A fenda
Pergunto-me se essa tua
aparência de longe será
somente distância
ou sobretudo ausência
[ por detrás dos olhos ]
no interior de ti.
Esvaziámos as palavras dos significados
que nos resgatariam da fenda
no fundo do mar.
Já não temos ninhos
nem barcos de papel, nem pedaços
do tempo
dentro das palavras.
Habituámo-nos a não nomear
os incêndios
e tampouco sabemos se existimos
dentro dos nomes que pronunciamos
para que possamos ficar.
Grande plano
O caminho é para onde o silêncio se veste de lavado
ou os dias reaprendem a viver
em plena primavera.
Abotoa-se a pele e evita-se a dormência
das janelas batidas pelo entardecer.
Saltam-se precipícios
ou corações magoados que nos
atravessaram parte do tempo.
E continua-se a ser futuro.
Apetecia-me chamar-te para dentro de um abraço
Para te sentires vivo
rasgas a tua pele desamparada
e sangras de solidão.
E a solidão dói.
Saber que atrás de uma rua vazia
virá outra rua vazia.
Que um som de passos
será somente o som dos teus passos.
É provável que num cruzamento
de águas
os teus passos escutem a memória
de um horizonte perdido onde as palavras
tinham a determinação da luz.
Dentro dos teus olhos existe um lugar recôndito
habitado por uma vida inteira.
Apetecia-me chamar-te para dentro
de um abraço
porque sinto que as tuas lágrimas
estão a secar
a deslizar para dentro do teu sorriso.
Queria tanto entender os significados
que estão dentro dessas lágrimas.
Mas o vento é forte e a árvore fustigada.
A palavra desarticula-se num tempo embaciado
de espaços vazios.
E tudo se reduz aos silêncios que nos fazem
cerrar as pálpebras e descair os lábios
numa linha horizontal e ilegível.
Transcendência
O céu como temporal
sobre o atrito da rua lenta
enquanto escondo o frio
nas mãos
e aqueço as aves
nas palavras.
Todos os dias o sol
a nascer
e eu, ao canto da sombra,
[viagem adiada]
mudez estranha retraída na obscuridade
dos olhos.
Talvez me aguarde o tempo
de transcender numa metáfora
a trajetória
de um corpo quebrado, ofegante
depurado na dimensão triangular
da claridade
e aceitar como um incêndio as águas que caem
por dentro do silêncio espesso
de vozes mutiladas.
Hei de, quem sabe, regressar à memória de Deus
lugar e tempo
que me dói, e que me dói, na chama
que se apaga na sala
e, secretamente insubmissa, me reclama
árvore, pássaro, alma, apenas
seja na ilusão de urgentes nuvens incandescentes
ou na espera incerta da projeção da luz
como imagem da casa.
… a espaços
às vezes sobram-me espaços
entre a voz e o interior da luz
o corpo
indizível
entre musgos e espigas
e as mãos
imóveis
caídas ao longo do sonho
depois
a entrada do olhar
na anestesia dos rios
e a nudez da memória
em queda
cativa da noite
e das marés do tempo áspero
singrando esperas
no silêncio das aves.
Texturas
Vejo a tarde
nas ruas lavadas do silêncio
a distância imutável das searas
a embalarem o tempo.
Os contornos desarrumados que me habitam
a melancolia a sublinhar-me a curvatura dos ombros
ou as palavras onde me abrigo as horas.
E a contagem crescente das coisas
que me dizem de ti.
Sempre soube das linguagens desencontradas
que nos perderam no vazio
ou da dissonância das vozes
ao virar das páginas.
Basta-me agora o pouco da ilusão que
me foge
e me arrasta
a frescura da luz
diluída em janelas de ausência
a textura azul dos teus olhos na antologia da memória.
Água e silêncio
Sem significado. Uma folha de papel branca
ou cinzenta
uma sombra
e um labirinto de traços vazios. Como o poema.
Como este poema. Vazio.
Tudo trémulo. As mãos. Os olhos. A voz.
A água a atravessar o silêncio.
Depois da vidraça
a rua antiga é uma
memória cheia. Luz.
E o poema
vazio.
Disse-te sim filha vai
e sê feliz.
E tu foste.
Um dia serei talvez na chuva esse lugar
Não peças mais. A incerteza
apenas
do tempo suspenso das esperas
essa luz tangencial
farol das grandes viagens
oásis de utopias.
Estarei
[ mesmo não estando ]
atenta e vigilante
contando fios de espumas
por detrás da imensidão do mar
ou do verde-longe da planície.
Nos olhos
a memória
a luz virgem das palavras.
Nos lábios
o reencontro
o rio
a fazer-se instante.
[ sente somente o fluir das suas águas ]
Um dia
serei
talvez na chuva
esse lugar.
Pendular-me(nte)
Este estado de ser movimento pendular
dentro da nossa própria existência. Transitar
entre o silêncio e a harmonia
que murmura baixinho
como se quisesse segredar afagos
ou alguma forma de laços.
O silêncio a instalar-se ao meu redor
sufocando medos
ou a memória de uma longa história de amor.
Este estado de ser a (in)quietude do tempo
na noite que permanece.
Ilusória é a sílaba que flutua
Fechamos os olhos e
entregamo-nos à transformação da palavra
alquimia
luz imensa de substância pura.
Escutamos a sabedoria do mundo
somos corpo na justeza do gesto
ou então imagens dispersas
promontórios que atravessam a noite
escura.
Percursos às vezes partilhados
na imensidão das horas
na penumbra já tardia.
Ilusória é a sílaba que flutua
abstrata sensação de abismo
sem verbo e sem forma exposta à fluidez
do (en)canto.