caderno
nunca me esquivei da noite por medo
mesmo quando só atravesso becos sem saída
com seus inquietante segredos e obscuridades
nem me assustam as unhas secretas das sombras
ou do vento a fustigar meu corpo empurrado
à beira do abismo
não me são hostis os fantasmas e os monstros
escondidos debaixo da cama
ou os gemidos do soalho do corredor
esquivo.me às palavras
é delas que tenho medo
do seu gosto cristais de sal
do sabor mel de flores
que sublimam.me em cilada.
deitadas no meu caderno
fingindo.se armadas de inocente paciência
à espera de serem poema.
tenho medo.
HC
correio expresso
martelaram os batentes do portão
em vez como de outras vezes
envelopes na caixa do correio,
habitação dos acumulados
acordar assim??, ninguém merece!
flamejada de ira abri a janela
par em par até onde a vida pode chegar.
trazias tuas mãos embrulhadas
em papel ainda conservado
onde podia.se ver um lacre brilhante.
coisas de pouca importância
coladas as todo o escupe
para ficarem curadas no todo sempre.
só que por dentro o fingir
escurecido e mudo
a sempre "cantiga do bandido".
tão gasta como o granito da rua.
infinitude colocada, colada
traz cansaço, impõe importante estudo
serei eu a inesperada?
premissa
já não tenho batentes no portão.
mais tarde ou mais sede
tenho sede
circulação sanguinea remansada
em meu peito feito de ardósia laminada.
noutrora libido aurora
nascente "frisson"
em terra rubra
e cheiro a açafrão.
tenho salaz sede
da luxúria de uma "orquídea selvagem"
de.lirios anelantes.
ab(sinto) secura em meus lábios alva
ênfase sindrome vertiginoso
derreter com pedras de gelo
meu coração desidratado.
MMXXIII
HC
In Extremis
Há inquietantes cheiros no ar, fragrâncias intensas que nem a chuva consegue levar.
Cristalizações de plasma vivaz. Que cheiro adocicado, cadaverina negra flor de lírio.
O perfume desenha a leveza do desespero, que tem o brilho,a dor, o desejo.
Dou comigo às voltas na cama. Caio no mais profundo de mim.
Hoje é dia de exorcismo.
Confesso: “ Tenho uma amante”
Tento resistir, mas não consigo, não adianta, não quero.
Só de olhar para Ela, a sentir, uma dor trespassa alma.
É linda, poderosa, deixa-me completamente indefesa.
Seu encantamento é tão grande que me apetece ser possuída, ali mesmo, a todos os instantes.
Sentir seu frio, sua pele alba, sua língua vagarosa.
Quero-a, Quero-a.
Hoje percebi, que não consigo mais esconder este meu adultério moral,
Podes julgar-me. Estou aqui.
Entendo a natureza humana como incompleta, um puzzle no qual por cada peça colocada, revela duas em falta e quanto mais amo, mais preciso amar, ser amada, tu não?
Ela ama-me. Com toda a força que não tenho, como nunca ninguém me amou.
Está comigo desde o meu primeiro momento de existência mortal, nunca me abandonou.
Conheces alguém que esteja sempre presente onde estiveres? Eu não, mas ela está.
Quero-a só para mim. tenho ciúmes. Sei que ela é me infiel, a todos seduz, a todos quer e, no final ninguém a consegue negar.
Seu nome?
Queres saber o seu nome?
Morte, conhece-la?.
sem meias medidas
meço.me contra um muro alto, alto
mesmo alto
mesmo de saltos rasos e sem meias
sou alta , alta, mesmo alta
pelo modo como rastejam as girafas
para dentro e para fora da minha sombra
sou alta, alta, mesmo alta.
mesmo de saltos rasos e sem meias...
...medidas
entre a justificação e a desculpa
chega de longe as aspas dos olhos
sem presença de tempo
no relógio da parede parado
o sarcasmos do antes jovem
na cãibra do agora morto.
está tudo errado
as marcas da vida do avesso
devia ter nascido velha
e morrer recém.nascida.
Porto Insepulto
chegam as manhãs raiadas
à estranha cidade do norte obscuro
trazem histórias e duro sotaque do rio
abraçadas ao lodo leito em que te moves cansado.*
nem todas as cidades são feitas de pedra
a minha é feita de casca de sardinha
tripa de fruta
sustida no nervo escuro do cais
espinha caroço contra as goelas do mundo.**
aí chega a gente mareante de uma noite inteira
cantam ao desafio em tons de prata
às vezes pagam-lhe um bagaço
é celebre entre os estudantes.***
escreve rabelos e uma quilha que fende as margens
abre persianas d ´água
temperadas com manjericos
uva madura rio lavrado.****
por fim ouço a chuva granítica
balbuciar meu nome contra o empedrado.
* Referência ao emblemático Duque da Ribeira que resgatava corpos no Rio Douro
** Referência ao mercado da Ribeira
*** Referência à zona de entretenimento nocturno
**** Referência ao vinho do Porto
por necessidade e natureza
porque o faço?
porque tenho que prestar homenagem a todos aqueles que por necessidade ou natureza, sou
à sorte por ter nascido num dia de tempestade e os meus muitos anos a fazer a digestão quase perfeita.
ao meu pai pela paixão telúrica
à minha mãe pela paixão anímica
ao meu irmão Fernando por ensinar.me a assobiar
ao meu irmão Henrique por viciar.me em ironia
ao meu irmão Rui pelo bilhete "InterRail"
ao meu irmão Calos pelas feridas nos joelhos
à minha professora primária pelos hábitos regulares
ao professor Lopes pelas aulas em argumentação
ao desconhecido pela primeira vez que fiz amor
ao rapaz da bicicleta por não ter.me atropelado
à vizinha do lado pelos limões
aos meus amigos por terem reconhecido que meus discursos eram inaudíveis
ao ainda por saber que me mantêm acesa
ao meu "personal jesus" por velar por mim
à morte por andar esquecida
ao meu filho, a vida.
HC
quebrar quebranto
a videira passou a rolhas de cortiça espalhadas pela casa
e eu
cada vez mais adormeço a éter sobre a mesa da sala
onde um rosto reflectido na salva de prata deixou de me imitar
cada vez mais sinto com o corpo
a terra, o gelo, as árvores de coisa alguma
até as ervas daninhas crescem pelos pés.
e eu
ando a cismar
com histórias de amor
com histórias de almas viajantes
que vão dar ao mesmo lugar
noites sem lua.
para ser sincera
não me apetece escrever
tão pouco desfazer o saco dos cansaços
saltar fogueira
dançar circular
pintar runas
deitar.me na maresia lavada.
talvez beber umas quantas valvas de queimada
respirar silêncio das horas sempre iguais:
XII ; XII ; XII ; XII
até o cuco abrir pórtico e anunciar se é noite ou dia.
ficar a olhar infinitos pela vidraça da janela da cozinha
a quebrar
a quebrar
quebranto
... e um verso cachimbo de água
uma punhalada no sono
duas chamas de três trompetes
quatro mosquitos no tecto
numa rápida vista d´olhos ao sexteto.
epifania!
faz.se um poema
no caos infinito da insónia mania
...e um verso cachimbo d´água.
musical joalharia que roda ventos
rodopio maçapão e silêncios
retorcem toques da massa cinzenta.
infusão
incenso
narguilhê
outra folha amanhecida.
amanhece analepse cadeia
epopeia de papoulas nocturnas
na crina de um cavalo alado com asas mortas
seu molde é ruba´i.
sorver vapor não bastaria
diluir insone noite escorregadia
na sua verdade à origem
uma longa escadaria.
...e um verso cachimbo d´água lá em cima.