Painho Vespasiano
Painho Vespasiano
Amanhecer diferente.
Chuva molhando a aridez.
Fato raro naquele cenário.
Dulcinéia sentou-se.
O café estava forte.
“ Ótimo”.
Na parede, o retrato descorado parecia falar.
Eram os jovens noivos Lindalva e Vespasiano.
Companheiros inseparáveis.
Saudade molhou o pão amanhecido.
Mainha e painho, simples e sinceros.
Exigiam honestidade e respeito.
Emoldurados pela existência analfabética tornaram-se sábios.
Assim foram por toda a vida, curta para um.
Rápida demais.
“Não sei ler, mas alcanço longe os pensamentos”, dizia Vespasiano.
“Filho meu será dotô”, repetia sempre a todos.
O destino porém não realizou seu desejo.
Partiu cedo.
Restou saudade e muita luta sertaneja.
Estudo! Perdeu-se na lida do tempo.
Parou de chover.
Dulcinéia saiu em direção à roça.
Alexandre Sansone
09/08/2022
Meninângela
Meninângela
Olhos verdes
Penetrantes
Cabelos curtos
Lisos
Adornados por borboletas que não voam
Só encantam
Seu semblante angelical
Transformando vivência em esperança
Saudade em amanheceres reluzentes
Tampos não passados
Relembrados, apenas
...”Pega Pega”...
...”Amarelinha”...
Rodopios cantadores
Sorrisos inocentes
Olhos verdes
Meigos
Cabelos trançados
Lisos
Enfeitados por fitas coloridas
Moradias futuras
Das borboletas que não voam
Só encantam seu semblante angelical
Transformando esperança em vivência
E reluzentes amanheceres em saudade.
Alexandre Sansone
2007
Amanhecer
O dia nascera diferente.
Sentia um roçar espinhento.
Examinou sua pele.
Nada.
Apenas ossos e secura.
Café pronto.
Ralo.
Tomou de um gole.
A cozinha, iluminada pelo sol, estava triste.
Vazia.
Porta permanecera aberta.
Fechar? Não precisava.
Para quê? Pensava Dulcineia.
Acenou para Veredas, o jumento.
Parecia sorrir.
Em instantes, carregaria suas parcas verduras.
Com a venda, voltaria a mastigar.
Assim entenderia o porquê do amanhecer diferente de um dia igual.
Alexandre Sansone
19.09.2024
Um ponto
Um ponto
Um ponto raras vezes representa somente um ponto.
Brilhante refletido no abraço e no olhar amigo dizendo: - Olá! Emoldurado no sorriso acolhedor.
Pintado na memória afetiva.
Quase sempre muito próximo da indesejada distância.
Um ponto perto embora longe.
Emociona ternura calada nas palavras surdas.
Sábio em seu aceno de reencontros.
Um ponto fugitivo.
Voador em seu adeus.
Partindo, costurou triste vazio.
Perdi esse ponto. Por enquanto…
Alexandre Sansone
2016/9.5.2017
União
União
Pétala perambula no ar. Pensa estar só.
Brisa chicoteia o som. Acredita ser surda.
Luz escurece o dia. Pensar está cega.
Escuridão brilha o vidro. Acredita ser feia.
Ar chicoteia a pétala.
Som perambula só.
Dia acredita ser escuridão.
Luz pensa estar cega.
Folha cai no chão. Está acompanhada.
Vento derruba a árvore. Ri um choro compulsivo.
Noite dança no espaço.
Está desacompanhada.
Claridade apaga o reflexo. Grita um murmúrio incompreensível.
Chão chicoteia a folha.
Árvore perambula no vento.
Espaço acredita no choro.
Reflexo ri de seu semblante.
Pétala, som, brisa, vento, luz, noite, claridade de unem para dançar uma dança que chicoteia o reflexo.
Alexandre Sansone
25.06.2008
Vozes
Vozes
De longe e de perto vento espalha sentimento inebriante.
Marielle!! Presente.
Anderson!! Presente.
Moral!! Integrante.
Vida!! Ausente.
Família!! Dilacerante.
Social!! Descrente.
Amor!! Distante.
Fé!! Perseverante.
Crença!! Inquietante.
Marielle!! Presente.
Anderson!!. Presente.
Justiça??
Alexandre Sansone
15.03.2021
Dulcineia
Dulcineia
Caminho era o mesmo desde o tempo de menina.
Rosto agora enrugado escondido debaixo da sombrinha.
Olhos presos no horizonte dos pensamentos.
Mão direita conduzia a carroça com mercadorias.
Mais uma semana modorrenta se iniciava.
Vestido de chita estampado de minúsculas flores.
Vermelho esmaecido se perdia no fundo amarelo vibrante.
Cabelos molhados espalhavam alfazema pelo ar.
Nos pés, alpargatas de couro cobriam cansaço da lida.
Assim ia Dulcineia vender suas verduras na feira central.
Gostava muito de seu nome.
Sua mãe Lindalva um dia encontrou um velho livro.
Na capa havia desenho de três pessoas.
Homem alto e magro montado em um cavalo.
Levava uma espada, dizia.
Ao lado estava outro baixo e gordo.
Engraçado, relatava para ela.
Com destaque via-se a figura de bela mulher.
“Chama-se Dulcineia”, alguém disse para sua mãe, analfabeta.
“ Será o nome da filha que trago no ventre”, disse.
Essa história ouviu inúmeras vezes.
De repente um preá distraiu a atenção de Veredas.
Dulcineia se assustou.
Carroça balançou.
Algumas verduras se perderam.
Firme, dominou o acontecido.
Seguiu seu trajeto.
“Ande rápido, Veredas”. Temos pressa.
Sorriu do nada. Pensara algo.
Ao comprar o jumento, não sabia como chamá-lo.
Após dias, lembrou-se do livro que avistara na feira.
Pediu para o vendedor ler o que estava ali escrito.
Gostou. Apenas memorizou “ Veredas”.
Alexandre Sansone
21.05.2022
Estranha figura
Estranha figura
A rua não estava deserta.
Era dia de muito sol.
No meio de tanta gente, alguém se destacava.
Da janela de seu quarto, Alaíde observava aquela senhora.
Passos lentos deixavam o chão salpicado de mágoas.
Braços estendidos ao longo do corpo lembravam nódoas.
Cabeça erguida no ar ostentava cabelos tristemente opacos.
Nas mãos agarrava sacolas corrompidas de sentimentos fracos
Seu semblante transportava oceanos de amargura.
O rosto enrugado não possuía loucura.
Transmitia silêncio e prosseguia seu caminhar.
Quem seria?
Absorta e muda, Alaíde a analisava.
Horas se passaram.
Os ponteiros do relógio da sala avisaram que a tarde se findara.
Vagarosamente, Alaíde se retirou do quarto.
Ao entrar na sala avistou no espelho a estranha figura.
Chorou.
Alexandre Sansone
02.11. 2024.
.
Indigência
Indigência
Ventre rasgado.
Filho engolido.
Arroto explodido num riso sarcástico.
Dentes limados.
Boca enlameada.
Cuspida arrebatada num choro convulsivo.
Dor no peito: saudade
Nó na alma: remorso
Consciência negra: nojo.
Mistura de odores que penetra nas narinas alargadas.
Chorando, espinhos caem das pálpebras.
Tristeza perseguindo a trajetória vazia de ser apenas um inútil, perdido na trilha.
Alexandre Sansone
1982
Um gesto, simplesmente
Um gesto, simplesmente
Dedos
---céu azul---
mão
---espaço branco---
aceno
---vento vazio---.
Sentimento alado, largado, solto, retido no ar azul.
Cena imóvel, fotografada, incolor, dolorida, perdida no olhar vazio.
Aceno de mão.
Gesto de despedida.
Coração lacrimoso.
Aceno de mão.
Tempo agora.
Saudade, simplesmente.
Alexandre Sansone
26.05.2008