o não barulho.
todas as palavras não as sabendo, se as pronunciasse, eram como chamar-te pelo segundo nome que só eu sabia. e se eu soubesse o nome que te deram as palavras, não as dizia. nem tão pouco as inventava quando me sentisse só, sem ti. e todos os silêncios seriam como lembrar-me dessas outras, as palavras, que ao teu nome levaria. e tudo isto me faria acreditar que quanto mais te esqueço mais te lembro. e lembrar e esquecer são o mesmo, quando choro.
Gosto-te para o Alemtagus
Al:
Aquecemos os corpos despidos de preconceitos, aquecemos os corpos à lareira dos mistérios e segredos que nos murmura sonhos tresloucados que já tivemos, sonhos que inventamos à pressa nas noites curtas, curtas demais para os termos... somos felizes.
Quisera eu ter-te aqui sentado, coração batendo ao compasso da vida, solene momento, ás mãos entrelaçadas e emaranhadas, a face perdida entre a luminosidade das chamas, presas as mãos, presos os corações, soltam-se carícias, soltam-se carinhos e a vida é um arco-íris de amor que surge quando menos se espera. Quisera eu ter-te aqui, sentir o calor da tua pele na minha, deixar que a noite encubra este segredo só nosso desinibido, segredo maroto, verdade nossa que acaricía a realidade inventada que esperamos um dia puder ser real.
Nesta lareira restam cinzas de um passado queimado pelas mãos da tristeza, dela renascerão verdades impossíveis de serem escondidas, verdades que o destino escreverá à pressa no livro da vida e tatuará com minuciosidade na nossa pele...
Queria eu ter-te aqui para te dizer uma ou duas palavras simples e banais ao ouvido, depois sentir-te balançar até mim e voar comigo sem rumo certo e sem destino por este mundo pequenino... caberá o nosso mundo inteiro neste mundo pequenino?
Um beijo em ti
Saudade *
confissões a ana.
não sei ana se já te falei da chuva. se já te disse das flores, de ser primavera lá fora. se te contei de quando me cortei no tórax com uma tesoura - queria tirar-me do peito o coração-, de como no lugar da ferida me cresceram algas. tempos houve em que cortava o corpo, procurava em todas as feridas um pedaço de coração a abater. doía-me tão forte dentro, ana, doía-me tão forte e tão fundo dentro da pele. não sei ana se já te falei de amor, de voltar os olhos para o mundo e ver crescer-lhe flores dentro, é destas flores que te devia ter falado. de como estas flores te enchem subitamente de vida. e o amor também dói, sobretudo quando está longe e o corpo o chama para perto e ele não ouve, é que o amor às vezes não tem ouvidos ana. trouxe-te hoje um segredo, quero dizer-to quando o sol chegar mas hoje não há sol. estou terrivelmente só, ana, trago dentro de mim todas as histórias, marcas de facas e tesouras na pele, memórias que arrastam memórias, de sangue, de dor. de ter morrido já. ainda não te contei de como morri, era dezembro, engoli uma caixa de anti-depressivos, lembro-me de ter escrito um pequeno testamento, deixava-te os meus livros ana, a ti que nunca conheci, deixava-te os meus livros. o hospital é um lugar frio quando se acorda da morte. eu tinha frio e não havia nenhum corpo ali ao lado, que me aquecesse, que me abraçasse, nenhum corpo, ana, nenhum. morri e nasci sozinha. e digo-te ana ninguém deve morrer só. não há nada mais triste do que morrer só. não sei hoje ana se já te falei da chuva.
diz-lhe.
não agora que o vento corre com o corpo em direcção ao mar
mas mais tarde diz-lhe para vir aqui ter.
já no colo lê-me um poema que fale de água, de sul, de afecto.
fala-me de como as mãos se levam à língua, de como
os dedos te entram na garganta.
sabes hoje que o tempo sempre foi do que sinto,
se mais sentisse mais vento corria, mais ele vinha,
mais nos deixávamos.
trazia uma casa no bolso esquerdo do corpo
doía-lhe porque pesava como a seiva dentro das árvores.
não enquanto for noite e lhe doer estar sozinho
mais tarde quando a hora mudar. talvez
deixe o coração fugir-me.
fala-me de crescer saudade nos olhos e corre
corre muito e diz-lhe.
corre muito e diz-lhe.
pág.73
o corpo assenta-lhe bem do lado da pele onde o coração repousa, menos enrugado. a seu lado um caderno de anotações velhas e várias, onde descreve ao pormenor lugares e rostos. os dias estão-lhe numa sequência de vogais organizadas pelo encardido das folhas. na capa algumas folhas de árvore secas. a pena de um pássaro amarelado repousa na página setenta e três onde um poema encolhe os ombros.
#01
dizes: as esperas são sítios demasiado perto, sufocam. aparto-me de ti com um parágrafo.
talvez ainda te sentes no mesmo banco, fales com os mesmos pombos, tombes a cabeça para o lado esquerdo enquanto pensas. talvez ainda te esqueças de quem és, do nome que habitas, como se te fosses indiferente, te ocupasses já de morte. ou talvez de hoje em diante não te vejam já as ruas, paralelas às que me cruzam. porque as esperas são vésperas de abraços sem cais.
digo: todos os parágrafos são esquinas de rua.
a gorda (com freudnaomorreu)
Não passes por mim tão perto que ainda me apaixono e cruz-credo eu apaixonar-me por ti, logo por ti que não tens onde cair morta. Vá, passa-te mais longe que o passeio tem os meus braços de largura e entre os meus braços não cabe o teu corpo de cinderela gorda... Aconselhei-te uma banda-gástrica mas não me ouviste e agora não quero um romance de longa duração, nem de curta. Passa-me do outro lado que deste lado não há memória enxuta ó desgraçada. Ó desgraçada que bem podias ser filha-da-puta se fosses capaz de me levar o coração...
Foge ..Foge de mim, meu perneta amoroso. Raspa as minhas coxas com teu olhar em fuga…E no intervalo da cura de emagrecimento, fode-me sem me teres fodido… A tua língua dirá várias coisas cruas, mas sei ir para além das tuas lentes de míope. O que intuo? Tanto desejo recalcado por este pedaço generoso de carne. Faz-me cócegas… Troça do nosso amor… Com riso dobrado, a balança será equilibrada… Um peso abaixo, um beijo a mais! E agora…manda os passeios perderem-se na minha avenida pois deixei lá pousada e exausta a minha lingerie…
quarenta.
um dia partiu na calmaria de um beijo, foi, primeiro pela luz fosca da manhã depois pelo sol, nunca mais a voltei a ver. às vezes procuro-a fora de mim, na imobilidade dos objectos, no caudal estático das lágrimas, já sem rosto, ou corpo que a recorde. mas é por dentro da pele que a encontro, a sua solidão a abrir-se em ferida no meu peito, o seu não jeito para o amor, como se amar-me fosse o que de mais precioso lhe entregara a vida. custa-me recordar-lhe as feições, às vezes prefiro chorá-la, só assim, chorá-la inesgotavelmente, até me afogar dela e morrer para sempre. estar só é ver crescer a humanidade nos objectos e ver morrer-nos a humanidade no corpo, ser humano é transitório. a mim custa-me sentir tudo isto, sem paz, sem nada. sinto-me sem casa, sem vida que me habite, sem um diabo que me carregue ao colo, me leve de encontro à luz solar que a levou.
até as silvas dão flores.
vou parir pela manhã a primeira flor na boca
uma palavra antes de ser primavera
sabes meu amor se a vida fosse minha
entregava-te as estações todas nesta
dos braços caem-me sementes gestos
sítios onde morrer de corpo aberto
até quando o amor quiser e eu for do amor
como tu és dos sítios onde não ando
como pedra fica-me o coração dentro
à espera que a pedra bata e fure o destino
e é como quando sem ti se vestem as árvores
como quando são folhas e ninhos entre elas
é onde imagino uma casa nossa
há no mundo uma beleza que te pertence
no abrir dos braços e sorrir saudade
fugir pelos carreiros nos montes dos sonhos
onde soubemos inventar a felicidade
e é a felicidade que me visita quando isto é
silêncio
ensina-me a morrer.
mãe, hoje acabou. alguma coisa dentro de mim morreu, alguma maneira de eu estar sozinha, talvez o meu jeito quieto de vir à varanda e ver-te acenar ao tempo que passa. mãe, alguma coisa foi mas o quê não sei. entrou-me pela boca e entupiu-me as palavras na garganta, as muitas que tinha para dizer e que agora me caem pelo rosto em forma de lágrimas. se tu soubesses, mãe, se de algum modo pudesses adivinhar-me esta dor, cobririas o meu peito com o teu corpo num abraço. ainda espero pelo dia em que me abraces embora saiba que os mortos não abraçam ninguém.