Insânia
Talvez eu não possa amar-te
talvez a insanidade dos meus sentidos revogue
a serenidade de um poema ladeado de lírios e organzas
e me acerba esta vontade de te rasgar a pele
e colar-me a ti
talvez a sede de mulher sugue
as palavras doces da tua boca
e me atice esta vontade de te trincar os lábios
e beber-te o sangue
talvez o despropósito do meu ser arranque
as raízes dos teus braços
e me enlouqueça esta vontade de te roubar ao mundo
e fundir-te em mim
talvez eu não possa amar-te
com a lógica da razão
amarra-me então o corpo
mas liberta-me deste coração
para que eu não possa
amar-te
Vera Carvalho
Espectro de consciência
Pega-me ao de leve no corpo entardecido do sol,
despe-me do laranja e do vermelho
e entorna-te sobre mim,
monocromático.
Sorve, voraz,
os alaridos da minha alma
e guarda-os em teus lábios
em penitência perene.
Apaga esse padrão repetido que me veste de dia
e desenha-me de novo, com traços convexos,
conexos ao desalinho
do tempo.
Figura-me nua
de sentimentos,
subtil
de entendimentos,
e preenche-me com a alvura inocente das gaivotas.
Sopra-me ao vento
e ganharei asas circundantes na altivez do céu,
espectro índigo que desce na bruma branca
das manhãs de Inverno.
Vera Carvalho
Diz-me...
Diz-me…
como da chuva que se cola ao calor da pele
e adivinha na noite a frescura da alvorada
Diz-me…
no bulício do ar que se forma em nós
enquanto a lua guarda segredo
Diz-me com lânguidos sussurros
que a noite me espera
que o mar atraca nos suspiros largados na areia
e tu és água
e somos infusão
girando no gorgolejo das ondas
Diz-me
se é este vento que funde em gotas de brisa
o teu cheiro
e me solta este vício lúbrico em maré vermelha
Diz-me
que a noite me espera…
Vera Carvalho
Sonho alentejano
Sonho alentejano
Lembras-me
o cicio de vento que percorre
o trigal dourado.
Brando,
acompanhas o trinado fluido do rouxinol
que anuncia o entardecer
e convidas-me a dançar, por entre
o azul que se dispersa
e a luz de sol poente.
Numa singeleza descalça,
assemelho-me
à loira espiga,
ondulando ao vento
danço
envolvida na expressão de sentimentos
das palavras radiadas.
Contornas-me um sorriso no rosto e
espalhas num beijo
uma ternura de mel.
Doce embalar que me recolhe em sonho.
Vera Carvalho
Amor (-) perfeito
se em cada palavra de amor
florisse uma flor
em minha boca
eu te oferecia um ramo de acácias
seriam amarelas
especulando o sol de todos os dias
se em cada palavra de amor
eu te tomasse o mel dos lábios
e te estendesse
na suavidade do meu colo
seria doce cada memória
aspirando o enlevo dos beijos
se em cada palavra de amor
eu unisse ecos dos nossos sussurros
os espalharia ao vento
sedentos por unirem o mundo
teria criado a perfeição
Vera Carvalho
As lágrimas que me secam
Correm lágrimas desalinhadas
em meu rosto
quando, à minha direita,
vejo o vazio rebatido de tenras ervas.
Eu continuo lá
absorvida pelo rio
mas largada na margem
[amiserada pela tua ausência].
Intimida-se o vento
que ao passar por mim se esconde
no mesófilo da folha.
Murmuram os estomas
prantos que choram em uníssono
e cada gota
pesa sobre o sol .
Apaga-se o fervor
dos beijos em meus lábios,
descora-se a alma,
tranca-se a vida.
Escorre a saudade em lama
neste rio,
manchando de negro as bordas do corpo
que racham
em estilhaços
ao passar do tempo.
Sangram memórias
no reflexo da imagem
que escondes do céu
e entorno-as novamente sobre ti
[na esperança que algo de mim sobreviva].
Vera Carvalho
Sede
A língua atrai e retrai-se
aos conjuros da sede.
Ah!!! Pecado foi beber-te
e não caberes dentro de mim!
Vera Carvalho
Querer mais que vontade
É olhando a linha que nos separa
que a vontade sedenta morde o teu vulto
sou víbora airada, alucinada pelo teu odor
trespasso, invado e domino-te os contornos
do teu colo avançam os dedos fingindo delicadeza
lentos e atilados acautelam-me os sentidos
serás presa dócil, submissa desfrutando da iguaria
acorrentado o teu corpo oscila
em júbilo do ardor da mordida acérrima
num sopro gemido contestas a tua oportunidade
falhada, proibida.
Sou víbora airada, sem vénia, sem permissão, sem restrição
Vera Carvalho
Será tua esta praia?
Serão tuas as lágrimas
que o mar expulsa e me devolve ao rosto?
Será teu o lamento do marejar das ondas
que me cinge os lábios ao sabor salgado?
Será teu o calor dos penedos macios
que me repousam o corpo?
Será tua a memória espelhada na bruma
que me turva e me comove a alma?
Serás tu que roubas meu nome d’areia
e me unes a ti (terra ao mar )?
Ou
Serás tu o barco, o enigma, o corsário
que me lança ao mar e se afunda em mim?
Vera Carvalho
Partida
há uma visão repetida
retida
na concavidade da minha retina
e há lágrimas que se juntam
à neblina da manhã
há o pulsar trémulo nos dedos da mão
e um bramido contido
que acelera a baqueta do coração
há a verdade gélida
nua
acinética
e a tua partida entornada no vinho
que verte de minha boca
ainda
céptica
há um ímpeto amargo
e um rasgo incisivo na maciez da seda
que me perfura o ouvido
e me faz cair
pena
fica a vontade de partir
contigo
Vera Carvalho