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Olhar Surpreso

 
Olhar Surpreso
 

Os nossos universos são diferentes. . . O meu é tão pequeno e por si mesmo limitado; é como uma prisão. O teu é diferente cheio de cor, e com uma enormidade de possibilidades. Tão avassalador, tão simplesmente belo.
Os nossos mundos são estranhos e distantes um para o outro; mas apenas tão longe um do outro quanto a separação de um simples passo. Tu és do mundo dos casinos, dos tios ricos de fatos de veludo, de Mercedes e Ferraris estacionados à porta da mansão; és das óperas que passam nas famosas salas de espectáculo de Lisboa. . . Tu és de um mundo onde há hora de chá na casa das tias e da avó velha. Que aparecem sempre conduzidas por um motorista e rodeadas de uma corte de fiéis ajudantes e criadas sempre trajadas a rigor para a solene ocasião, as tias vêem sempre com vestidos espampanantes de veludo com cores berrantes ou estrangeiras, ou, e, com casacos grandes feitos de pele de um animal qualquer raro, a combinar sempre um chapéu estranho de penas ou materiais exóticos.
O meu mundo é simples. As feiras ao domingo, as sardinhadas na casa do tio Carlos no fim de uma tarde de pesca. Sou de um mundo onde se tolera um Deus e não as ciências exactas. Para nós sim! O maior mistério da ciência é a própria ciência em si. Sou dos jogos da bola entre amigos, dos tremoços e da cerveja enquanto jogamos à bisca com os velhos reformados do jardim. . .
Passei a infância a brincar na mata; cresci na mata, como algo selvagem dentro mim. Brincava como nos desenhos animados com os meus muitos amigos. Na escola brincava também nas aulas, sabia de cor os anúncios que passavam na Tv. Trazia para casa os boletins de notas escondidos entre os cadernos, com medo que a minha mãe visse as notas do “desenrasca”…
A tua infância era outra; as aias velhas que contavam, histórias de príncipes encantados e reinos distantes onde haviam sempre finais do “viveram felizes para sempre”. És da religião católica rigidamente domada sobre a Bíblia Sagrada, dos quadros da família pintados a óleo por um pintor famoso da época. Eras dos vestidos brancos de cetim e das aulas de piano. Brincavas só, com as tuas bonecas brancas feitas de porcelana, vestidas com vestidos simples e laços no cabelo como tu. . .
Frequentavas explicações em casa, para completar o exacto das ciências abstractas que te ensinavam no colégio particular, os cadernos limpos e com as anotações de todas as aulas passadas duas e três vezes com cores distintas consoante a importância, eras dos grandes livros de uma literatura clássica e já ultrapassada e dos boletins de notas com excelente a tudo.
Até eu e tu somos tão diferentes um do outro, tu és tão puramente bela, quase angelical. Eu sou normal e simples; vestido com uma roupa qualquer que peguei à pressa para vir no autocarro. E aqui estás tu. Tão distante e deslocada de onde costumas estar. “Num autocarro?”. Nada em nós é igual.

E no tempo nada ficara igual. Não ficará nada nunca igual em nós ou da nossa infância ou do nosso mundo e universo. Nada ficará igual no tempo, senão aquele nosso olhar surpreso cruzado naquela gélida manhã de Setembro. Eram oito da manhã. . .
 
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Blackbird
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