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O livro de todo o conhecimento(XV)

 
Não consegui manter-me quieto na cadeira. Teresa tinha nos olhos uma doçura algo despudorada e eu olhei para a enfermeira Cândida que acenou afirmativamente com a cabeça. Pedi que fizesse uma pausa enquanto tomava notas numa folha: «associações: vasta cabeleira, pau de cabeleira, vermelho, encarnado, hemorragia. Se a enfermeira não estivesse presente cometeria a imprudência de agarrar a mão de Teresa para a confortar. Custa-me muito este papel de neutralidade. Quando foi a última vez que vi uma mulher tão apetecível?»
Andava sempre com várias folhas de papel A4 dobradas em quatro partes e ia escrevendo até preencher um quarto de página, continuando no quarto seguinte. Quando a folha ficasse cheia de ambos os lados teria oito pequenas páginas, quatro em cada lado da folha. Adquiri este hábito quando estudante na faculdade de Direito de Coimbra, para não carregar com blocos de apontamentos e sempre me dei bem assim. De um momento para o outro, em qualquer lugar, até numa igreja, ou num estádio de futebol, tirava do bolso da camisa o pequeno desdobrável, uma esferográfica e, na palma da mão, podia anotar um pensamento, uma expressão, uma ideia, um verso ou um poema. Há muitas coisas que um gravador não faz. Por exemplo, não grava os nossos pensamentos, nem instantâneos que nenhuma máquina capta num determinado momento de uma viagem ou de um evento…
Quando chegava a casa, normalmente, retirava a folha ou as folhas do bolso e colocava-as, sem mais trabalho numa capa de argolas. Por hábito, datava-as e isso permitia-me, no fim de um mês, ou de um ano, folhear ordenadamente, o resultado do meu trabalho, como se fosse um diário.
- Peço desculpa.-disse eu. Pode continuar?
- Este episódio inesperado e brutal deixou-me num impasse difícil. Precisava de fazer qualquer coisa mas não sabia bem o quê. Não podia calar e sofrer em silêncio uma mágoa tão dilacerante, mas não era fácil ir a correr para um hospital e denunciar uma situação tão caricata e tão humilhante. A raiva e a revolta cresciam dentro de mim a cada pensamento e eu não me conformava com o facto de o Carrancas, por quem sentia e sinto ódio e desprezo, se ter tornado instrumento da minha perdição, assim uma espécie de mão que me empurra para o inferno.
Nesse dia, a enfermeira Cândida, que vive no quarto andar, estranhou a minha ausência na assembleia de condóminos, tendo-lhe eu dito na véspera que não iria faltar e, antes que a reunião começasse, veio tocar à campainha. Primeiro pensei não responder, depois, como insistiu, fui espreitar pelo monóculo. Só nesse momento, ao vê-la, pensei que era mesmo dela que eu precisava para falar do que me tinha acontecido.
- Abriu-me a porta com uma expressão que me transmitiu imediatamente a ideia de angústia profunda, e, ao mesmo tempo, ou talvez por isso, uma alegria em ver-me que não era normal.- disse a enfermeira, corroborando as declarações de Teresa.






 
Autor
Carlos Ricardo
 
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