Poemas, frases e mensagens de Mel de Carvalho

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Mel de Carvalho

ignoro

 
ignoro
o movimento previsto o rigor cientifico do viajar das nuvens
que vejo sobre o rio desta janela fronteiriça
em que me assomo

a olho nu parecem-me
bordaduras títeres, aguarelas vicentinas,
esbatidas a ponto sombra em azul maior

sei apenas
de um cais
onde as águas altas
apodreceram as ripas e as amarras

donde não saem nem retornam barcos

por vezes sei dos meus olhos cansados …
e deste olhar perdido em trocadilhos e metáforas.
 
ignoro

o órgão do mar

 
por vezes
quando caminho sobre as pedras da beira rio
que se rasgam sob os passos
interrogo a tarde e os fantasmas
que se escapam destas fendas.

ao som de uma melodia evanescente
abro as portas da alma
e, de par em par,
todos os portões do corpo.

sem amarras, à beira de Ser
acalmo então a passada

leio teresa
o poema da recusa e pressinto
que se não as polpas
então os verbos crus nus como
os meus pés descalços, sempre descalços, sabem de ti
da erva
da cidade
do mar que é nosso
que unindo afasta as marés e as margens,

da falésia

de todas as coisas visíveis
de todas as se opõem
simétricas e complementares

das que falam
das que calam
das que gemem de prazer
das que gritam gaivotas soltas no silêncio de mulher,

é então que, em emudecimento contemplativo, oiço a lição de nietzsche
e, experimentada, solto o elástico que me prende

no vazio em queda livre, convicta
deixo-me pender, árvore de braços abertos
sobre o mar …

Poema inédito
 
o órgão do mar

“são ratos, meu senhor …”

 
e se subitamente do meu regaço
aberto
dilatado
tombassem a teus pés no chão da tua verdade
pétalas, rosas delicadas, cristalinas, numa mansidão de gestos
num milagre de mulher a parir flores?

rosas tenras, perfumadas, libertas em profusão de aromas e cor…
pintarias um quadro de mim?!

talvez sim!

e, se de repente
tragicamente de cada uma delas
em cada uma delas, se esculpissem braços e pernas,
bocas abertas em epopeias de brados e gritos
se hasteassem corpos e estandartes
e vozes de mensagens maiores
no proclamar de direitos inolvidáveis
de verdades proscritas
de mentiras engendradas para enganar a adversidade da vida?
o que dirias? diz!!!

talvez um nada, ficarias mudo,
ou
ignorante de ti, me olhasses de forma esquiva…

e se eu te mostrasse agora
que cada uma delas (as minhas palavras) tem dentes e limalhas?

que as palavras com que te falo
são retalhos
varejos em tempestade de milhões de outras vidas?

rebobina de novo o filme…
recomeça…
atenta de novo e enxerga. olha por dentro de ti,
olha aqui a teu lado e logo ali:

- do meu ventre e a teus pés, tombam guinchos aflitos
de gentes de carnes anavalhadas a cada despedida
sem contínuo ou futura jornada

não rosas … mas “ratos”

um batalhão de desempregados
“ratos” por ti, por mim, condenados a mendigar a valeta
a viver dentro do lixo
nas fímbrias pendulares da nossa consistência
e ai, buscar o sustento p’ra a sua própria vida …

e que, nesta hora inquieta, do meu colo e a teus pés
eu, a insana poeta, a “poeta do amor”,
os liberto e te digo:

“são ratos, meu senhor …”

são “ratos” aqueles que transporto no lado esquerdo do peito
e aninho no regaço
e, do meu jeito, a teus olhos aqui liberto
se os transformo em rosas do teu e meu clamor!

“são ratos, meu senhor …”
 
“são ratos, meu senhor …”

... no trevo de cinco folhas

 
Travam-me as palavras que não escrevo
no trevo de cinco folhas.

Contrafaço dores e mágoas,
atrevo-me em serigrafias metafóricas,
verbos que se auto proclamam d’hossanas,
d’epopeias,
e mais não são do que meliantes, foragidos, desertores,
sombras mestiças de dias sem luas cheias.

A mar aberto, na corrente copiosa dos sentidos,
reencaminho o volátil dos afectos
quando descalço a pele madura
à fúria angular das pradarias dos desertos.

Demando a fragilidade cristalina da palavra
e a noite, a noite proscrita, ímpia e tão bravia
desaba por fim, crisálida lenhosa e rubra
dor dentro do útero do novo dia.

Agora sou mais eu,
se me trilho e me conduzo desnuda
flor inquieta
fruto exposto
em busca do olimpo que adivinho
no inverso do teu corpo rarefeito em disenteria.
 
... no trevo de cinco folhas

Como gostaria de saber escrever um poema d'amor ...

 
“Um poema de amor …”

É agora madrugada…
Fecho o livro, tranco as pálpebras
aos cansaços,
às imagens,
às palavras,
aos andamentos assíncronos
dos ritmos sincopados em cordas soltas,

… as nossas bocas,
a sede inextinguível das nossas bocas de carmim.

Encerro aberto o cofre das memórias,
das notas, das cadências,
dos violinos, dos violoncelos,
do fascínio da lírica do oboé…

Memórias
plasmadas nos simbolismos da partitura dos corpos
justapostos aos fervores emergentes do sol-pôr.

Esta peregrinação de asas soltas,
… este ninho que te construo, fio a fio,
no estertor dos barros de candura,
em arquejos silenciados
ao voo sublime,
num voo demarcado na cartografia da dor …

Na solidão da noite, entrego-me às flores e às palavras,
disponho-as metodicamente alinhadas sobre a mesa,
sou organdi, sou cetim.
Desnuda, perfumo-me de salva e de jasmim...

E sou promessa
e sou desejo
e sou pião sustido nos dedos da tua mão.

É agora madrugada…
Fecho o livro, cerro as pálpebras em epílogo…

Deslizo já extinta a velocidade da luz,
plano o sangue dos astros,
os sonhos continuamente abstractos,
rio acima, rumo a norte e por fim, amado …
mergulho à luz ténue na nascente de ti,
e sou paixão, e sou ternura.

Talvez loucura …

Como gostaria de saber escrever um simples poema de amor...
Um poema de amor, amado, à tua altura!
 
Como gostaria de saber escrever um poema d'amor ...

Corria uma cidade inteira

 
Corria uma cidade inteira na sarjeta do meu bairro
quando a luz quebrava no topo dos guindastes
e as fábricas parideiras purgavam nas artérias.

Sentavas-te
à margem empedrada d’evasiva,
enrolavas fome pálida num papel sem laço
enrolavas medo no canto da cigarra
engolias silêncios sem sentido na água de copos baços …

Corria uma cidade inteira na sarjeta do teu bairro
e tu bebias copos (e)ternos de parafinas e bagaços.
 
Corria uma cidade inteira

Vem de longe

 
Vem de longe
de tão longe quanto imaginar se possa
sem negar a origem do primado do tempo
este verbo imperfeito que, sem norma,
sem regra ou pejo, me faz cativa de mim
e do sangue incolor que m'avassala o peito.

Como um barco soluçando sobre as vagas
a fuga dói na ferida onde a carne já apodrece
se a maré sobe
se anoitece
e o porto se faz distante e a luz incerta …

Há um murmúrio que não é de gente
há um rumor que m’enlouquece
à boca do alambique
por onde não s'estancam finas gotas
há um canto magnetizado que m’ancora
em enseadas de pranto
e me faz postergada à face alabastrina
de uma lua residual.

Vem de longe, a agonia das areias
e o sal
e o sol
e as salinas pálidas em vidrados de ossos
que, desunidos d’algum lugar, deram agora à costa
nesta enseada d’utopia.

Vem de longe, esta fome infinita de viver, morrendo,
em caudais de poesia.
 
Vem de longe

Não existem palavras

 
Não existem palavras
quando a linguagem é muda
e apenas a voz da alma fala, melódica,
sustenida, em conchas esvaziadas.

Então, no ventre dos tempos, meu amado,
avançamos livres,
avançamos nus,
desbravando os medos do corpo, um a um,
em acordes vibrantes de fogo
num plano fumegante de lava e luz,
em vibrados de Sol.

Tomamos o rumo dos astros
e o horizonte abre-se-nos, fulgurante e vasto,
amaciando, nas sombras da tarde,
as cascas ressequidas de serôdias árvores.

E mais além, nas veias azuis da Lezíria,
nas fímbrias do rio,
tordos e rolas são velas hasteadas
num voo de fragatas à bolina …

E sob a nossa pele,
um reino desconhecido se explode virgem,
em plexo de sentidos,
de desejos incontidos,
num entrançamento de gestos circunflexos
em que as hastes dos salgueiros se dobram
se vergam e se fundem
à madre das águas.
 
Não existem palavras

Poesia-Vida

 
Quando a minha alma estava ferida,
o corpo ferido igualmente,
o Inverno se anunciava
inóspito, desabrigado, gelado,
- Antárctica de neves perenes...

Quando de mim todos os mares se ausentaram...
Todas as luas cheias se afogaram despenhadas
em imensos Oceanos...
Quando os afagos de uns olhos
onde repousava os meus olhos
se me fugiram - Sol...
Eu era agueiro, tromba de água
rio de montanha, veloz e frio...
Ai, nesse preciso momento...
Não chegou pessoa alguma.
Nem flores, nem Sóis,
nem sequer murmúrios marulhados de ondas...
Nem risos, sorrisos... esperança...

Quando dentro de mim
apenas habitava o vácuo e o vazio...
Quando nua, despida de mim própria,
avançava louca pela rua,
a busca de um amor maior, de uma paz permanente,
que de ausente, me tornava tão doente,
não encontrei mão amiga,
nem abraços, nem beijos, nem sequer quem me amparasse
quando, enjoada, me enrodilhava dentro do meu próprio
ventre...
e me despenhava no negro da rua...

Quando, nesta agonia, noite e dia, vagueava...
Pendulava na ponta de uma fraga...
perdida de mim, sem rumo, meio ou fim...
Não... não encontrei o carinho de abraços - os que pedia...
(tão magoada aos poucos sucumbia,
algemada no sentido de os receber...).
Morria no desalento... e nada acontecia...
Ai, nesse momento,
alguém com voz de vento bateu à porta...
Com medo abri...
Tinha forma imprecisa e hálito quente...
Tomou-me ali mesmo, nua, e fez-me sua...
Beijou-me as lágrimas, sorveu-me no beijo ardente parte da dor...
Secou-me com pontas asas aladas os tremores suores do
corpo...
Aninhou-se pelos poros da minha pele, mim a dentro
- talvez para sempre e lá habita -, (é hoje o meu diário
alimento).
Companheira de todas as horas, dia e noite, noite e dia...
Tem os tons da maresia, o negro da ventania, o brilho da
utopia...
SIM, Falo de ti POESIA...

Fizeste de mim esta criança,
que temerosa ainda... guiada pela tua sábia mão
avança, no traçado dos caminhos poéticos ou de prosa...
Eu, a tal, a deposta Rosa, vagueio agora amparada,
colada com a madrugada...
Eu, Rosa do Nada!!!
Poesia... Obrigada!
Amiga... Devolveste-me a vida!!!

In Sibilam Pedras na Encosta, de Mel de Carvalho, Ed. Corpos, 2007

****

(Dedico este poema, Hoje, dia Mundial da Poesia, a todos vós, POETAS)! Bem hajam por soltarem as palavras! Obrigada!
 
Poesia-Vida

prelúdio harmónico

 
tomar-me-ás
como flor de carne burilada à tua mão de fogo
de alma incorruptível de tão salgada
tomar-me-ás
na sinopse recta de um tempo de devir.
para trás ficarão de nós convés vazios
e fomes
e lábios rachados no cieiro dos frios
e mãos
agadanhadas
nas labutas marítimas dos homens e das águas.

dobrar-me-ás
pelos quadris na amurada da noite
com os astros a explodir ternuras na tua boca
e as pernas incendiadas de desejo,
dar-me-ás de presente o reverso da lua
um colar de sargaço
um boquet de corais
(coisas simples, banais, maravilhas ancestrais)

depois
colado a meu rosto, a minha boca,
unos de correntes e laços no ensejo dum beijo,
argutos em Pégaso celebração,
sentiremos
o movimento dos mares profundos
no balanço genésico dos corpos na palma de Sua mão.
 
prelúdio harmónico

… no desalento, morri ontem

 
Não encontro as ruas do teu corpo
nem tão pouco as rugas onde te escondes
das sombras viscosas da vida.

Na deriva de açucenas boreais
acenas-me vaga-lumes de memórias,
em gestos baços onde se jubilam feras
encovadas em orbitas de algozes e carrascos.

Nos pomares de frutos empedernidos
asas de borboleta projectam-se encharcadas
e luzidias em sussurros sinistros.

Nos montes há muito que se calaram as cotovias
e as cigarras mudas entoam-se no bater das horas
dos pêndulos desajustados dos nossos dias.

Corcunda, a madrugada, rasteja-se na fuligem
aniquilada de um vento…

… no desalento, morri ontem

carcomida p’lo gorgulho e o caruncho,
no acre húmido e pardacento
do desfraldar de asas retorcidas
de pássaros decrépitos e decadentes,
tombados das pernadas arrancadas
às arvores, por si já feridas.
 
… no desalento, morri ontem

Guardar de ti

 
Guardar de ti
uma a uma, urdiduras ímpias de palavras.
A loucura, a sofreguidão, o desvario,
o desejo declarado,
o delírio,
o arrepio,
a febre urgente escondida em pele de cintura.
Guardar de ti na mágoa e na penumbra,
a flama, o fogo posto
na curva incendiada ao passado contestado em cada ruga,
rememorar o que esqueço do teu rosto.

Ser escrava de um amo ausente, e de si moura cativa,
morrer casta na carne, medula em recidiva,
morrer, contida na alma, se na boca se afila a mordaça.
Morrer assim, em lisura maior de sede,
nesta sede imberbe que água alguma,
de nenhum mar, apazigua, embrandece ou acalma.

Guardar de ti o basto chão que encontrei em teu olhar.
 
Guardar de ti

Do linho alvo, a flor da carne

 
Do linho alvo, a flor da carne e a noite empapada do suor.

Incolor o mar ao largo, num oceano vasto de verde-jade
com que vesti o sonho - quimera de luz e cor-,
e me despi de mim, desnuda.

Do linho alvo, a vasta ruga
de te amar sem norma,
Sem tempo
Sem rasto
que não seja o desenho cravado e basto
do teu corpo
sob a minha boca aveludada de cereja.

De me dar total, em absoluta entrega,
do leite virginal, a folha em queda
e aceitar a finitude
o cansaço e a fraqueza da manhã
manifesta na Lua moribunda.

E para lá da fraga, arredondada em chama,
o esvoaçar nocturno,
descontinuado, do tecido usado e gasto...
luz decomposta em prisma.

E este enigma remoçado,
uma e outra vez e sempre renovado,
diminuído o gesto da voz que chama,
… pétalas dispersas, revoltas, sobre a cama.
 
Do linho alvo, a flor da carne

Génesis

 
Aqui
onde quase todas as coisas adormecem
sem nunca terem sentido a força de teus braços
criei pastosas raízes
à terra
à rocha
ao íngreme acutilante da fraga
aos mais ínfimos espaços.

Sento-me na poeira fina libertada pó d’argila
p’lo talhe penetrante da charrua.
Mimo o corpo em residência primeira
na seiva d’erva azeda
póstuma sementeira golpeada p’la enxada.
Deixo que o cheiro doce da madrugada me possua
cada poro
cada camada dérmica
cada película tenra de alma
cada língua d’água libertada gota a gota em deriva.

Há aqui um tempo calmo, amado,
um tempo leve
espessado na frescura voluptuosa de um tule -
tão leve, tão táctil, tão brando -,
um afago azul inverosímil de tão terno
e o registo antigo
das tuas mãos depostas na concha púbica do prazer
a fiar
a cerzir
a tecer
em tear líquido de linho
um orgasmo
um gemido do mais divino bem-querer.

Aqui
onde quase todas as coisas adormecem
sem nunca terem sentido a força anímica de teus braços
há o encantamento reconhecido se provindo do silêncio genésico e uterino.
 
Génesis

… de nós, amado, nem rio, nem água

 
Um poema exposto,
rima dum livro aberto à arriba solta do vento,
uma chávena cheia de groselha capilé
e um copo: cristal pujante de rapé.

[O sacrário rodado sobre o eixo
esconde
o pão, o cálice e a carne,
contidos no sal, cerceados ao plinto de teu desejo].

De motivos naturalistas a nogueira da cama
aguarda,
o beijo,
a noite plana, a vela acesa, o indulto basto,
e a rosa,
e a relíquia balsâmica em pétalas de cerda túrgida:
- memorial futuro de pretérita proposta.

Descalço-me ardente da chuva madrigal de vida,
treino o adeus, as exéquias, a derradeira despedida,
e saio (se amordaço o gesto) p’la porta aberta e já fechada!

… de nós, amado, nem rio, nem água, nem sequer pétrea jangada!
 
… de nós, amado, nem rio, nem água

… por esta noite

 
Nos teus olhos nautas caravelas,
iluminuras, aguarelas,
longas telas d’alvo linho,
retomadas na textura do pastel,

…marés breves de ventura,
de serenidade e de bonança,

da tua pele,
de mar chão, de mar de esperança,
aberto na concha lacónica da minha mão

… a tua mão, telúrica, tectónica

longe, mais longe, no infinito
da longitudinal lonjura, para lá do ponto final,
daquele que a vista humana alcança,
no fastígio de um enternecimento,
que o mundo cego não vê,
que o mundo ofuscado não divisa,
só tu alcanças, só tu, pássaro sem asas,
que se não desiste, que não se cansa,
em rotas desacertadas de ternuras

… dança,

dança-me a alma, na percussão
melodiosa da tua voz
rouca de mar

…dança-me, na profusão robusta
de uma afeição sem par. O meu cantar …

faz-me teu mar. Navega acostado
ao meu olhar. Bolinado

… por esta noite,
por esta noite, que seja, permanece aqui,
meu amado, mareante, deixa que me aporte
neste sonho, nesta utopia maior,
neste enlevo de verde mosqueado
no pardo desígnio de caravela ser…
fica, fica agora a meu lado,
deixa o amor acontecer.
 
… por esta noite

Era cheio e claro o espaço que te dei

 
Era cheio e claro o espaço que te dei
dum peito aberto em seda plena

(E uma alma genuína de tão fina,
uma alma ingénua de menina …)

E nele, na fúria louca e extemporânea
de quem toma a cidadela a fogo posto,
acravaste o punhal fundo do logro,
concebendo absinto mote, cruel desgosto.

Eram castas as palavras que te dava
emanadas de ternura, de afecto e de magia
e mais límpidos os sonhos que sonhava
cavalgados em ginetes da mais fluida utopia.

E quando tudo em mim, confiante desabrochava,
crescia e, nata aberta, em seiva a ti me oferecia,
atalhaste mares, foste corsário agreste e bravio
dos meus cinco sentidos mareantes que,
perdidos, na dor insana de te ver partir
e de te desejar esquecer, me fizeram ser,
no palco frio da vida, mulher distante,
e fêmea forte apenas,
em cada palavra, em cada rima de um poema!

Era farto e claro o espaço que te dei.
Não existe mais, que em desumanas sitias
o desmembrei: na espada, no trote e no garrote!
 
Era cheio e claro o espaço que te dei

beijo de Crisfal

 
são duros agora o tempo embaciou
o espelho
onde me via
formosa e bela
e as searas há muito apodrecidas
nas raízes
na borda-d’água;

aprumam-se distâncias
a linha corre
maquiavélica
esmaecendo o cinza da fuselagem.
de norte a sul
e seu inverso

inverto-me, ampulheta
de areia cauterizada

não existe tensão
nem o sal se inquieta em pousio de pele
apenas
sarças insistem num perecível rasgão …

são duros agora,
os meus olhos que atentam na baba calcinada
p’lo congelo - em baba de caracol

o beijo de Crisfal

e o momento exacto em pêndulo:
o longe
e o perto.

solto
uma valente gargalhada. pérfida, é de mim que rio,
e de mais nada.

um corvo sobe
e, num lapso em que a memória acorda d’amnésia branca,
recito aos sete ventos
um extracto excelso de poema

“Parado, o relógio mudo/Repete a imensa charada/– Sempre viva e já safada –
De que tudo é nada-nada,/Se o Nada não tem o Tudo.”(1)

(1)José Régio, «Cântico Suspenso»
 
beijo de Crisfal

Como pode acontecer, Cidália?

 
Ainda te sinto nas minhas mãos, Cidália. Ainda sinto a quentura da tua pele, o bafo quente do teu beijo, a tua língua enrolada na minha. E o teu desejo, Cidália? O teu desejo… a hora em que eras mais tu, e logo mais minha. Cidália… Como pode isto acontecer ? Eu acreditava em ti, eu queria o melhor para ti, o melhor para mim, o melhor para nós. Como pode isto acontecer? Em que é que falhei, Cidália? Porque fui eu que falhei, Cidália…
Sabes, Cidália, enquanto atravessava o país de lés-a-lés, enquanto atravessava as horas de todos os dias, os dias de todas as semanas, as semanas de todos os meses, os meses de todos estes anos, era em ti que pensava, era no calor do teu corpo que descansava, era o desejo que via nos teus olhos que me guiavam na madrugada. Tinha fome de ti, Cidália, fome, Cidália, fome!

Às vezes, às vezes – confesso-te agora, que não importa mais -, parava num qualquer Club, bebia uns copos… Sim, Cidália, sim, isso mesmo que estás a pensar… Saciava a carne, a fome da carne. Mas nunca te trai, Cidália. Nunca, ouviste? Nunca amei nenhuma delas, nunca desejei mais que o instante em que o corpo se esgotava. Ai, Cidália, fechava os olhos e eras tu que eu via, os teus seios pequenos nas minhas mãos, as tuas ancas a ondular na fome do teu prazer… tinhas prazer, Cidália, que eu sei… Ou fingias??? Tu fingias Cidália??? Não, Cidália, não posso acreditar que todos estes anos fingias orgasmos, que me mentias… que me enganavas. Cidália, diz-me que não, que esta suspeita não tem qualquer fundamento… que eu, o teu marido, te dava prazer… Cidália, fala, fala … não me deixes nesta incerteza, não deixes que esta dúvida me torture para o resto da vida… tens a noção de que isto é a honra dum homem? Um homem, Cidália!!! Cidália, vais-me dizer que não era homem para ti? Que quando te possuía não te dava o que um gajo deseja dar a uma mulher, à mulher que ama… eu sempre te amei, sabes? Tudo menos isso, Cidália, tudo menos isso! Sempre fui macho, Cidália, antes de ti, tive várias mulheres e, Cidália, sei que foram felizes comigo, sei, percebes? Um homem sabe, Cidália, um homem sente… ou não sabe, Cidália??? Ou pensa que sabe e não sabe coisa nenhuma? De que natureza são feitas vocês, mulheres? Cidália…

Ainda te sinto nas minhas mãos, Cidália. A estremecer, a vibrar… e agora Cidália, a chuva que cai lá fora, a chuva que empapa a noite, cai pesada dentro do meu corpo, cai desgovernada dentro do meu cérebro. Sinto-me a afogar, as águas a subir, os caniços da margem cada vez mais longe, cada vez mais longe… estou agoniado, Cidália, não sustenho o vómito, o vómito tem a cor do alcatrão, o alcatrão de todas as estradas, de todas as noites que não dormi na febre de ir dormir a teu lado… como naquela noite em que depois de ter enganado o taquímetro, fiz mais de mil quilómetros. Cheguei inesperadamente, entrei no quarto, dormias, as crianças dormiam, tirei os sapatos e possui-te, vestido, sem te ter acordado sequer… Tinha fome, fome de te ter, Cidália, entendes? Não te tinha há quase dois meses … Apenas os primeiros raios da manhã iluminavam o nosso quarto. Sonhavas, aceitaste-me e quando abriste os olhos… não sei, Cidália, não sei dizer o que vi nos teus olhos… disseram-me … Sei lá, Cidália… que estavas a sonhar, pensei! Embrulhaste-te tão rapidamente, Cidália … sonhavas, pronto! Com quem sonhavas, Cidália? Com quem?...
Dói-me o peito, a luz baralha-se-me na mente, relampeja-me em trovões, e estes zumbem-me nos ouvidos… Oiço-te claramente, numa voz que nem é mais a tua, que não reconheço… e, contudo, és tu! Tu! Só tu…

A chuva ensopa-me a memória, a sopa escaldou-me a boca, os vomitados ensopam o sobrado, o nojo sou eu, o nojo é a vida, esta vida de enjoo… Como pode isto acontecer, Cidália? Tenho de dormir, dormir mil anos antes de puder entender a mensagem que me mandaste para o telemóvel ontem quando jantava … Bebi, bebi sim. Bebi até perder o norte de mim, até não distinguir o norte do sul, nem sei como vim parar aqui…
Oiço agora as risadas do Tomás, do Henrique, do Alfredo e sei lá de quem mais. Vejo toques de braços, olhares zombeteiros... “Vais para casa hoje, Miguel? Telefona antes, pá … não vás ter surpresas… As mulheres fazem surpresas a um gajo… dormem por casa das mães, têm medo do escuro, do bicho papão …”
… E riam, Cidália, riam e acotovelavam-se se como que a passarem mensagens em código morse… nunca liguei, Cidália. O que eles tinham era dor de corno, as mulheres deles não eram como tu, Cidália… não tinham o teu viço, o teu brilho… Tínhamos uma vida bonita, uma casa um carro … E continuava, Cidália, trabalhava o mais que podia, queria o melhor para ti, o melhor para nós. Não, Cidália, não te ligava, como bem sabes… Não queria que pensasses que desconfiava de ti, que te estava a controlar. Telefonava ao Domingo, Cidália, sempre. Nunca me esquecia de ti, nestes anos todos de estrada, Cidália, e quando vinha, Cidália … ai, Cidália, tu sabes…

O vento zumbe, as árvores secas mergulham galhos na tempestade. O camião está lá em baixo, por debaixo da sacada, o destino do frete o Norte de Espanha, parto amanhã daqui d’Elvas…
Cidália, como é que esta merda foi acontecer???
O quarto cheira a vómito, eu sou vómito, eu sou esterco, bosta humana. Olho de novo e não acredito no que vejo … devo ter alucinado de vez, Cidália… cegado de vez… Como pude ser tão cego? Leio uma vez mais...

“estou no hospital … nasceu o meu filho. Os nossos filhos ficaram na casa da tua mãe… não me procures mais”…

Cidália… ainda sinto as tuas mãos, a tua boca, o teu corpo … como é que isto pode acontecer?

in Colectânia "Contos de Mulheres" ©
 
Como pode acontecer, Cidália?

Talvez um beijo

 
Talvez um beijo a roçar ao de leve a pele da boca.

Talvez um toque
… breve, fulgurante,
um afago de sangue, um lastro de barco,
um rio de riso, um manto de gelo
… quebrado,
um brilho líquido de diamante.

As sombras, o escuro e o perfil de um instante.

Talvez o canto!

Cantar-te, amado, em constantes brilhos de luas cheias,
em dunas de oiro,
em tempestades de areia e fogo.

Talvez um fundo de mar, um quadro inacabado,
um oásis desenhado
nas cores suspensas na paleta de um artista …

Talvez as espadas de sílex,
o aço dos punhais, cravados na carne, as guerras desiguais.

Talvez os gritos!

Talvez o roxo dos silvados,
das amoras maduras, no frémito das comuns loucuras,
o desejo mascarado, os veios e caminhos interditos,
os abraços de silvas, as urtigas, recobertas de ternuras…

Talvez o Inverno
a descer-se acortinado no estendal das nossas vidas.
 
Talvez um beijo

MT.ATENÇÃO:CÓPIAS TOTAIS OU PARCIAIS EM BLOGS OU AFINS SÓ C/AUTORIZAÇÃO EXPRESSA