A noite que choveu insónias
Desarrumar metáforas
subir à tónica da palavra
abrir janelas a jardins de luz
e de vento
banir do poema as brumas intocáveis
da noite que choveu angústias
e insónias
[ movimentos circulares em areais vulneráveis
ausência amarga
a acender urgências ]
Sonhar brilhos de espumas
na rebentação das ondas
quebrar solidões
com relógios de sol
e panos verdes.
Grande plano
O caminho é para onde o silêncio se veste de lavado
ou os dias reaprendem a viver
em plena primavera.
Abotoa-se a pele e evita-se a dormência
das janelas batidas pelo entardecer.
Saltam-se precipícios
ou corações magoados que nos
atravessaram parte do tempo.
E continua-se a ser futuro.
O teu mar
Amanheces instante.
Acorde de piano em ampla harmonia
com rastos de navios
sem horas de chuva às portas da noite.
Constróis pontes coloridas e atravessas o mundo.
O teu mundo
aquela dor extensa a resistir dentro de ti.
O teu mar
que parte e regressa a cumprir o ciclo
de forma plena
parte integrante do teu lugar a cada anoitecer.
O teu lugar.
Palavra lenta e transparente
cântico de embalar onde o coração repousa
e a movimentação da luz acontece.
Transcendência
O céu como temporal
sobre o atrito da rua lenta
enquanto escondo o frio
nas mãos
e aqueço as aves
nas palavras.
Todos os dias o sol
a nascer
e eu, ao canto da sombra,
[viagem adiada]
mudez estranha retraída na obscuridade
dos olhos.
Talvez me aguarde o tempo
de transcender numa metáfora
a trajetória
de um corpo quebrado, ofegante
depurado na dimensão triangular
da claridade
e aceitar como um incêndio as águas que caem
por dentro do silêncio espesso
de vozes mutiladas.
Hei de, quem sabe, regressar à memória de Deus
lugar e tempo
que me dói, e que me dói, na chama
que se apaga na sala
e, secretamente insubmissa, me reclama
árvore, pássaro, alma, apenas
seja na ilusão de urgentes nuvens incandescentes
ou na espera incerta da projeção da luz
como imagem da casa.
… a espaços
às vezes sobram-me espaços
entre a voz e o interior da luz
o corpo
indizível
entre musgos e espigas
e as mãos
imóveis
caídas ao longo do sonho
depois
a entrada do olhar
na anestesia dos rios
e a nudez da memória
em queda
cativa da noite
e das marés do tempo áspero
singrando esperas
no silêncio das aves.
Desconexão
A luz a entranhar-se
na lentidão da noite
derramada sobre o arvoredo.
Podia o silêncio acordar
e ser um murmúrio brando
uma paz interminável
a sussurrar eternidade.
E o tempo a querer ser
a voz de um tempo vivo
memória ou reencontro.
Pegar na palavra
e segui-la
como se fosse um sonho a acenar
um desejo a prolongar-te os gestos.
Soprar sementes nas manhãs
paradas. Exaustas. Doridas.
Convocar a imaginação.
Cair de pé.
Muros
A voz do trompete a gemer
na dormência da luz.
Poderá ser o grito da loucura a revolta da
dor
contra a inclemência do caos universal
a trancar o tempo da utopia.
Nos escombros da luz chora o trompete
e a solidão da criança no coração do olhar.
Dir-se-ia uma epifania amarrotada
um silêncio náufrago
cúmplice da salvação sem farol.
E os meus olhos cobertos de sombras devastadas
bloqueados por um mundo em dissonância
procuram um verbo que nos devolva as estradas do mar
e
num lamento de sangue partilhado
evocam fantasmas e demónios
uivos que me consomem
omnipresentes.
Água e silêncio
Sem significado. Uma folha de papel branca
ou cinzenta
uma sombra
e um labirinto de traços vazios. Como o poema.
Como este poema. Vazio.
Tudo trémulo. As mãos. Os olhos. A voz.
A água a atravessar o silêncio.
Depois da vidraça
a rua antiga é uma
memória cheia. Luz.
E o poema
vazio.
Disse-te sim filha vai
e sê feliz.
E tu foste.
Um dia serei talvez na chuva esse lugar
Não peças mais. A incerteza
apenas
do tempo suspenso das esperas
essa luz tangencial
farol das grandes viagens
oásis de utopias.
Estarei
[ mesmo não estando ]
atenta e vigilante
contando fios de espumas
por detrás da imensidão do mar
ou do verde-longe da planície.
Nos olhos
a memória
a luz virgem das palavras.
Nos lábios
o reencontro
o rio
a fazer-se instante.
[ sente somente o fluir das suas águas ]
Um dia
serei
talvez na chuva
esse lugar.
Pendular-me(nte)
Este estado de ser movimento pendular
dentro da nossa própria existência. Transitar
entre o silêncio e a harmonia
que murmura baixinho
como se quisesse segredar afagos
ou alguma forma de laços.
O silêncio a instalar-se ao meu redor
sufocando medos
ou a memória de uma longa história de amor.
Este estado de ser a (in)quietude do tempo
na noite que permanece.