Suspiras veludo...
Hoje acordei e o som é sólido.
O canto dos pássaros entra pela minha janela como belas e suaves auroras.
A água com que me lavo mistura-se com pulsões brilhantes e espessas.
A máquina de barbear faz metais cinzentos e ásperos.
O fecho do casaco dispara pequenos sons para todo o lado.
Mastigo algo à pressa e a minha jugular treme alguns ténues véus de cores claras.
Quando fecho a porta atrás de mim esta explode em mil pedaços escuros e gordos que recuam nas paredes.
Agora os meus passos criam crateras duras pelo chão.
Os carros passam por mim e criam espessas nuvens de som que cobrem a luz do sol por toda a rua.
As pessoas amontoam-se com as suas crateras pelos passeios e com o algodão que produzem quando se acotovelam.
Uma porta abre-se e de lá de dentro saem discussões de um rubro inflamado com fôlegos esvoaçantes.
Um cão ladra emaranhados prateados. E o seu dono tira o céu de um acordeão. E as moedas que caem na sua caixa de cartão soltam setas afiadas de clarões de magnésio.
As vozes são fios coloridos que saem das pessoas e se misturam pelo ar. Cruzam-se e voam lentamente. Perdem-se e encontram o seu destino. São tantas cores. Tantas texturas.
São a marca única de cada um. Todas diferentes e todas molhadas pelo líquido que o vento faz quando passa entre as folhas das árvores.
Agora estou contigo. O teu toque larga pétalas brancas.
Suspiras veludo.
Fazes silêncio para conseguires ver o meu sorriso.
E é então que te aproximas e tapas com a mão o teu murmúrio…
Ainda preciso de mim amanhã
Nenhum passo se ouve, nada respira. Ninguém fala, nada se mexe. Apenas o meu olhar se move e talvez algum insecto voador.
Mas não que eu os veja, talvez nem isso exista hoje.
Se fixar algumas letras num pedaço de papel, além de toda a comoção física que se criará no imóvel meio em minha volta, talvez o que surja dê mais sentido a tudo o que não se mexe e que não existe.
Talvez. Mas não é tanto pela inexistência em meu redor. É sobretudo em mim.
Palavra de honra que é por mim.
É por tudo aquilo que tenho para dizer, claro, como também pela minha vontade de criar algo belo e apreciável, que nem sequer consigo normalmente. Mas é tão mais por tudo aquilo que não consigo que exista, que não provêm daqui de dentro, é pela minha solidão de uma compreensão absoluta de mim.
Sei lá...
Sou eu que construo, nem eu por vezes percebo, e tudo o resto rejeita. Ou pelo menos não percebe. Uma construção simultânea, uma alienação constante, um projecto novo a cada hora. E a incapacidade de seguir, a impossibilidade do agir, a inoperância que me ergueu muito do que sou e penso.
Era só preciso eu procurar-me e dizer
li aquilo, sou eu
ou então nem precisava de falar, palavra de honra que eu nem precisava de falar, bastava que sorrisse e viesse comigo.
Construo-me e não me consigo encontrar. Tem piada. É destas impossibilidades que vêm as obras mal construídas. Dum pequeno pormenor que ninguém pensou, duma pequena incompatibilidade das sinapses cerebrais.
Alguém se esqueceu de me dar um sentido.
Escrevo como quem lança pistas para mim mesmo, ainda preciso mesmo de mim amanhã.
Mas não, não se esqueceram, fui eu que não deixei.
Ainda não sabes?
Ainda não sabes?
Ainda não ouviste o que o vento te diz e o que a chuva não cala?
Ainda não ouviste o pulsar da terra que pulsa por ti e a fúria do mar quando por ti não está calmo?
Ainda não sabes que é por ti que a areia aquece ao sol e que o sol aquece a areia?
Ainda não sabes que esta noite ilumina-se para ti e que em ti a noite perdura?
Ainda não sabes?
Ainda não ouviste falar o verde e o azul e as cores das pétalas e o brilho das coisas que brilham por ti?
Ainda não sabes o quanto o horizonte precisa que te repouses nele?
Ainda não sabes o quanto eu preciso que te repouses em mim?
Ainda não sabes?
A Flor do Canto do Jardim
(baseado num cartoon de Quino)
Há muitos anos atrás, num dia de ócio adulto e das brincadeiras de crianças que do ócio nunca são clientes, andava eu esquecendo o tempo repousando pela casa quando o meu filho de tenra idade me veio mostrar um desenho. Apesar do seu traço ainda incerto e da simplicidade rude das linhas, o desenho pintava na sua jovem face uma expressão de puro orgulho. Estava mesmo feliz com aquela obra que lhe tinha demorado tempo demais numa tarde sempre curta como aquelas tardes de Verão.
- Vês? Desenhei aquela flor do canto do jardim!
Realmente era a flor do canto do jardim. Aquela voluptuosa flor de caule grosso que crescia na esquina mais luminosa do pequeno jardim defronte da casa. Era vermelha e estava mal desenhada. Mas o esforço tinha sido demasiado para reparos desse tipo.
- Está muito bem! Ficou mesmo parecido. Mas sabes o que é mesmo importante que tu consigas desenhar nos dias de hoje? – perguntei eu enquanto lhe estendia a mão para ele me dar o papel.
Então peguei na folha, desenhei com o lápis de cor preta um grande cifrão no lado de trás do papel, mostrei-lhe e disse: É isto!
Houve uma ocasião em que fiquei de o ir buscar à escola. Era um dia ventoso de Outono, lembro-me bem das folhas que tinham caído para cima do meu carro quando nele entrei já atrasado para buscar o meu filho no caminho de casa. Lembro-me dos pequenos montes de folhas em cima da chapa de preto brilhante e das que ficaram presas nos limpa pára-brisas. A escola era numa rua muito perto da casa onde vivíamos, era virada para uma grande avenida por onde uns metros mais à frente surgia a pequena rua de bairro pacato onde morávamos.
Quando finalmente cheguei, atrasadíssimo por causa de um péssimo dia de trabalho lá no banco, encontrei-o sentado no degrau da entrada do recinto, encostado às grades. Parei o carro em frente dele, encostado ao passeio, abri o vidro do lado do passageiro e chamei-o. Já ele se encaminhava para o carro quando viu uma senhora de salto alto e saia justa a passar por um homem de péssimo aspecto que, encostado a uma árvore, estendia a mão aos transeuntes e balbuciava qualquer coisa.
O meu filho ficou parado a olhar, primeiro para a senhora que já se afastava com passos firmes e depois para o homem que tornou a devolver o olhar vazio de indignidade de pedinte para o chão sujo do passeio.
Chamei-o mas ele continuava a olhar para o desgraçado. Então saí do carro e fui buscá-lo pela mão para entrar pela porta que abri em frente dele. Durante isto não sei se ele continuava ou não a olhar para o desprezível homem, só sei que tinha de lhe dizer qualquer coisa, mas apenas saiu: Meu filho, nunca gastes dinheiro mal gasto com quem não te dê lucros.
Lembro-me duma vez, anos mais tarde, que estávamos a ver televisão em família e, numa das notícias daquele dia, vimos um grupo de homens e mulheres em manifestação pelas ruas de uma qualquer cidade do nosso país. A reportagem mostrava imagens de pessoas que gritavam frases de indignação e levantavam cartazes que diziam coisas como “Pão e Trabalho!” e “Justiça para os mais pobres!”. Lembro-me mesmo bem de como naquele momento em que o meu filho me disse “Pai, esta gente é fracassada e parasita, não é?” senti-me tão orgulhoso como aquela criança de à anos que tinha acabado de desenhar a grande flor do canto do jardim.
Embora ainda estivesse mal desenhado tinha custado um esforço demasiado grande para qualquer tipo de reparos. Por isso olhei para ele a sorrir e disse apenas: Vejo que começas a entender.
E eis que o meu querido filho cresceu e finalmente se licenciou. É agora um excelente engenheiro e controla toda a produtividade de uma fábrica de grandes máquinas, principalmente daquelas utilizadas em construção civil e no equipamento de outras fábricas.
Um dia, numa visita ao seu local de trabalho, confessou-me: Estive a pensar… Se utilizássemos peças usadas neste ponto baixaríamos a qualidade, é certo, mas quem é que vai espreitar para dentro de um motor de uma máquina destas dimensões? Até somos nós que depois fazemos a manutenção! E assim duplicaríamos os lucros da fábrica, que é o mais importante!
Ao ouvir isto fiquei mais orgulhoso que nunca pelo meu querido filho e amei-o mais que nunca. Lembrei-me outra vez daquela tarde de Verão e da flor do canto do jardim que foi o começo da formação que o levou a ser agora o homem que é!
Depois de me despedir dele, enquanto ia saindo das instalações da fábrica, estava tão feliz e sentia-me tão realizado por saber que o meu filho me tinha saído bom, que nem me apercebi que o chão metálico da pequena plataforma que dava para as escadas estava molhado e escorreguei, caindo pelos degraus.
Nas longas semanas que estive em convalescença na cama do hospital ouvia várias conversas entre o meu filho e o médico que me acompanhava, numa delas o doutor disse-lhe que as fracturas não eram graves mas que o internamento ia ser longo e caro.
O meu filho olhou para mim de relance antes de se virar para o médico: Mas quando é que o meu pai poderá ir para casa? É que, sabe, o seguro da fábrica não cobre nenhuma destas despesas. Optámos por uma modalidade mais barata que só cobre os acidentes com os empregados.
A resposta não foi a que o meu filho queria ouvir. Aparentemente eu iria precisar de reabilitação, de enfermeiras e de fisioterapeutas, mesmo depois de estar em casa.
E é por isso que eu agora lhe estou a contar isto a si, aqui, na rua, já quase sem me poder mexer por estar cada vez pior da minha saúde. E é por isso que lhe peço. Por favor! Dê-me uma esmolinha que eu tenho um filho que me saiu bom!...
Dias que me passam ao lado
Dias que me passam ao lado.
São dias que me passam ao lado quando neles não encontro os minutos para esperar pelo comboio.
Tu acaricias o pêlo de um cão que encontras na rua e sorris para o seu dono. É aquele magnetismo que muitas vezes gostava de ter. Aquela empatia com outras pessoas, com desconhecidos, com os donos dos cães que passeiam na rua e com as senhoras das pastelarias.
Tu existes de bom gosto. Como os dias quando me passam ao lado se tornam superiores a mim. Como se eu me tornasse parte dos minutos em que se espera pelo comboio. Assim tu existes de bom gosto. E eu, eu tenho gosto que existas e pouco mais, enquadro na tua aura as cores mais quebradas.
Eu sou o teu verde e o teu azul.
E o verde e o azul reflectem os dias em que apanho o comboio. Em que me encosto ao vidro da janela e olho os minutos que me passaram ao lado. E recordo o teu verde e o teu azul. Recordo o que existes para mim enquanto turvo o vidro com a minha respiração.
E então existo também de bom gosto. Como os dias em que apanho o comboio.
Aquele comboio verde e azul com os vidros turvos da minha respiração que agora existe de bom gosto.
O comboio move-se. Devagarinho por enquanto. Os donos dos cães sorriem e acenam as senhoras das pastelarias.
Deixamos agora para trás os dias que me passam ao lado…
E seguimos a todo o vapor em direcção a nós.
Vermelho
Num rio de ouro, feito de asfalto negro,
Onde folhas avermelhadas de Outono voam ao vento,
Com um sopro de vida,
(com um sopro de morte),
Com pressa de se dissolverem em poças de água fria,
De deixarem o destino dar a última palavra...
Num rio de ouro, feito de asfalto sujo,
Onde as luzes de néon encarnado inflamam os sentidos,
Avivam o desejo,
(atiçam a carne)...
Onde se chama pelo nome da loucura,
E se acende no escuro a chama rubra do pecado...
Num rio de ouro, feito de asfalto mordaz,
Abraçada pela cidade já escurecida pela noite,
Encostada a um poste de ferro e cimento,
(de prata e diamante),
Com uma aura de luz vermelha em sua volta,
Como um facho marcescente pronto a se extinguir...
Num rio de ouro, feito de asfalto podre,
Esquecida pela cidade já perdida pela morte,
Chamando alguém com as suas parcas roupas,
(com o seu vestido de princesa)...
Escondida de todos,
Embora todos a vejam...
Num rio de ouro, feito de asfalto vermelho,
Como uma forasteira na sua própria cidade.
Pode chover lágrimas de sangue,
(lágrimas de sangue abençoado)...
Que ela estará lá,
No seu parque encantado,
Com o seu vestido de realeza,
Com um sorriso da mais pura alegria,
(da mais pura inocência),
À espera do seu príncipe prometido,
Para apanhar do chão as folhas avermelhadas de Outono,
Feitas cinzas de pecado...
Viver!
Deixem-me viver, conhecer!
Eu quero amar, descobrir!
Quero vaguear e correr,
Quero gritar! Quero rir!
Viajar, sonhar, imaginar,
Ir aqui, ali, mais além,
Fascinar-me com a vida de alguém!
Quero que venhas comigo também!
Deixem-me mostrar a toda a gente,
A minha vida, o meu eu,
O que em mim há de diferente,
E o que em todos há de meu!
Quero viajar por todo o mundo,
Conhecer este, aquele, o outro!
Amar-te a ti, a mim, a todos!
E que o amor seja profundo!
Viver assim ou assado, tanto me faz!
Não quero viver cansado uma vida fugaz!
Eu vivo, conheço, amo, sonho,
E descubro os tesouros que a vida me trás!
Eu quero viver as mais belas epopeias,
Quero fazer de tudo novidade,
Nos mares, nas terras, no gelo e nas areias!
É apenas mais um dia que me mata de vontade!
Eu sou o deus que cria a minha vida,
E crio aqui, por ali, mais por além!
Apenas quero o local da partida,
E viver por mim e por mais ninguém!
Apenas viver descansado uma vida de paz,
Viver assim ou assado, tanto me faz!
Memórias
Não são nada de especial. São apenas memórias.
Lembro-me bem que estava a chover.
De inicio eu encolhia-me, tentando que a chuva não me encharcasse. Mas tu não chegavas. E pouco tempo depois já não me encolhia. Já não me importava a chuva porque por mais pingos que caíssem não me iriam molhar mais.
Então aí fiz parte da chuva.
Senti-me diluir nas poças do passeio e escorrer pela rua abaixo.
Lembro-me bem disso. Estava a chover bastante.
Estava sentado com os braços apoiados nos joelhos. Com as mãos juntas e de dedos entrelaçados.
Lembro-me bem de como gostava de entrelaçar os dedos quando estava à espera.
Entrelaçava os dedos e perdia-me em viagens pelos meus pensamentos, pelas minhas memórias. Olhava o vazio infinito das recordações.
Lembro-me bem disso. Estava a chover bastante, e eu a viajar pelas minhas memórias.
Que estranho.
Tenho esta memória onde me lembro das minhas memórias daquela altura.
Mas lembro-me bem dessas memórias.
Não são nada de especial. São apenas memórias.
Não são memórias de grandiosos reis, de guerras profundas, de valorosos heróis…
Não são memórias de grandes homens, de artistas geniais, de gente importante…
Não são memórias de excitantes descobertas, de vivências felizes, de paixões intensas…
São apenas memórias.
Memórias de dedos entrelaçados quando chove demasiado.
São apenas memórias.
Memórias do tempo em que esperei por ti.
Somos nossos
Somos nossos para partilharmos silêncios feitos de pijamas com snoopys.
Para esquecermos o tempo e sorrir até de manhã.
Para recordarmos.
(Recorda-me de tudo!
Recorda-me mesmo que ainda não o tenhamos vivido.)
Somos nossos para não sermos perfeitos.
Para sermos melhores.
Para vivermos nas gavetinhas dos nossos peitos.
(Traz-te contigo.)
Somos nossos para acertarmos o passo.
Para vencermos o cansaço.
Para sermos remédio sem efeitos secundários…
(Ela olha para mim e sorri. Diz-me qualquer coisa e de repente sou todo batimento cardíaco.)
Somos nossos para termos saudades.
Mesmo juntos.
(É um tanto querer.)
Somos nossos para nos pedirmos e não nos faltarmos.
Para aprendermos a estar tristes quando não podemos estar alegres.
(Isto é viver.)
Para partilharmos o resto dos nossos dias…
Tal como partilhamos os silêncios dos pijamas…
Somos tudo aquilo que precisamos.
E são nossos os restos dos nossos dias…
Ao sermos nossos.
A Segunda Gaveta
Acordei sem nada.
Sem nada porque nem o nada acordou comigo. Acordei eu. Vazio como anfiteatros de cadeiras alinhadas a pano vermelho coçado. Esse género de vazio.
Procurei no meio das costas, na boca do estômago e no céu da boca, atrás dos olhos, no aperto da barriga, nas palmas das mãos e na ponta dos dedos. Em todos os sítios onde normalmente sinto a tua presença.
Abri a medo a segunda gaveta do meu peito. A contar de cima. Aquela que conheces bem. Aquela gaveta que tem o teu cheiro, que é a tua casa em mim, e que tu, nem sei bem porquê, costumas chamar de coração. Essa mesmo.
Mas tu não estavas lá.
Ainda levantei o sol às janelas, para que ele te brilhasse as cores. Mas não estavas mesmo lá.
A minha garganta teve vontade de gritar o teu nome mas a língua não lhe soube os contornos.
Os meus olhos tentaram olhar por dentro das gavetas do meu peito, mas só te encontraram as cinzas nas gavetas das costas.
Então fiquei a olhar o vazio.
O vazio das gavetas, o vazio das cadeiras alinhadas a pano vermelho coçado.
Fiquei a olhar o brilho do nada, a pensar em tudo.
E soube que te esqueci.