Poemas, frases e mensagens de jgmoreira

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de jgmoreira

Hiância e entropia

MILAGRE

 
MILAGRE

Escavo o silencio para enterrar
As palavras que não mais me pertencem.
Procuro o mais quieto que há em mim
Para gritar o que diria a ti
De forma que não ouças,
Que fique entre mim e o nada
Flutuando tristes e pesadas
As palavras a ti dedicadas.

Procuro o vácuo que nada propaga.

Cavo e escalavro os dedos
Na dura superfície da ausência.
À medida que me aprofundo,
Em que me alheio do mundo
Para não perder o amor que vivi,
Mais difíceis ficam as palavras.
Retorno, então, à jornada de cavar
Para esconder o que de mim salta.

Aliviar a falta do que em mim falta.

Quando vou me dando por satisfeito,
Chegando lá, aonde não existo,
Deparo-me com a pedra inexpugnável
Lacrando minha passagem
Para qualquer felicidade.
Sem mais poder, “preciso de um milagre
Remove a minha pedra¹”
Afasta, de mim, essa saudade.
 
MILAGRE

DENOCRACIA?

 
Os democratas sempre convocam as tropas...A diferença entre ditadura e democracia é que na primeira as tropas (a força que garante o poder) estão lá, de forma clara e sabe-se a quê se destinam. E na segunda, são convocadas para defender interesse específico, de forma difusa. A força, assim, democraticamente, se estabelece como ameaça possível do eleito sobre quem elege, e isso se chama insegurança jurídica. Democracia é instumento civilizatório. Ou seja, instrumento que afasta o homem do estado natural de selvageria e o conduz a um patamar superior na escala da evolução para que seja possível a existência de diferentes em mesmo pé de igualdade, com plena possibilidade da vida no ambiente hostil. Para que não seja selvageria disfarçada destinada à satisfação de interesses particulares em detrimento do bem estar comum, estabelece-se o imperio da Lei na democracia. A Lei é o real mecanismo civilizador, que impõe conduta diversa daquela que teria o homem primitivo. Quando rasga os códigos a democracia se equipara à ditadura em sua forma mais cruel.
 
DENOCRACIA?

DISPARADA

 
DISPARADA

Passam por mim em disparada.
Oiço-lhes o tropel. Voz muda.
As mãos não chegam às rédeas
A vontade não serve para nada.

A velocidade das cavalgaduras
Atordoa meus olhos. Fere.
Ficam no ar os riscos da sua passagem,
Manchas que atravessam as ruas.

Onde quer que vá é o atropelo.
São belos, vários pelos becos
Sob o sol, lua, amor e medo.
Não obedecem nada. Desespero.

Deliro em minhas janelas
Vendo-os riscar os dias.
Assustam-me nas noites
Quando passam. Mazelas.

Não encontro um sequer rocinante.
São sempre altivos, bravios, indômitos
Nada os detém, voam sem pousa
Estrebaria. Não lhes sei rumo nem nomes.

Um dia pensei tratar-se de tropilha
Que tivessem direção definida
Seguindo algum tropeiro ou dono
Mas é apenas cavalaria.

Observo a marcha forçada da bestiagem
Sem atinar com o sentido das idas e vindas
Como circulassem à minha volta em mostra
Do seu poder, fúria ou da pelagem.

Atônito, tendo dar sentido à manada
Dos anos que passam em disparada
Como se fossem cavalos sem brida
Todos os dias da minha vida.
 
DISPARADA

GARDEL

 
GARDEL

Comprei Gardel,
do pescoço verd'amarelo,
com alguns milhares de cruzeiros.

Gardel era meu.
Verde amarelo na gaiola,
Gardel cantava em vao.

A garganta de Gardel
era só trinado e solidao.
A minha, rouca,
a do carceireiro torturado.

Gardel no ônibus,
na caixa de sapatos.
Princípios e razao.

Gardel no mato,
debaixo do meu braço,
meus cuidados de pai e mãe.

Abri a caixa
abri os braços
Gardel trinou, hesitou

levantou vôo
ruflou suas asas de anjo
verde e amarelo

sobre as árvores verdes,
Gardel livre.

Quem voava era eu.
 
GARDEL

DESPREVENIDO

 
Desprevenido
cutuco lembranças
que o tempo vestiu
com esquecimento

Elas acordam
grunhem algo, um ai!
Eu quase me animo
Lembro e é lullaby.

Reponho a manta
que as cobre.
Sonolentas
sorriem e dormem.
 
DESPREVENIDO

O MELHOR DO AMOR

 
O MELHOR DO AMOR

O melhor amor é o que entorpece as certezas
o amor que te arranca da cama às lágrimas
desespero de amor sem sentido, sem Deus
amor egoísta que só vê o que cega
O melhor amor é o que destrói a beleza
torna una a mulher que é várias
que desconhece no espelho os seios
que destempera e, por fim, a alma verga

O amor melhor, é amor sem receio
acorda de manhã para o dia
adormece depois de um beijo
amor de cabeça recostada, mãos dadas
o amor melhor é não dor, não medo
não se esconde ou se cala, delicia.
é janela escancarada logo cedo
o amor melhor é o da mulher amada

o melhor amor emudece, afasia
do amor mesmo se distancia
o melhor amor remói, turva
animal acuado na mata escura

o amor melhor é fresca da chuva
cachorro fiel lambendo a pata
gozosa gargalhada noturna
aroma de pão fresco feito em casa

o melhor amor não se vê nem respira
desejo que quer tudo e muito mais
fogo, ferro, faca, forca, fórceps, imã
palavra ferida, sangria, todos os males

o amor melhor suspira. Dorme em paz.
 
O MELHOR DO AMOR

A FALTA QUE MATA

 
A FALTA QUE MATA

A falta me obriga ao caminho inverso
Penetro mais e mais em mim à procura de ti
Como se fora tu parte inescusável, órgão, nervo vago
Que manda o afogado aspirar o que finda.
À medida em que descubro o universo
Que o amor construiu dentro de mim
A ebulição desordenada dos hormônios
Que detestam as ausências que os desequilibram;
As sentenças de morte que o cérebro acha perceber
Respondendo com perigo para o corpo que já cede
Às tantas investidas, adoentando-se tristeza,
Vou entendendo que o amor não vive da presença
Mas da certeza de que não estarás ausente.

O amor é viciante. A síndrome de abstinência
Revela-se na insônia pela tua falta,
Nessa morte que não mata, mas que ameaça
E suspende qualquer expectativa de vida.
Sinto no corpo, já involuntário, um pedido:
A certeza do afago, clemência de um sorriso
Que afaste a duvida de estar, ou não, vivo.

A falta é mensagem de morte que o sentimento envia
Enganando o organismo que se surpreende:
Células enlouquecem, neurônios se perdem
Radicais livres oxidam núcleos inocentes.

O corredor da casa se alonga ao infinito
Que eu, prostrado, não consigo atravessar
Para socorrer-me nas lembranças que aliviam
Todos os sintomas de morte urgente
Que a tua falta constrói meticulosamente:
Cartas, fotos, cheiros que medicam.

O amor é droga que estabiliza as energias
Normaliza as sinapses que acalmam
Todo o organismo que depende da tua presença.

A falta enlouquece meioses e mitoses
Que multiplicam células anômalas
Desesperadas que inventam doenças
Que os médicos investigam, classificam;
eu entendo os males como fruto da ausência.
Os diagnósticos, após anamneses, exames, negativam
Recebo sem temor guias azuis para medicamentos
Que, asseguram, me aliviarão os sofrimentos

As farmácias não vendem teu cheiro em essência
A serotonina dos teus braços me cercando de felicidade

Carrego para casa os placebos aviados pela ciência
Consciente de que minhas dores se chamam ausência
O sofrimento que aos poucos impede de viver
Prova que o amor que ama é o que faz sofrer
Vírus, achega-se ao outro, engana linfócitos T
Reproduz-se aceleradamente em cada núcleo
Espalha-se pelo corpo enganando a razão:
O amor, contrariando poetas, não vem do coração.
Entrou de ti em mim, poros, tato, visão
Enganou os sentidos, envenenou as certezas
Multiplicou-se tanto que existes mais em mim
Do que poderia supor. Ou permitir.
Pula dos poros para as veias
invade o corpo que incendeia
exigindo doses maciças que aliviem
uma vida inteira sem existir.

Sentado neste escuro, olhando a cidade
Vou entendendo, resignadamente,
que me viciei em ti, esqueci de mim
que sou capaz de qualquer loucura
para me drogar novamente
com teus sorriso, teus carinhos
o que o corpo chama de felicidade
 
A FALTA  QUE MATA

POSTERGAÇÃO

 
Esta carta tu não a lerás.
Serão minhas as palavras
Que jamais possuirás escritas

As sombras rondam a sala
As canetas secam na gaveta
O papel envelhece vazio

Como escrever-te amores
Se nada somos no hoje?
Perdôo o passado sem rancores

Os dias passados perdoados
Por descuido, de ti esvaziados

O Meu amor dói em mim
quando sorri feliz sem mim
Distante dos meus olhos
O amor dança febril

Anjos arrancando penas
rodeiam minha cela
Farejando suicídio
Assestam cabeças nas frestas
procurando carta-despedida

Deixa o desejo te procurar
nas noites escuras sem porvir
Deixa o coração testemunhar
as tantas loucuras por vir

Deixa a boca roçar gemer sorrir
Morder as coxas e se molhar
enquanto o mundo faz dormir
os que vão se acorrentar

Esquece essa coisa toda
que afronta e desperta
O amor era um tempo
Que passou na janela
Passou, acabou.

Amor é arte de moço
É um passo do poço
Amor não cabe em celas
Onde anjos se descabelam
À espera de uma carta
Que nunca termina
Fogo brando cozinhando
 
POSTERGAÇÃO

A ÃNSIA

 
A ÂNSIA

Amo, na distância, um amor
que não será amado quando perto.
Ao alcance do tacto, do beijo,
esvanecer-se-á e será reles desejo
que pela manhã deixa cheio o cinzeiro.

Amo a distância que dele me separa
como o próprio amor que a ele dedico.
Muitos são os silêncios em minha alma,
como são muitos os passos de toda uma vida.
Em todos esses silêncios há o amor,
como nos passos.
Há amor nos tendões, nervos, ligamentos
sangue, pele, pelos tudo é amor, posto
não haver pensamentos em quando atiro
a perna à frente, à frente, e nos silêncios.

Se puder tocar o objeto do amor, de que vale o amor?
Se posso dar fim à ânsia, de que vale o sacio?
-Ser apenas um corpo vazio a bocejar no escuro?

Ah!, como são reles os que se atiram a findar o amor
como se fosse ódio o que sentissem e fosse
amar estar vazio: Lata de atum no cesto da cozinha.

É preciso amar o amor como se fosse medo.
Evitar a satisfação; ansiar e mais amar a ânsia
para evitar que se aproxime o corpo do vazio.

Quanto mais quero menos esqueço o desejo
e adoro o que amo.
Esvazio-me de mitos
quando amo e ando leve, atirando olhares
semprenovidades ao mundo que vejo.

Extensos são os desertos de minha alma,
com muitas construções a disfarçar o vazio.
Nesse deserto, quando chega a noite
e a lua plena, o vento traça figuras na areia.
Muitas são as figuras traçadas em meu coração.

Os sentidos são estúpidos. Estão explodindo, exigindo,
tornando-me louco por visões, audições, gostos
que me esvaziem do amor que sinto.

mo tudo o que está longe.
Se vejo pedras, sou pele; se sou algas, amo o deserto.
Amo a impossibilidade do amor
como amo o amor.
As coisas que vemos são puramente coisas,
não possuem encanto.
Quanto maior o conhecimento dos símbolos,
menor a ânsia. Quanto mais conheço mais padeço
de desamor. Mais exijo conhecer para menos
me encantar ou procurando algo que não
entenda para a esse me entregar e amar.

Amo as crianças quando me perguntam
"o que é isso, aquilo?" e me detesto ao responder.
Quanto mais sei menos amo e busco, cocaína,
maiores quantidades de inusitados
para, enquanto não os entenda, amá-los.

Quanto mais conheço, compreendo, mais endureço
meu coração, minha'lma e mais sofro.

Quanto mais entendo, mais disfarço os desertos
de minha alma, mais afugento o vento,
mais escorraço Deus das minhas dunas.

A cada dia mais vejo e menos percebo.
Em breve de tudo terei ciência e chegará a hora
em que o deserto será tão extenso e irreconhecível,
o frio tão intenso que o coração se negará
a continuar traçando figuras ao vento.

Quando chegar esse momento, terei medo
e não mais poderei amar o que desconheço.
 
A ÃNSIA

ANIMA

 
ANIMA

O que farás de mim é segredo
Que espero ansioso o desvendar
O que farei de ti é precioso
Só o saberei ao lá estar

Sendo o senhor de tudo
Mestre de todos os aprendizes
Apenas passas, fruta madura
Enchendo vazios se nada dizes

Assistirá ao meu amor crescer
Crescerei sob Tuas vistas
A ti parecerão nada as conquistas
Que tanto amarei por tê-las vencido

Minha força será desprezível
O eu ser tudo a ti nada diz
Tantos passaram por ti, risíveis
Crendo-se astutos sendo aprendizes

Ódio, astúcia, amor e logro
Para ti, tudo o mesmo jogo
Não diferencias nada, escópico
Assistir é o que lhe é próprio

passo eu em disparada, eu fervo!
Passam as coisas em evolução
Tu, eterno, sempre o mesmo
Indiferente à dor ou paixão.

Tempo, meu Senhor-Rei
Ensina-me anímica alegria
Quando souberes o que sei
Terás somado os meus dias

O que faremos, eu e tu, de nós
Caluda, que nada entenderão
Brincamos de desatar os nós
Que os apressados apertarão

E nesse momento contigo
Acertaremos os ponteiros
Ouviremos o bronze dos sinos
Se resistirem ao desespero

Tempo, grande contador
Revela ao meu ouvido
Que me levas com amor
Para a comigo parecidos

Tempo, mestre cuidadoso
Cuida de quem te estima
Sê, comigo, caridoso
Por tanto amor em vida.
 
ANIMA

AUTOFAGIA

 
AUTOFAGIA

Não amo nada. Disse e repito.
Que sejam as rosas dadas aos românticos.
Deixem-me com o concreto, êmbolos e sais.

Esqueãm. Aqueles que chamei amigos
Se esqueçam deste que depõe a caneta
Dobra-se ao decúbito e esquece o mundo.

Passo indiferente pelas ruas
Sequer olhando para a lua
Que brilha nos olhos dos sensí­veis.

Meu coração é pura vastidão e silencio
Sol e algumas nuvens divertidas no deserto.
As artérias conduzem areia e sal pelo corpo.

Não me falem notí­cias! De que valerão?
Não cabe a mim mover o mundo
De nada valerá minha intervenção.

Deixem as rosas serem distribuí­das.
Não impeçaam a passagem de Moacyr
Nas boates do centro da cidade.

Apenas não as tragam para mim!
Não me tragam nada!
Não me hostilizem com essas nulidades!

Alijei-me do mundo.
Quero o balsâmico silencio
Para esquecer tudo

Esquecer das mortes, agoniação
Esquecer as alcatéias famintas
Vivendo em meu coração.

Esquecer que a cada dia que passo
Alimento a mim mesmo com
Nacadas autofágicas da minha emoção

Já repeti: não amo nada!
Apenas verto minha dor
No cálice que me embriaga.
 
AUTOFAGIA

A MÃO QUE ACENA

 
A MÃO QUE ACENA

Toma essa mão que acena adeus
que desentrava toda a tristeza do mundo.
U'a mão pálida
um olhar soturno. E toda a tristeza do mundo.

Mergulho meu dia na luz malsã do mercúrio
passando o dia todo, todos os dias
passando por mim,
pensando que passo no mundo.

Não! Não farei como os poetas abnegados
que deixaram nomes encravados em placas
largaram obras belíssimas aos olhos do mundo.
Passarei em claro, deitarei em escuro e terá sido tudo.

E será tudo passar assim pelo mundo?
Se olho, não vejo; se vejo,não escuto.
Se amo não odeio; se quero, discuto.
Discuto comigo nas serras da minha cabeça
procurando caminho na aurora
aurorescendo que esse caminho aconteça.
Que aconteça de repente, feito nascimento
para que todos os caminhos desapareçam
só restando um caminho
e eu seja criança que se alimenta
de um caminho que a abasteça
que me faça dono do mundo,
senhor das coisas e da razão.
Criança vestida de homem
posando para retrato no jardim
enquanto espocam as luzes dos dias na sala.
II
AH, toma essa mão que acena adeus.
Repousa todas as mãos e restará essa
que desentranha toda a tristeza do mundo.

Em casa, escutando sons familiares
louças que entretinem, água que jorra
parentes que falam ...Essa é toda a vida.
Mas terá vida essa vida de família pelos ares?
Será vida acalentar nesse quarto o sonho da vida?
Será vida amassar mil papéis da vida?
Escrever mil linhas e chamá-las vida?

O que será viver se passo em branco
todos os meus dias? Não altero nada
não provoco nada, não amo nada
sinceramente. Desejo mil coisas
e passo por elas, tão perto,
que meu desejo fica contente

e ri meu desejo em minha boca
e presto atenção no gato do hotel
na senhora que lava o rosto na pia na área
na menina que grita mãe!
nas danças de rua nas portas dos bares
Atencionado a tudo, estaciono
paro, mole e parvo, à beira de tudo
e não mudo nada, nada mudo
Por isso,
toma essa mão que acena adeus
pergunta a ela
se é viver passar ao largo do mundo.

Mas pergunta ríspido e forte
que essa mão tonta
às vezes faz-se de surda
para passar sem resposta
a tantas perguntas absurdas.
III
Toma essa mão que acena adeus
Reconforta-a no desenho do teu seio
aqueça-a com o calor do teu corpo.
Não tenha medo do homem atrás da mão !
O homem é uma coisa de pó
finíssimo, que toma a forma de jarro
onde se derrama uma gota de poesia.
Forma-se o miraculoso barro

d'onde surge essa mão
que se levanta do pó para tornar-se mão
para acenar adeus à própria vida
ou a vida do próprio irmão.

Quantas vezes o homem detrás da mão
bem oculto pelas falanges aneladas
esteve louco de tanto olhar
e não ver outra mão?

Eram jarros sem pingo de poesia
que marchavam lá fora
rolavam, chocando-se com tanta força
que rompiam espalhando o pó
Pó tão espesso, tão pesado
que logo tomou a cidade
cobriu o céu até não se ver estrela.
O pó alevantado não assentava
Tranquei-me em livros, armadilhas de amar,
em corpos frios de copos vazios
cofres antigos de segredos perdidos
Mas o pó achou-me
A poeira pesou meus ombros
Eu a respirei
Quando abria a janela, não pasmei:

estava infecto, imundo, não ventilado
Aquele pó era o mundo
e o mundo não cabia no vaso.

Toma, urgente, essa mão que acena
Beija-a, abraça essa mão que não repousa
que insiste acenando adeus
coberta de um pó que não se afugenta.
IV
Oiço tantos sons familiares
o relógio, a buzina, o assobio desafinado
os passos da menina, o grito do soldado
Nessa janela, abismado
confirmo com meus olhos
que minha família está pelos ares
Durmo preocupado
sonhando com o pó envenenado.
V
Vamos, toma logo essa mão
não a deixa ao acaso
tentando erguer-se da mesa
estando o corpo anestesiado.
Não te apavore, amada, não te apavores!!
Hás de ver tantas mãos acanhadas
que hás de implorar pela minha mão que te acode
empurrando teus passos pela estrada.
Minha mão, no silencio da chuva que desaba
está fria, morta, quieta
lutando contra o vício que a descarna.
Minha mão não quer ser poeta
não quer o formol das estantes
não anseia taças
póstumas pousadas na sua palma sem semblante.
A mão quer a paz dos arvoredos
quer o canto das aves trinadoras
o vôo da rapina mais absoluta
a envergadura de asas perfeitas
Minha mão quer dormir um sono tranquilo
sabendo que a poesia pulou o muro
saiu do quintal esquisito
e veio cá fora respirar ar mais puro.

Minha mão quer liberdade
quer justiça.
Uma justiça sem mãos
sem crinas
Minha mão que acena adeus
não quer abrigar sonhos em sua morada
Não quer estalar patíbulos
não escalar horas marcadas

Minha mão quer ser amada!

Quer que tu a toques com cada dedo da tua alma

Minha mão que acena adeus
acena a Deus
que do longe das estrelas acena duas mãos perfeitas
à minha mão deformada.
 
A MÃO QUE ACENA

SOUTAMÉRICA

 
SOUTAMÉRICA

Na América do Diabo
brilha a lua,
inocente e bela
sem saber que a espreitam
espanhóis e portugueses
somente por brilhar amarela.

Para trazer Deus aos silvícolas
urgem espadas, algemas, arcabuzes
bestas de todos os tipos.
Cortez, Pizarro e outras delas,
com a empunhadura em cruz
das lâminas afiadas
esfolam ouro nas peles que, dígnas,
postaram-se contra a fidalguia esparolada
dos cristãos que movem cruzadas
ocultando ouro na fé, esmeralda e muita prata.

Em busca do Eldorado
devastaram Potosí, Montezuma
Ouro Preto.
Venceu os índios o deslumbro,
não a força ou medo.

A América do demo propiciou,
com sua riqueza,
o requinte das realezas,
que se reerguessem reinos falidos
às custas do negro e do índio.

Contraste que emociona o esteta:
a morenez do índio
o negrume do preto
as pepitas amarelas
que guardava o chão
florindo sobre a terra
riqueza de aluvião.

América, açúcar preparando
ouro.
Negro cativo, índio massacrado,
ouro.
Ouro abrindo as portas do céu expansionista
financiando grandes conquistas.
Acumulado na matriz
gera empresas, centros urbanos
Hércules de potentíssimos neurônios
restando a América do abandono.

A América do inferno
Édem terrestre de outrora
esburacada, vazia, destripada,
assesta seus milhões de famintos
contra a América do sonho
que, herdeira protestante da crueldade cristã espanhola,
Escraviza, dizima, espezinha
impera, destrói e desola.

A América, herdeira de Espanha e Portugal,
ensarilha suas baionetas úmidas
arma seus soldados comerciantes
com desprezo por quem não lhe é igual.

Da América do sacrifício
ouve-se a voz do índio:
‘Pai de todos os pobres, de todos
os miseráveis e desvalidos,
ajudai-me a fugir de Tinta!’

Clama a voz no fundo da mina.
O pai de Todos não escuta clamores,
adormecido no seio Inca.
Mastigando coca, ouvindo tambores,
esqueceu-se dos irmãos da Mita.

‘Pai de todos os tortos, entrevados
e opressados nessa liça,
ajudai-me a fugir da Mina’’
Clama outra voz no céu de Tinta

Túpac Amaru, para falar aos índios,
necessita de língua, perdida em Wacaypata
necessita de sua cabeça, em Tinta
do braço direito, em Tungasuca
do esquerdo, em Carabaya
da perna esquerda, em Santa Rosa
da direita, em Livitaca.
Túpac quer seu tronco
lançado em cinzas no Watanay,
quer ouvir seus filhos, enviados
para o lado direito do Pai.
Amaru quer regressar à vida
para tirar de dentro da Mita
seus irmãos que clamam ajuda
contra a força que os executa.

Túpac Amaru, sentado no chão batido
de uma tribo no olvido das batalhas
chora em Potosi, Zacatecas, Guanajanauto,
Outo Preto, Colque, Porto, Andacaba, Huanchaca.
Cura as feridas gangrenadas
de Atahualpa, do Caribe, dos Maias,
Tenochtitlán, Cajamarca,
Cuzco, Cuauhtémoc, Guatemala.

Observa, com olhos sulfurados,
Colombo, Fernão Cortez, Pedro de Alvarado,
fere, com mágoa, a lembrança de Pizarro.

’Ó Pai de todos os mendigos,
inimigo dos dueños de la tierra,
ajudai-me a fugir dessa América!’
Gane uma voz no sétimo inferno da Mita
com os pulmões endurecidos de sílica

Túpac Amaru, sem lágrimas ou ferocidade,
abre seus braços de morto que dão a única fuga
abrigando, em sua redoma, os irmãos da Mita
que rapidamente ascendem aos céus de Tinta.

Os índios centro-sul americanos
acolhem-se na morte aos braços da liberdade.
 
SOUTAMÉRICA

CONFESSADO

 
CONFESSADO

Antes que as noites durmam
na ilusão de outra lua
não saberás por mim, o confesso,
que habitavas todos os versos
Os escritos e os pensados
Vivias em cada palavra
dita, omitida ou imaginada

Tudo que ligava o mundo
ao homem e seus sonhos
tinha por única moldura
um sorriso de encanto
Não, não o que davas
que teu tudo era nada
mas o amor que eu embalava.

Amei no caos
nas noites de nada;
amei teus dias claros
quando tudo era táctil.
Deliciaram tuas tristezas
tanto quanto as alegrias:
em mim algo, apenas, adorava.

Sei que nada entenderás
de um amor que não vivestes
Mas, exatamente por isso
poderás tentar perceber,
se fores atento expectador,
todas as evoluções do amor
que não exigia teu sacrifício

Era apenas amor que ama
sem desforço ou esperança
Era além de mim, aquém de ti
vivia no justo espaço
que lhe permitia sorrir
por apenas saber que existias:
isso o alimentava. E sofria.

Nunca creu nas tuas palavras
portanto, singelo passarinhar
que vai de canto a canto
querendo flores despojadas
para fecundar outras flores
É o que se espera dos amores
que alimentem sem se alimentarem.

Não saberás que serás lembrança
Serás eterna em todas as vidas
que houver para serem vividas
Ultrapassarás o tempo: eterna
Frente a ti, tudo será pequeno
Até o meu amor, enorme sem caber
se o percebesses, sería mísero.

Amei em silencio, jura secreta
Amei por ofício, dedicação
Amei além das coisas, semblant;
As ausências chamei de falta,
omissão, para não dizer decepção.
Amei até me dar por liberto.
O que restou, fátuo, a si consome.
 
CONFESSADO

CENTELHA

 
CENTELHA

Dias de sol. Outros, chuva
alguma certeza e dúvida
o branco que amplia
escuro que reduza

a palavra mais certa
no ouvido errado
se é tudo meta
sonho nunca alcançado

amanhã, dia ensolarado
não há sol pra sempre
alguma chuva, fuchsia
só assim vale a pena

tudo passa, é evidente
há vida no deserto
há vida em tudo
a vida é presente

presente o agora
presente grego
abra a caixa, Pandora
a vida é urgente

frutas boas, outras nem tanto
o que diferencia o remedio
do veneno é o quanto
viver, sempre, é duvida. E encanto.
 
CENTELHA

VISTA PARA O TEJO

 
VISTA PARA O TEJO

Sabes, às vezes um homem pára,
vê aqueles que a ele se assemelham
e pergunta: Deus, se sou isso
como te apiedarás de mim?

E eu, que tenho passado toda a minha vida
a ver e a olhar, muito mais a ver,
me debato em meu leito
à procura da forma ou jeito
que embale meu coração
arrebatado.
Na madrugada, ouço o canto dos bêbados.;
no dia, escuto máquinas,
sem tempo para atencionar-me em mim mesmo,
em mim, que passo ileso entre as lâminas
e durmo, a salvo, no gume da navalha
enrodilhado em mim próprio
ouvindo o tempo passar nos quartos de dormir.

Cada côvado desta casa
tem seu simbolismo e importância.
Nos leitos, que hoje se intelectualizam,
homens sem grei amaram.
Da profunda cova rasa retiraram
os homens de hoje, que se amofinam.
Os homens que aqui dormiram, amaram e morreram,
(muito mais amaram, vê-se pelo tamanho da casa)
eram homens sem medo
que povoaram com deus a outra metade do mundo,
esfolaram prata de cada pele,
semearam seu sangue em veias alheias
à procura do ouro que a todos incendeia.

Às vezes, vem-me essa angústia de saudade
de um tempo de têmperas diferentes
de homens moldados a valentia e cansaço
de dobrar, com fogo, a pureza de outras gentes.
E essa minha angústia, ou saudade, é violenta.
Então minhas mãos espremem gargantas
dilaceram costas, sacrificam inocências
como se castigassem a mim,
que tenho muito mais olhado que visto.

Na prôa do gume, bocejo.
Estico braços e pernas, recolho-me
teso: dobres de sino emparedam-me.
O tempo expulsa de si as horas
que expulsam o homem do presente
lacrando-o em suas memórias.
Eu, acá sentado, com os olhos longe,
sou homem sem futuro e de presente adormecido
sonhando com o lado de lá, d’além mar,
quando, no segredo, havia muito a inventar.
Hoje, desnudaram os gestos
e pintaram com outras cores os sígnos.
E para que se veja o que há atrás de cada homem
É preciso muito arder para desfazer as camadas de tinta
com que o tempo os impermeabiliza.
Resta o mistério são as mulheres
que o tempo pinta. E elas se limpam,
nunca ficam estáticas
presas ao sabor da história ou da liça.
Elas se movem, céleres, e se livram.

Ah, eis que um amigo me acena, de longe,
a mão ensandecida pelas palavras:
hullô, Ricardo (Mandela, Walt Whitman)!
Toda liberdade que ali confluencia.
O desejo de guerra, paz duradoura,
do milagre do pão, negaceiam:
Heil, Ricardo (Llorca (espíritos se agitam)

Ergo-me. Firmo os braços entalhados
no espaldar do assento
suspendendo o corpo do sentimento.
Saio. Caminho heterogêneo
pelas ruas de São Sebastião.
Em frente a cada passo, um sobressalto,
um salto, degrau, mímicas de pedras.
Desapareço na multidão.
Mas, quem caminha anônimo
não sou eu.

Quem sou ficou sentado naquela cadeira
olhando o cais pela vida inteira
à espera de que na boca da barra
surgissem mil galeras mil naus apinhadas de ingleses
que viessem povoar direito
as margens desse Rio que nasce no Tejo.
 
VISTA PARA O TEJO

Pax et lux