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O Homem pronto

 
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O homem permaneceu sentado no único banco de sua cozinha, desde que havia se levantado da cama apenas uma vez ameaçou se aprontar para o trabalho. Saiu da cama com a tristeza arraigada ao seu corpo, vestia-a como a um grosso casaco desde... Um novo olhar para o relógio, o primeiro quarto de hora confirmava ao menos um movimento ao redor, o tempo. Quis tomar um pouco de água, depois pensou no café e acabou por desistir de ambos. Permaneceu preso ao não-pensar, entregue ao único banco de sua cozinha. Uniu as mãos ao peito.... – Deus, a quanto tempo sofro com isso, a quanto tempo meus dias alternam-se entre a intensa melancolia e a visita constante de profundas depressões? Tudo isso depois dela, ela, uma vez mais, chega, será apenas dessa vez e depois, a promessa. Ontem, um pouco mais animado, tentou esquecer a promessa e foi assistir à TV, primeiro com programas de auditório, depois com os programas sobre celebridades, de nada adiantou então resolveu dar uma última chance aos canais do ópio (alguém uma vez se dirigiu assim aos programas de TV, mas era apenas uma vaga lembrança, nada mais), passou a acompanhar os desenhos animados, mas estes, apenas trouxeram novas lágrimas esquecidas de dores passadas. Um profundo gemido cortou o silêncio naquela cozinha, e depois:
- Por quê, por quê meu Deus? Não agüento mais esta agonia, que me perturba tanto.
Levantara-se às 6 da manhã e agora completavam 43 minutos que ele estava ali, sentado no único banco de sua cozinha.
- Hoje eu não vou trabalhar. Não consigo. Hoje eu vou cumprir o que prometi e, assim, ela acreditará.
Permaneceu quieto, absorvido nas lembranças que sua memória insistia em resgatar. Distraiu-se com três moscas que pousavam sobre os restos de um pão da noite anterior. “Da noite anterior...” – ele tentou recordar. Não se lembrava de ter comido algum pão ontem. Também de ter dormido, ele desconfiava que tivesse acordado, ele decidira então que não sabia se realmente acordara naquela manhã.
Foi com essa desconfiança que resolveu se levantar do único banco de sua cozinha, de pé passou a olhar demoradamente para os objetos ao redor, primeiro fitou a pia, encheu os olhos com a pia, depois a geladeira fixou sua atenção com seus longos poemas de adorno. Passou rápido pelo fogão e o seu parceiro botijão – essa dupla estranhamente lhe recordava de Selmo e Salmo, os gêmeos largos de estatura baixa que o infernizaram durante todo o Ensino Fundamental. Selmo cabeceava insetos contra estruturas sólidas, dizia que o som deles sendo esmagados trazia uma deliciosa sensação ao interior de sua cabeça, e Salmo, costumava calçar seus sapatos dois números acima e sair correndo, mas antes certificava-se de enchê-los com baratas e lagartixas, gostava de esmagá-los e o contato com a morte acontecendo aos seus pés descalços, a cada passo, o divertia.
Antes de sair da cozinha se deparou com a garrafa térmica vazia de café e de atenção. Reconheceu ainda o totem sagrado que representava o açucareiro para as formigas em peregrinação num caminho que tinha sua origem lá, de trás do armário das panelas. Olhou para o relógio da parede, 7:38, saiu da cozinha e foi em direção à porta da sala, sua única ligação possível com o interior do prédio. Destrancou-a e a abriu como se fosse sair para o trabalho.
Com a porta aberta resolveu dar um passo para fora e então se encontrou no corredor cortando a frente do seu apartamento. Deu um leve sorriso perturbado como quem sorri à toa, encolheu as mãos nos bolsos do seu roupão para proteger-se do frio. Dentro do bolso esquerdo, o controle do portão da garagem, decidiu num impulso descer pelas escadas, e foi pelas escadas, enquanto descia, que dezenas de rostos desconhecidos o cumprimentavam com sorridentes bom dia(s) e como vai(s)?; pensou: “Pessoas confusas tentando me confundir, preciso continuar descendo e sair daqui”. E alguns pareciam tão sinceros que o fizeram desconfiar se realmente não os conhecia, um dos sinceros foi uma mulher que trouxe a lembrança de Pam recolhida na palma da mão, sua reação à lembrança foi apressar ainda mais o passo em direção à garagem. Não quis lembrar-se de qualquer amor que um dia existiu. Só um amor poderia existir e ele cumpriria a promessa para não restar dúvidas.
Em frente ao portão da garagem ele fez o que faria se estivesse num veículo qualquer, com o braço esticado mirando o portão, pressionou o botãozinho responsável por sua abertura, mas na primeira tentativa falhou, esticou novamente o braço na mesma direção e uma vez mais não houve resposta, então decidiu mirar na pequena caixa preta colada na base ao lado da grade, a resposta num solavanco brusco de engrenagens despertando ditavam o movimento constante do pesado portão. Passo após passo aproximava-se, acompanhando a lenta abertura a revelar, os universos possíveis do além-portão. Quase conseguiu respirar o mundo de fora e, por um momento apenas, uma leve brisa acariciou em seu profundo, agradáveis lembranças, mas antes que pudesse insistir em possíveis conquistas, já se encontrava no elevador a caminho do 17º, seu andar.
Chorou um choro epopeico e não percebeu que o elevador estava praticamente cheio até o 8º andar, ninguém se importou, ninguém o consolou e, sozinho, foi incapaz de interromper copiosas lágrimas estandartes de um desespero anunciado. E assim chegou ao 17º andar. Antes de descer não fechara a porta do seu apartamento e agora, ao voltar, também a manteve aberta. Acalmou-se um pouco quando chegou na sala, respirou aliviado por se encontrar em casa e até quis tomar um banho ou comer alguma coisa, também pensou uma vez mais nela: “Agora lembrei de você e, por um momento, em te ligar.” Depois foi até a janela e pensou em se jogar, e também nos 17 andares da queda. Pensou em escrever algo na própria pele, quis quebrar aqueles malditos vasos, pintar as imundas paredes brancas, pensou nisso tudo e não fez nada, encostou-se com as mãos voltadas para a fria parede em frente à janela. A cortina leve, esvoaçante, determinava a distância numa valsa de apenas três giros e, pela primeira vez desde que acordara naquela manhã, uma intensa calma o acolhia, quase um ninar de breves suspiros, sabia que chegara a hora de cumprir a promessa, fechou os olhos para, de cabeça baixa, congelar instantes numa velocidade sem tempo até se projetar num salto pela janela e, por algum momento, alguém lá embaixo pensou ser um lindo pássaro que sobrevoava a cidade...

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PCPesinato
 
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