas nada, não lembres nada, fiquemos os dois como somos agora, a segregar todos os pormenores um do outro como se algum dia precisássemos de dizer, anda diz-me que te lembras de mim se um dia eu partir.

Este foi o texto do meu descontentamento, um dos que me "levaram".
 
Se um dia...

Encapuzado

 
Quem é?
É? Pode ser, mas também a sombra leva a melhor sobre o que se espera ver depois de desenhado e até mesmo os riscos que se rasgam no ar fazem esboço do que se espera os outros compreendam tanto ou tão melhor de quem agitou o braço, tapou a boca, abafou o sussurro.
Pode ser, deve ser... Ou talvez não, que julgo terá rosto crestado e da base do queixo notam-se as cicatrizes de caminhar erguido e da falta de medo do escuro.
Então... Será ela?
Quem sabe? Se desliza na ponta dos dedos e marcha no branco do papel pode ser qualquer um ou uma qualquer, digo, mais outra que se perdeu nessa vida de poema e pede a dor como tinta de letras.
Cobre-se
Desnuda-se.
Extravaza-se no canto alargado de uma elipse, não procura o fácil, entorta-se no género, na capa que gosta de arrastar pelas linhas de um caderno.

A todos os que comigo estiveram, um beijo.
 
Encapuzado

Cartas Capitais-Onze

 
Capital, Março de 24

Hoje consegui. Abri o nosso livro de poesia. Não me fiquei só pelo olhar ou pelo gesto de lhe passar a mão no carinho amoroso dos afagos a sentir o relevo das letras, até li a nossa dedicatória... sabes, a tinta desmaiou, como se as letras chorassem a nossa ausência. Suponho que as letras e as frases e tudo o que se guarda num livro de poesia se não for dito e declamado e até pateticamente declarado com a mão no peito desmaia, esvanece, chora no silêncio até um dia apenas restarem páginas em branco...
Abri o nosso livro.
Talvez amanhã leia a primeira poesia.

Abraço-te
 
Cartas Capitais-Onze

Cartas Capitais-Dez

 
Capital, Março de 23

Espero que estejas bem. É mesmo bom que o estejas. E que te acauteles. É que eu não morri. Deixaste-me vandalizada entre a precoce da morte e o definhar da vida mas sobrevivi, melhor, não sucumbi ao teu gesto trágico e agora dou comigo a despertar no meu corpo, aos olhos de outros, a uma Primavera despudorada que me despe e gosto.

Por isso te digo, acautela-te. Se pensas em voltar fá-lo rápido e convincente. E não me tragas rosas. Essas murcharam no nosso livro de poesia e agora sou mais mulher de violetas. Violetas, sabes? Daquelas frágeis que apenas rendem a sua beleza por um, dois dias. Por isso não te atrases, se há em ti essa intenção e não te creio tolo, voltarás, mas breve que a Primavera dura pouco.

Não tenho beijos.
Se voltares poderás provás-los.
 
Cartas Capitais-Dez

Páginas de mim

 
Hoje não quero comer.
Não preciso, não sinto a fome. Só a alma esfomeada, bulímica deste corpo que já o foi, se perde na magreza destes dias vãos, soltos mas contados a risco de soldado na linha da frente perante uma ausência do bem, do belo.
Arranquei folhas do meu livro, mal tiradas de pedaços ainda pegados à lombada, uma cola teimosa que não me deixa esquecer de vez passagens de páginas com marca e sublinhado de coisa importante. Pensei enganando-me que se puxasse de uma só vez estas folhas eliminaría um capitulo para sempre, tão desnecessário se veio a revelar, seguiría a história sem este sobressalto sujo e sórdido de uma protagonista que parece não ter vivido, apenas desenhada a linhas de letra minúscula.
Preciso esquecer este enredo no meio do meu livro, eliminar de todo os figurantes, colar o capitulo anterior ao que vem, destruír essa linha que coseu páginas cheias, mas mentirosas.
Hoje quero jejuar.
De tudo.
Fazer tábua rasa dos venenos que injectei, sangrar e ferrar a bomba do coração, purificar-me e abrir um novo caderno, limpo, branco, pronto para me receber como mereço.
 
Páginas de mim

Cartas Capitais-Um

 
Capital, Março de 14

Não tenho recebido noticias tuas. Não te sei. Tão pouco se das minhas recebes o gesto que deito na mão embrulhada neste papel e em que desenho oblíquo saudades rebuscadas no mais infimo tique que me deixaste.

Sabes, por aqui a Primavera já me canta, a macieira que plantaste e que mirrada se manteve tanto tempo explodiu numa felicidade em flor, cores de açúcar, um quase adoçar da tua ausência, talvez tenha esperado que te fosses para depois se exibir.

Não sei de ti já to disse, e volto a este emaranhado de ideias sem assento nem pontuação onde não sei onde parar para respirar nem marcar a traço ponteado a exclamação interrogada onde pudesse, quem sabe, gritar por ti.

Como não te sei não mando beijos. Talvez se perdessem em lábios famintos.
 
Cartas Capitais-Um

Cartas Capitais-Dezasseis

 
Capital, Março de 29

Abri o livro e li. Várias páginas, vários bocados da nossa vida, de seguida, algums versos voltando atrás, repetindo a banalidade de palavras que soam a mofo e a mentira.
Se eu quiser fecho o livro e tu deixas de existir.
Se eu quiser deixo de te pensar e de te amar e de sangrar por cada verbo banal que despejo deste nosso livro que já não é nosso.
A poesia não existe.

Não te posso mandar um único beijo que seja.
Terías que ser para os receber.
 
Cartas Capitais-Dezasseis

Cartas Capitais-A Ultima

 
Capital, Abril de 22

Fecha-se hoje o ciclo. Como a Lua. Como um ciclo feminino em que me dei toda.
De ti nada.
Nem podías que de onde estás escutas-me mas não consegues fazer subir a tua voz.
Enterrei as vinte e sete cartas na terra que te cobre, esperei um milagre, talvez até que as flores cor de açucar subissem de novo até à macieira e nesse regresso eu pudesse ouvir-te a chamar-me. Vinte e sete vezes. Como as vezes em que corajosa tomei nas mãos o nosso livro de poesia e senti no baque de cada verso o teu amparo nas minhas costas, o teu sopro junto ao meu cabelo de novo tão comprido.
Agora sei que não vens mesmo.
Não estou triste, não estou. A carta de hoje, a última que me alimentou, limpa-me de tudo o que de mal te disse e gritei. Não estou triste, não estou já to disse. Nem sequer vou plantar esta junto às outras, deixo-a entalada no nosso livro, uma marca qualquer no tempo, próximo, rápido, veloz, em que em vez de tu voltares, chegarei eu perto de ti.

Já te disse o quanto te amo?
Eu sei que sim, é tão só para me ouvires de novo dizê-lo.
Embrulhado num beijo, até breve.

Obrigado a todos os que leram estas Cartas.

Um beijo,
Até breve.
Sant'Ana
 
Cartas Capitais-A Ultima

Conversas ao espelho-À noitinha (2)

 
Telefonou. Hoje vem. Mas só à noite. Quando aparece é sempre à noite. Tarde, da noite. Suponho que seja quando tem mais tempo livre, está mais desafogado, mais descontraído e esquecido dos problemas do dia-a-dia... mais tempo para mim. É um homem muito ocupado. Eu percebo isso perfeitamente. Aliás, sei que um dia estas visitas nocturnas vão acabar e ele vai arranjar tempo para estar comigo durante o dia. Como duas pessoas normais. Como um casal... havemos de acordar os dois, de manhãzinha, os dois na mesma cama, na mesma casa, ele a dar-me um beijo na testa e a dizer-me bom dia, eu a preparar-lhe o pequeno-almoço. Talvez de robe, ele a cheirar a after-shave e a ajeitar a gravata, eu a compor-lhe o colarinho torcido... Tenho que me despachar, ele hoje vem: vou rapar as pernas e pintar as unhas... ele gosta de passar as mãos pelas minhas pernas: diz que tenho pernas de gazela, compridas, esguias e firmes. Será que a mulher dele também tem pernas compridas? Já lhe perguntei, não directamente claro, mas ele não me respondeu... só olhou para mim... lembro-me que se afogou no meio das minhas pernas e eu acabei por me esquecer de lho voltar a perguntar. Ele não gosta que eu lhe faça perguntas sobre a mulher. A que está casada com ele. A outra. Que engraçado! Eu é que devería ser a outra mas a mulher é que é a outra! Para mim, claro... Não acredito que ele lhe faça as coisas que me faz a mim, assim, a beijar e... será que ele lhe pede as coisas que me pede a mim? claro que não, ela deve ser feia, gorda, com pernas curtas e peludas! Sabe lá ela do que ele gosta?! Alguma vez ela soube o que é tê-lo como eu? E se ele ficasse toda a noite comigo, uma só vez que fosse, tenho a certeza que nunca mais querería voltar para casa! Eu havería de lhe fazer os petiscos que ele gosta, à luz das velas, todos os dias a jantarmos à luz das velas ele a servir-me uma taça de champagne, um brinde à eternidade pelo nosso amor, ele a pegar-me ao colo, atirar-me sobre a nossa cama e felizes como nunca amar-nos -íamos até de manhã, cansados, mas muito, muito felizes!

Quando me ligou avisou-me que não podería ficar mais de duas horas. Mas vem. À noitinha, mas vem. Duas horas, tão pouco e eu com tanto para lhe dar... Já sei que quando saír me vou sentir horrível, detestar-me, chorar e prometer a mim própria que foi a última vez, que tem que tomar uma decisão. Estou cansada de ser a outra. Mas tenho medo que ele não apareça mais... que vá para a outra, a mulher.

Deve estar quase a chegar. Já é noite escura. Já ninguém o vê. E as próximas duas horas são só minhas, de mais ninguém. Nem dele.
 
Conversas ao espelho-À noitinha (2)

Cala-te

 
Cala-te!
Não digas mais
Ao meu dedo poisado nos teus lábios,
Mordida pelo olhar que me atiças,
Enviuvas-me de branco parida!
Não ter eco nem ricochete,
Assim eu quisera...
Cala-te, peço já de quatro...
Eu perdida,
Mais de ti dizía ao silêncio
Escuro, que me afogas, que me afagas
Querida...
Cala-te!
Murcho em mim, o nós, a vida.
Vai-te.
Mas cala-te agora.
Mente uma ultima vez,
Uma só para a despedida.
 
Cala-te

O cabeça de burro

 
Lá fora a chuva.
Cá dentro um ambiente morno e uma manta de viagem pelos joelhos.
Lá fora nem noite nem dia.
Cá dentro um copo de vinho tinto "Cabeça de Burro".
Lá fora só xi da água a caír a direito sem incómodo do vento.
Cá dentro nem tempo de moscas é.
A folha impiedosamente silenciosa ergue-se penetrante na máquina de escrever.
O autor está sentado erecto, braços traçados sobre o peito, os olhos fitos nas teclas redondas escuras mas já nem sequer consegue distinguir as letras, os numeros, os pontos, as virgulas e os outros sinais.
À força de tanto olhar já nada vê e uma mancha parda enloda os contornos da realidade.
Fecham-se as pápebras num bater rápido do sono e num estremeção agita-se, despertando-se desta coisa menor.
Respira fundo, buscando no âmago as palavras que se atrasam.
E de tanto esperar, distrai o espirito com o pó da mesa, nas cutículas secas dos dedos da mão esquerda, nas duas narinas avidamente vazadas do seu muco, no treino de rolar impurezas do seu organismo entre a pinça do polegar e o indicador.
Pronto! Acabou o recreio.
O autor bate enérgico nas pernas, palmas abertas acordando o sangue que se lhe toldou.
E assim fica: paralisado na acção, no pensar, na saída do caudal imenso daquele romance já tantas vezes escrito e aperfeiçoado nas noites de insónia. Recorda-se perfeitamente dos tempos dos verbos, inscritos a bafo quente na fronha de algodão, no virar das páginas pintadas a letrinhas negras, e na sublimação do dever cumprido ao partilhar tal genialidade com toda a população.
Mas agora não sai nada.
Bebe gentil a golinhos finos o "Cabeça de Burro". Talvez o vapor etílico lhe faça subir o texto calcado em tal fundo que não o descobre.
Sente uma dormência maravilhosa, uma leveza nos membros e na cabeça que lhe dão um aconchego de colo.
Um suave calor embrulha-o consolando a ausência da veia artistica.
Recorda-se agora, como numa explosão, das contas de telefone e da electricidade que devem vencer por estes dias. Factos mesquinhos que nunca deveríam ocupar espaço algum no intelecto do autor, do artista.
Sim! Porque o artista não é um homem comum: alimenta-se porque necessita que o corpo se mantenha vivo para os seus leitores; paga contas para que passe despercebido entre os mortais.
Leva assim, esta vida dupla, duplamente árdua da vulgaridade e do espirito.
E nesta dicotomia sente-se perdido, como se fosse um apátrida, sem céu nem inferno, apenas aliviado quando a pressão da arte se escapa pelos seus dedos para o papel branco.
Aí tudo lhe é familiar: as letras, as palavras, as frases, as personagens que criou e a quem deu vida, rumo e tantas vezes a morte como destino final.
É que o autor é como um deus.
Tem em si o poder de parir e matar.
E o autor é também um anjo: sem sexo, tanto pode aparecer aos leitores como macho fecundante como mulher fatal que liquida as suas presas após a leitura da sua obra.
Perdido nestas cogitações, o autor apercebe-se da presença do seu cão, estiraçado de lado sobre o tapete gasto de tanto pisar.
Dorme o cão, calmo, indiferente ao turbilhão de ideias que enchem o autor.
Que pensará este cão que está fechado ao mundo?
O autor afaga-o, sentindo as orelhas compridas macias, veludentas, agora com uma sensibilidade extra na ponta dos dedos...o tinto néctar continua a percorrer o seu corpo lenta, vagarosamente como um veneno serôdio que invade o interior das suas veias, substituíndo o sangue.
Senta-se perto do cão continuando a acariciá-lo. Sorri quando a ponta da cauda se agita demonstrando o agrado pela atenção dispensada.
Enrola-se o cão como uma fartura de feira e volta ao seu sono, ignorando a angústia do seu dono.
O autor fecha os olhos e agora não consegue pensar em nada: há um vazio a ocupar um espaço na sua cabeça, que sendo vazio ocupa lugar.
Tenta abrir os olhos mas não lhe apetece. Nem tão pouco consegue: as pálpebras pesadas parecem estar cosidas para todo o sempre e agora já nada mais vislumbra.
So lhe resta apelar à imaginação e às recordações.
Mas tudo é um cansaço e só de tentar recuperar o assento frente à máquina de escrever deixa-o estafado.
Exausto, pesado e agrilhoado ao "Cabeça de Burro" desiste de lhe tentar escapar e num abandono profundo e saboroso deixa-se ir.
Recostado no sofá, o cão aquecendo os seus pés, dorme.
A chuva aumentou lá fora e agora acompanhada de vento, atira-se às vidraças violenta.
Mas para o autor só há silêncio.
Entreabriu a boca, o queixo pendeu um pouco, solta sons guturais de dentro de si e quase nada o diferencia do cão, ambos fechados à vida.

"Cabeça de Burro" é um vinho da zona do Douro
 
O cabeça de burro

Cartas Capitais-Três

 
Capital, Março de 16

Hoje não te devería escrever. É que estive de volta de velhas cartas que te enviei e a mim voltaram, num efeito de dor reforçada, primeiro no envio depois na lembrança de abrir a ferida e vê-la sangrar de novo.

É estranho encontrar naquele papel amarelecido as mesmas vontade de agora, a mesma força que me impele a continuar a carregar esta cruz de te querer saber, seja lá onde te perdeste. Que eu sei-te perdido desde o dia em que te vi as costas a afastarem-se num passo lento até muito depois pareceres apenas um pontinho perdido num horizonte e o olhar já nada mais consegue distinguir.

Releio e cheiro estas velhas cartas devolvidas à espera de nelas sentir o teu cheiro a sândalo, uma pequena mancha na tinta esborratada de uma lágrima que tivesses descuidado pingado na saudade de voltares.
Mas nada acho, já busquei todas, juntei-as ao peito e silenciosas como tumulos atei-as no cordel pardo com que as uno.

Um beijo, sim hoje um beijo, porque não?! Se dantes te beijei porque não fazê-lo agora?
 
Cartas Capitais-Três